Bambas do espeto

foto Carlinhos Rodrigues

O anúncio divulgado pela Rádio Bréscia FM 87,5 era incomum: “Atenção, moradores do Vale do Taquari. Temos vaga para garçom de churrascaria no interior paulista. Os interessados entrem em contato com esta emissora em horário comercial. Dá-se preferência aos nativos de Nova Bréscia”. Para quem não sabe, Nova Bréscia, cidade distante 160 km de Porto Alegre, é uma espécie de capital nacional de garçons e assadores de churrasco. Não por acaso, a oferta de emprego era na churrascaria Recanto Gaúcho, em Guaíra, no próspero nordeste paulista. Entre os poucos candidatos, o escolhido foi um jovem da cidade gaúcha.

Repetiu-se assim, via rádio, em pleno século 21, a história de milhares de novabrescienses que, nos últimos 40, 50 anos, engrossaram o êxodo rural, responsável pelo esvaziamento da pequena agricultura de Nova Bréscia, voltada para a criação de frangos e lavouras de fumo e milho. A única novidade é o aliciamento radiofônico. Antes, os jovens eram avisados por caminhoneiros ou chamados por parentes que haviam conquistado espaço em algum restaurante de beira de estrada ou churrascarias urbanas. Foram tantos que saíram de lá que a cidade virou lenda. Bastava o sujeito dizer a frase com o rascante sotaque ítalo da Serra Gaúcha – “Sou lá de Nova Bréscia, amigo” – para receber a resposta do dono do restaurante: “Está empregado”.

O acento italiano tem um motivo: Nova Bréscia leva esse nome por ter sido colonizada por imigrantes. A Bréscia italiana é a segunda maior cidade da região da Lombardia, no norte da Itália, perdendo apenas para Milão. Com quase 200 mil habitantes, reúne desde ruínas do tempo do Império Romano até construções da época da Renascença. Já a Nova Bréscia, que foi fundada em 1965 no vale do rio Taquari, chegou a ter 11 mil habitantes. Mas devido à emancipação de distritos, como Coqueiro Baixo, e a perdas de população e território, ficou reduzida a, aproximadamente, 3,2 mil habitantes que vivem do cultivo de fumo e da criação de frangos.  

Na beira da estrada
Os contratados de décadas passadas tinham direito à boca livre e dormitório grátis no alojamento da casa, mas precisavam servir a freguesia com diligência e bom humor. Geralmente com pouco estudo, começavam como garçons, mas podiam subir na carreira. Nos melhores momentos, os serviçais de primeira linha ganhavam dez ou 12 salários mínimos, dinheiro que entrava “limpo”. Dava para enviar parte à família e guardar o restante para investir em um negócio. Foi assim que dezenas, talvez centenas, conseguiram passar de garçom a patrão. Nos momentos de crise, os neobrescienses lutavam para não ter de voltar para casa, onde a quase única alternativa era pegar na enxada.

Diz a lenda que tudo começou no final dos anos 1960 na beira da BR-116, no entorno de Curitiba, onde Albino Ongaratto transformou sua lanchonete em um restaurante mais dinâmico que o velho sistema a la carte, demorado demais para a pressa dos viajantes. O tradicional almoço comercial (trivial variado, servido em travessas) foi turbinado pelo espeto corrido – garçons sorridentes, oferecendo variedade de carnes de mesa em mesa. Nome do estabelecimento: Hotel e Restaurante Blumenauense. Daí em diante, a concorrência se encarregou de acrescentar novidades: bufê de saladas e sobremesas, gôndola de pratos quentes, balcão de carnes. Tudo para acelerar o atendimento e reduzir custos. Da estrada, a receita de Ongaratto foi levada às grandes cidades e até ao exterior.

Sendo bom nas gincanas gastronômicas diárias, o garçom evoluía para a função (nobre) de assador. O degrau seguinte era tornar-se sócio do patrão ou juntar-se a amigos para abrir um novo estabelecimento. Segundo João Sérgio Rockenbach, secretário municipal de Turismo, os nativos já implantaram churrascarias em 26 países, dos Estados Unidos à China. Se não todos, a maioria começou “passando carne” em algum restaurante.

O fenômeno acompanhou a expansão das rodovias e o crescimento das cidades nas últimas décadas do século passado. Já no final dos anos 1980, Nova Bréscia reconhecia o sucesso dos migrantes ao inaugurar a estátua “Ao Churrasqueiro”, na praça central da cidade, junto à igreja de pedra, em honra a São João Batista. No mesmo embalo, em 1991, o professor e historiador Itacir Cristofoli mandou imprimir dois mil exemplares de um livro sobre a história do município em que, além dos imigrantes italianos que chegaram no final do século 20, os novos heróis são os que deixaram a terra para ganhar a vida empunhando um espeto de churrasco.

Passados 20 anos, Cristofoli tem agora apenas um surrado exemplar do livro que correu o Brasil nas mãos de membros da diáspora novabresciense. No afã de reeditar o livro com novas histórias, o mestre aposentado, que sempre morou na cidade, percebe uma mudança no fluxo migratório tradicional. Praticamente sem mão de obra para suprir as vagas abertas na roda-viva da gastronomia nacional – agora, a demanda é atendida principalmente por nordestinos –, Nova Bréscia começa a receber de volta seus filhos pródigos.

Mesmo assim, a cidade só tem dois restaurantes: o La Brescia e o Bettio’s & Lorenzon. Ambos fecham aos domingos e feriados – a população local só sai para comer fora de casa se houver festa em uma das 12 comunidades rurais do município. O La Brescia fica no térreo de um sobrado, em uma extremidade funciona um bar, na outra, um açougue, negócios de Edemir Peruchuni, que nem bresciense é: nasceu em Doutor Ricardo, a 70 km dali.

Vai e vem
Como as pessoas que partiram de Governador Valadares (Minas Gerais) ou Criciúma (Santa Catarina) para os Estados Unidos, as de Nova Bréscia mandam dinheiro para a terra natal. Umas retornam para ver os parentes, outras passam temporadas. Há também quem aplique algum dinheiro na cidade, mas a maioria prefere investir em imóveis nas capitais ou em cidades litorâneas.

Casas vazias na roça e terrenos baldios na cidade sugerem histórias de fracassos, mas os neobréscios não dão o braço a torcer. Veja-se o caso de Gelson Luiz Laste, o Tita, 53 anos, sócio do restaurante Vento Haragano, em São Paulo. Fora de Nova Bréscia desde os 17 anos, ele compara a vida de restaurateur a uma prisão. Tendo cumprido “a pena máxima brasileira de 30 anos”, admite que voltou com dinheiro suficiente para viver como “um aposentado voluntário”. Há pouco, comprou cinco hectares em uma encosta a 500 m do centro, onde projeta construir uma casa para morar com a mulher, advogada porto-alegrense que toca uma escola de danças folclóricas em Nova Bréscia. É lá que planejam criar as filhas. Enquanto esteve fora, Tita fez como o pessoal de Governador Valadares e Criciúma – ele e os irmãos Jorge e Giovanni (atuais “sócios-atletas” do Vento Haragano) enviaram o suficiente para os pais construírem uma casa no número 82 da Rua Gilberto Laste (1954-1988), homenagem ao irmão que liderou a revoada dos Laste pelo mundo da gastronomia.

Dos sete filhos do ex-alfaiate e ex-vendedor de balas Germano Laste, de 84 anos, só o mais velho permaneceu na cidade natal. Gilberto, o segundo, saiu de casa pela primeira vez com 15 anos, para trabalhar em Aracaju (Sergipe). Indo e voltando para casa com histórias espetaculares, tornou-se conhecido como Catraca e virou lenda por seu espírito empreendedor e por ter morrido jovem, vítima de um acidente de carro. Em sociedade com amigos, criou as churrascarias Galpão Crioulo, em Porto Alegre, e Fogo de Chão, em São Paulo, referências no ramo que fazem sucesso até hoje.

Sem dúvida, o monumento ao churrasqueiro no centro de Nova Bréscia inspirou-se na figura dele. “Sempre que ele vinha, era uma festa”, diz o velho Germano, que tem energia suficiente para cuidar do jardim e de uma horta a um quarteirão da praça central. Quando sente vontade de espairecer, lembrando-se dos tempos de caixeiro-viajante, pega o Mercedes-Benz (presente dos filhos) e dá uma circulada por cidades vizinhas. Se a panca de magnata desencadeia perguntas sobre a origem de sua presumível fortuna, ele conta uma história do tempo em que viajava pelo Rio Grande do Sul vendendo balas e talheres. No começo, ganhava só a comissão de venda. Depois, colocou o filho mais velho para fazer entregas, o que rendia mais comissão. Se a história não convence, ele narra proezas da prole. Se não cola, apela: “Você já ouviu falar do Catraca, o Midas de Nova Bréscia? Era meu filho”.

Homenagear os filhos ausentes parece ser hoje o grande consolo de pequenas cidades da Serra Gaúcha. Uma estátua para o falecido Albino Ongaratto, tido como o pioneiro do espeto corrido, é projeto de Adélcio Cestari, prefeito de Coqueiro Baixo, a 11 km de Nova Bréscia. Cestari foi garçom do primeiro restaurante de Ongaratto em Curitiba, mas não quis seguir com a gastronomia e voltou para a terra natal, onde acabou assumindo o pódio municipal. Segundo o professor Cristofoli, o busto de Ongaratto já foi até encomendado, mas falta definir quem vai pagar a festa.

Além dele, outros neobréscios a merecer homenagens seriam Oscar Baseggio, Deonisio Cauduro, Mairos Fontana, os Caumo, um Locatelli, os Mocellin e os Zambiasi. Citados na maior parte das conversas, eles são admirados pelo trabalho realizado e patrimônio acumulado. Entre eles, destaque para Mairos Fontana, dono de restaurantes no Rio de Janeiro e nos Estados Unidos. Segundo Gelson “Tita” Laste, Fontana foi um dos principais inovadores do ramo. Ia até buscar ideias no exterior. Anos atrás, o historiador Cristofoli esteve no Rio e foi a um dos restaurantes de seu ex-colega da escola primária. “Mairos não me reconheceu. Mas quando falei da nossa escola, ele se lembrou e até chorou”, conta.

Como a casa estava cheia, o dono do restaurante pediu desculpas por não ter tempo de bater papo e foi rodar as mesas. Fracassou naquela noite a ideia do professor de colher dados para a nova edição da sua História de Nova Bréscia. Na realidade, tem sido cada vez mais difícil para ele encontrar fontes primárias dispostas a expor os fundamentos da receita novabresciana de sucesso, feita de uma combinação da culinária italiana com a gastronomia gaúcha, tudo isso temperado por uma enorme vontade de vencer na vida. Além de sujeitar-se a uma roda-viva, a maioria dos empresários do ramo não se abre. O negócio é delicado e pode desandar facilmente. Mais até que a concorrência, teme-se a fiscalização sanitária e trabalhista: ambas podem baixar de repente, atiçadas pelo “fogo amigo”, tão invejoso quanto traiçoeiro. Por isso, os bambas do rodízio andam sempre pisando em brasa, sem tempo para alimentar a história de Nova Bréscia.

DE VOLTA ÀS ORIGENS
Todo mundo fala de garçons, churrasqueiros e prósperos donos de restaurantes saídos de Nova Bréscia, mas ninguém se lembra das cozinheiras que trabalham nos bastidores. Algumas saíram da cidade para acompanhar os maridos, mas a maioria casou “no serviço”. É o caso de Terezinha Barbieri, que conheceu Arlindo Dalla Vecchia “em trânsito”. Depois de quatro anos trabalhando em restaurantes, o casal voltou às origens para criar os filhos sem estresse. Enquanto ela cuidava do lar, ele se dedicava à extração de pedras semipreciosas, um dos bons negócios da região. No auge, apenas uma (grande) ametista rendeu dinheiro suficiente para a compra de um terreno na avenida central. Com outras pedras de menor valor, foi construída a casa onde hoje a viúva Terezinha mora com os dois filhos, que já trabalharam como garçons pelo País, mas voltaram à casa materna, onde a mesa é farta e o tempero, “louco de bom”. Dailo é pedreiro, mergulhou de cabeça no boom do programa Minha Casa, Minha Vida. Diego, o mais novo, conserta bicicletas no porão de casa. Ele se queixa do esvaziamento da cidade – a maioria dos jovens vai embora em busca de emprego. Tentando parecer revoltado, ele brinca: “O nome de Nova Bréscia devia mudar para Velha Bréscia”.


Comentários

Uma resposta para “Bambas do espeto”

  1. Avatar de Wiliam Giovanaz Figueiró
    Wiliam Giovanaz Figueiró

    Olá Geraldo. Queria pedir, por favor, caso tu leia os comentários que estabelecesse um contato comigo, pois também estou pesquiando alguns pontos da memória de Nova Bréscia, e acredito que tu tenhas algumas informações interessantes.
    abraços.

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