Quem assistiu aos recentes concertos das irmãs pianistas Katia e Marielle Labèque, em São Paulo, saiu deslumbrado com a execução de Bolero, de Maurice Ravel, que foi acompanhada pelo PIAP – Grupo de Percussão do Instituto de Artes do Planalto, formado por alunos do curso de percussão da UNESP. A obra pode ser considerada a “Mona Lisa” do repertório erudito, rivalizando em popularidade com as beethovenianas Pour Elise (ou Melô da Ultragás) e a abertura da Quinta Sinfonia (tcham-tcham-tcham-tchaaam!). Para se ter uma ideia, Bolero é tocado diariamente durante o pôr do sol na Praia do Jacaré, fluvial, em João Pessoa, na Paraíba – isso segundo a Wikipédia, que não informa se os banhistas explodem em aplausos e gritos de “valeu!” ou “lindão!”, como os colegas ipanemenses. De fato, trata-se de uma peça peculiar, uma única melodia que se arrasta por 169 compassos, sempre em Dó maior – excetuando-se uma pequena modulação para Mi – e cuja alteração só pode ser percebida pela dinâmica do conjunto em crescendo contínuo durante 14 minutos e dez segundos, às vezes intermináveis.

Não houve grandes exotismos na performance em São Paulo, como a princípio pode parecer. Ravel compôs Bolero originalmente para dois pianos e sob encomenda de uma bailarina que queria um ballet espanhol – Katia e Marielle, as tais pianistas da apresentação paulistana, quem diria, nasceram na fronteira da França com a Espanha. O cunho quase folclórico da composição obrigou o compositor francês a escolher uma percussão que fugisse dos padrões eruditos, o que legitima a opção do PIAP. O arranjo de Arthur Rinaldo e John Boudler substituiu o toque marcial da caixa por tamborim, pandeiro, berimbau, reco-reco, timbal, atabaque, ganzá, afoxé, chocalho, xequerê, caxixi, agogô e surdo. O que era basco, acabou soando tropical.

O PIAP foi criado por John Boudler em 1978, ano em que chegou ao Brasil a convite do maestro Eleazar de Carvalho. Americano de Buffalo, “Nova York”, salienta – já que há pelo menos treze “Buffalos” nos Estados Unidos -, Boudler veio contratado como timpanista solista da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) e professor de percussão da UNESP. Logo de cara, percebeu que a gig (“trampo”, em música, showzinho) de dois anos iria se estender por muito mais. Todos seus colegas voltaram, mas ele, sem conhecer nada de música nem de ritmo brasileiros, resolveu ficar, de tão maravilhado com o que encontrou aqui, em especial com suas “presas”, como viu seus futuros alunos. Assim idealizou o PIAP, Grupo de Percussão do Instituto de Artes do Planalto, – o tal “planalto” indicava uma região do campi da UNESP, já desativada. Mas a sigla permaneceu. E se o professor interessou-se pela classe, a recíproca mostrou-se verdadeira. Hoje, Boudler, que tem como codiretores Carlos Stasi e Eduardo Gianesella, formandos de seu curso, não se incomoda em funcionar como líder, office-boy, psicólogo, o que for, para a sua turma que, por sua vez, encara ensaios de 12 horas com a voracidade de roqueiros. Nesses trinta anos, foram 73 músicos formados atuantes em todo o mundo, caso de todos os sete percussionistas da Osesp e dos seis ou sete entre os oito da Banda Sinfônica. O que não deixa de ser uma prova de eficiência, já que são três vagas anuais – número que deverá ser aumentado para cinco.

Depois do primeiro ano de existência, dedicado à formação básica e aos ensaios, o PIAP iniciou uma trajetória de concertos invejável, o que incluiu a estreia, no Brasil, de First Construction (In Metal), obra composta em 1939 por John Cage – para quem o grupo paulista se apresentou na XVIII Bienal Internacional de São Paulo, em 1985. O PIAP entrava em sua primeira grande fase ao vencer, no ano seguinte, o II Prêmio Eldorado de Música, que teve como prêmio a gravação de seu primeiro disco, logo seguido por outro, Compositores da Bahia – os dois seriam reunidos no CD 86, lançado em 2004 com Sympathia, seu disco mais recente. O PIAP tem um terceiro CD lançado em 1998 com obras feitas sob encomenda para o grupo. É bom deixar claro que manter o grupo significa renová-lo anualmente, já que é composto por alunos dos quatro anos. Todo ano uma turma treinadíssima deixa o curso, enquanto outra sem qualquer treinamento ingressa na escola, alterando toda a dinâmica desenvolvida ao longo dos últimos doze meses.

Como explica John Boudler, que deixou a Osesp em 1988, embora ainda se apresente “pelo puro prazer de tocar”, o PIAP dedica-se essencialmente ao repertório contemporâneo, mesmo porque as composições para percussão são contemporâneas, datando da primeira metade do século XX, sendo Igor Stravinsky um dos primeiros a se voltar para o assunto. Boudler avisa para ninguém esperar por aspiradores de pó e britadeiras – “Isso é mais para o Tom Zé”, brinca – e nem temer o baticum ininterrupto, uma vez que resistem harmonias, produzidas por xilofones e marimbas. O que há para se curtir é o império do timbre, a liberdade promovida pela ausência da canção. O diretor afirma que o grupo está entrando em sua segunda fase de grande prestígio. Ainda vibrando com o sucesso ao lado das irmãs Labèque, o PIAP ensaia exaustivamente para a grande turnê pelos Estados Unidos a ser iniciada em janeiro. Nesta viagem -, a segunda, pois realizaram onze concertos naquele país em 1987 -, os músicos serão responsáveis por 19 espetáculos e dez masterclasses em 37 dias. A turnê, assim como as obras encomendadas, foram bancadas integralmente pela Unesp, o que demonstra a importância do trabalho em termos de divulgação e o prestígio desfrutado por John Boudler e suas “presas”.

Uma geral no PIAP
John Boudler, diretor; Carlos Stasi e Eduardo Gianesella, diretores associados.
Percussionistas: Adriano Letzel, Bruno Cabrera, Catarina Percinio, Charles Augusto, Helvio Mendes, Leonardo Bertolini Labrada, Marcos Matos, Patrícia de Paula, Ronan Gil, Saulo Bortoloso e Sérgio Ricardo Silva Coutinho.


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