Ela é um símbolo do Brasil. Além da beleza, tem um grande porte – chega a 1 m de comprimento, do bico à ponta da cauda. A arara azul atrai desde os idos dos primeiros colonizadores e tornou-se uma das aves preferidas para a venda clandestina. Mesmo porque é dócil. Sua captura não exige esforço extra. Esse é um dos principais fatores que a incluíram na lista dos animais ameaçados de extinção. Em 1990, havia pouco mais de mil de araras azuis no País. Mas há um alento – mais do que isso, aliás. De lá para cá, o número subiu para 5 mil, contando apenas as araras do Pantanal mato-grossense. Não foi por acaso, claro. Essas aves encontraram uma protetora: Neiva Maria Robaldo Guedes, mato-grossense-do-sul de Ponta Porã. Há 20 anos, ela comanda o Projeto Arara Azul.

A história começou meio por acaso, quando Neiva, recém-formada em Biologia, estava fazendo um trabalho de campo no Pantanal mato-grossense e viu um grupo de aproximadamente 30 araras azuis em uma árvore seca. “Descobri que quase nada se conhecia sobre essa ave e decidi estudá-la”, diz. “Logo percebi a necessidade de um trabalho de preservação. A arara azul já era então uma espécie ameaçada.” Aqueles estudos se tornaram uma tese de mestrado. E mais do que isso. Desdobraram-se em um trabalho árduo e apaixonado, que tornou Neiva Guedes, 48 anos, a maior autoridade mundial em psitacídeos (família que inclui araras, papagaios e periquitos).
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Preservar as araras azuis ainda é uma luta. Há diversos problemas. Começando, claro, pela ação predatória do homem, que não se reduz ao comércio ilegal ou à caça (era uma das aves preferidas pelos indígenas para enfeitar cocares e adereços de plumas). Os riscos para sobrevivência desse pássaro aumentaram a partir da segunda metade do século passado, com a expansão da pecuária, da agricultura e do desmatamento no Pantanal mato-grossense, seu principal habitat, embora também existam araras azuis na região do encontro dos Estados do Tocantins, Piauí, Maranhão e Norte da Bahia, além de áreas no Pará e Amazonas.

Não só as ações humanas colocaram em risco a linhagem da ave. A bem da verdade, a arara azul é o que se poderia chamar de um “bicho complicado”. Ela procria apenas a partir do oitavo ano de vida. Normalmente, põe apenas um ovo (podendo chegar a dois); e isso somente de dois em dois anos. Além dessa restrição, o segundo filhote, se houver, nasce com o hiato de um mês, quando o primeiro já está grandinho e recebendo toda a atenção dos pais. Por isso, são extremamente raros os casos de sobrevivência de duas crias.

As complicações não param aí. Mesmo quando há apenas um filhote, e vigiado com esmero pelos pais, o índice de mortalidade fica em torno de 40%. Predadores naturais estão sempre à espreita para aproveitar qualquer descuido. O tucano é o mais agressivo deles. Outro problema para a arara azul é ser seletiva. Em geral, só faz ninhos em duas espécies de árvores do Pantanal, a manduvira e a ximbaúva (em algumas regiões, recorre a buracos nas barrancas dos rios e desfiladeiros) e resume sua dieta a nozes de duas espécies de palmeiras, o acuri e a bocaiuva. Com tantas limitações, não é surpresa que a maior espécie dos psitacídeos da fauna brasileira esteja ameaçada de extinção, como já ocorreu com sua prima ararinha azul, que hoje só existe em cativeiro.

Brasileiros acompanhou o trabalho de Neiva Guedes e sua equipe na região de Miranda, no Pantanal mato-grossense, em busca de ninhos das araras, tanto os naturais quanto os ninhos artificiais – uma das invenções da bióloga. O objetivo era verificar os ovos, registrar o nascimento e crescimento das aves e, ainda, agir na defesa contra os predadores.

A atuação dos integrantes do Projeto Arara Azul é sistemática. As duas equipes saem a campo às 6 da manhã, a bordo de picapes. Retornam ao escurecer. O roteiro prevê visitas nas seis sub-regiões do Pantanal sul-mato-grossense. Isso pode significar centenas de quilômetros rodados. A base principal do Projeto é o hotel fazenda Refúgio Ecológico Caiman, em Miranda, do empresário Roberto Klabin, parceiro de primeira hora. Ele também apoiou a segunda frente de trabalho, em Aquidauana. Nessas duas áreas, sobretudo, estão catalogados 403 ninhos naturais e 220 artificiais utilizados por araras azuis. Infelizmente, a operação só pode ser desenvolvida entre junho e dezembro – época da seca no Pantanal. No período da cheia, isso fica impraticável.

“Bicho complicado”, reitere-se, a arara escolhe as partes mais altas das copas para construir seus ninhos, quase sempre em meio ao mato cerrado, onde crescem as árvores maiores. Usando um cabo-guia, os pesquisadores recorrem às técnicas de rapel para subir a 15 m ou até 20 m da superfície. É nesse patamar que o casal de araras azuis se instala com os filhotes. A ave vive em bandos até os oito anos, a partir daí, quando acasala, macho e fêmea permanecem unidos até o fim da vida, que pode durar 30 anos.

Cezar Correa, 41 anos, é cunhado e também o braço direito de Neiva. Começou a trabalhar no Projeto ainda no início. “Seria coisa de dois meses. E estou aqui até hoje.” Cezar se considera apenas “um passarinheiro”. Não concluiu nenhum curso superior, mesmo assim muitos o consideram a segunda maior autoridade mundial em psitacídeos – abaixo apenas da cunhada. “É coisa de cientistas estrangeiros que aparecem por aqui”, desconversa.

De lá no alto da árvore, Cezar anuncia que o ninho está com um filhote, de apenas três dias. Ainda coberto por uma penugem branca, o bichinho desce em um balde amarrado por uma corda. Neiva o espera para examiná-lo e registrá-lo. Enfim, a ave é devolvida ao ninho, para alívio dos pais, que, de outra árvore, protestam com gritos. Toda essa ação se torna um espetá-culo para pequenos grupos de turistas, que passam o dia acompanhando o trabalho dos cientistas – e ajudando a angariar recursos para o Projeto.

A expedição continua. Um aparelho GPS ajuda na localização dos ninhos. A tecnologia confirma, mas é Cezar que localiza – sem qualquer ajuda tecnológica – outro ninho catalogado. Parece ter um GPS mental, tão ou mais confiável.

Dessa vez, quem sobe pelas cordas é a bióloga Juliana Rechetelo. Feliz, ela vê um filhote de arara azul com um mês de vida, já começando a mostrar a plumagem azul marinho e o contorno amarelo do bico e dos olhos. Juliana é curitibana de 28 anos, estagiou no Projeto há alguns anos e voltou em 2009. Ela tem quase 1,80 m de altura e porte de top model e demonstra agilidade ao percorrer as árvores. De novo, as notícias são ótimas: outra arara, com quase três meses de idade, está no ninho. E reclama muito antes de ser descida para o exame. Passado o primeiro momento, acalma-se e aceita o manejo.

O périplo continua e a equipe chega a um ninho artificial, uma espécie de casa de madeira presa em uma árvore que não é nem manduvira nem ximbaúva. Neiva explica: “Os ninhos artificiais são instalados em árvores de madeira dura, resistente, como ipês e jatobás”. A invenção da bióloga tem se revelado eficiente. Depois que as araras abandonam esses abrigos, eles passam a ser utilizados por pássaros de outras espécies. Uma das vantagens das casinhas de madeira: os predadores têm atacado menos. “Mas já encontramos tucanos em ninhos artificiais. Estão começando a se acostumar”, comenta Grace Ferreira da Silva, carioca da Vila da Penha, outra integrante da equipe.

Um filhote de três meses é encontrado no ninho artificial. Descido, passa por um exame detalhado. É feita a identificação, colhe-se o sangue e, com uma seringa especial, implanta-se um chip sob a pele, para facilitar a monitoração. A arara bebê ganha o nome Nakanishi, uma homenagem a Masanori Nakanishi, vice-presidente financeiro da Toyota Mercosul. Explica-se: parceira do Projeto desde o início, a Toyota fornece a frota de veículos e chegou a bancar, em 2007, todos os custos da operação.

As rotinas de registro e exame das araras e seus filhotes permitiram ao Projeto dispor de um banco genético de grande parte das araras do Pantanal. Técnicas tradicionais, como o anilhamento – um anel de metal, para identificar as aves – aliam-se ao chip, que não transmite sinais, mas coleta informações e auxilia no progresso das pesquisas. “Já somos avós!”, celebra Neiva. Ou seja, as araras da segunda geração do Projeto já procriaram.

A comemoração, porém, não é completa. Ainda há obstáculos. Segundo Neiva, é necessário conscientizar os fazendeiros da região a preservar as árvores manduvira e a ximbaúva. No primeiro caso, a iniciativa foi bem aceita. Ainda assim, será preciso um replantio de manduviras para que, em duas ou três décadas, novas árvores possam manter o habitat. Já os cuidados com a ximbaúva não vem tendo a mesma recepção. O entrave: os frutos dessa árvore são tóxicos para o gado e capazes de fazer reses prenhas abortarem. Nas fazendas apenas de engorda, tem sido mais fácil convencer os proprietários a preservar as ximbaúvas. Aproliferação dos ninhos artificiais é a alternativa até que o homem ganhe juízo e dê sua mãozinha à recuperação ambiental.

Neiva Guedes recebeu prêmios nacionais e internacionais por pesquisas e descobertas. Doutora em Biologia, Zoologia e Conservação Ambiental, sonha em publicar outros trabalhos e dedicar-se ainda mais à vida acadêmica na Universidade Anhanguera-Uniderp, onde dá aulas nos programas de Mestrado. Quer, ainda, delegar a coordenação das pesquisas ao cunhado Cezar, para ter mais tempo para a família – o marido (o artista plástico Joacilei Cardoso) e a filha, Sophia, de sete anos. No entanto, se vê envolvida em muitas frentes. Até com a busca de recursos financeiros para o Projeto. “O custo anual de duas equipes de campo fica em torno de R$ 200 mil”, contabiliza. “O ideal seria duplicar esse orçamento, dobrar o número de equipes e ninhos vistoriados, instalados e reformados.”

Neiva espera que a nova sede do Instituto Arara Azul, em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, divulgue o Projeto, facilite o interesse de patrocinadores e permita a contratação de especialistas e estagiários. A inauguração está prevista ainda para este ano. Com ela, o público terá acesso ao material científico acumulado ao longo de duas décadas. O Projeto cresce. Tal como a arara azul, ele é um símbolo do Brasil.


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