Era um Brasil bem diferente deste de hoje.
Há três décadas, em plena ditadura militar, na noite de uma quinta-feira, diante de 86.677 testemunhas, um mulato magro e alto, então com 28 anos, deixou a condição de simples mortal nascido e criado no bairro da Casa Verde, na zona Norte de São Paulo, para se transformar em herói de uma nação.
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Certos historiadores garantem que a abertura democrática, depois de 13 anos de ditadura, começou de verdade na véspera daquela noite, com a demissão do ministro do Exército, Sylvio Frota, pelo general-presidente Ernesto Geisel, mas a derrota da linha dura em 12 de outubro de 1977 tem menos registros históricos do que a vitória do Corinthians sobre a Ponte Preta no dia seguinte.
Afinal, aquele 1 a 0, arrancado a oito minutos do final do jogo no Morumbi, não foi uma vitória qualquer. O Corinthians estava na fila por um troféu havia 22 anos, oito meses e sete dias, desde o 6 de fevereiro de 1955, em que conquistara o título paulista de 54. O jejum corintiano era, pois, quase uma década mais antigo do que a ditadura implantada em 1º de abril de 1964.
Na manhã de 13 de outubro de 1977, a briga entre generais pela sucessão de Geisel pouco importava a João Roberto Basílio, ainda um simples mortal que aportara no Parque São Jorge dois anos antes para assumir a vaga do semideus Roberto Rivellino. Com uma contratura muscular na coxa direita, Basílio só pensava no jogo que, à noite, decidiria mais um título paulista. “Primeiro de tudo, estava preocupado ao menos em sair na foto”, relembra. “Já pensou trabalhar duro o ano todo e, na hora da alegria, ficar de fora?”
Era o risco que corriam Basílio e o lateral Zé Maria. Teriam de passar por uma avaliação médica antes da partida. Estavam os dois em tratamento no quarto que dividiam na concentração quando entrou o técnico Osvaldo Brandão, o mesmo que comandara o Corinthians na conquista do título de 1954. Fiel leitor de Allan Kardec, com a religiosidade exacerbada pela ameaça de perder o filho vitimado por câncer, Brandão lhes contou que, durante o sono, recebera uma mensagem:
– Vocês não vão fazer teste nenhum, nem aqui nem no vestiário. Vocês vão entrar, vão jogar, nós vamos ganhar por 1 a 0 e (apontando para Basílio) você vai fazer o gol. Falou, neguinho?
Naquela época, a vitória valia apenas dois pontos – e o título estava sendo decidido numa melhor de quatro pontos, em três jogos, todos no Morumbi. O Corinthians vencera o primeiro por 1 a 0, a Ponte vencera o segundo por 2 a 1. A mais fiel de todas as torcidas já não estava tão crente no fim do jejum: 146.082 pessoas, recorde de público jamais batido no Morumbi, tinham visto a vitória da Ponte no domingo; apenas 86.677 estavam de volta naquela quinta à noite.
Foi um jogo nervoso, claro, e o Corinthians ganhou uma substancial ajuda logo aos 17 minutos do primeiro tempo: o centroavante da Ponte, Rui Rei, recebeu um cartão amarelo por reclamação e continuou a reclamar exageradamente do árbitro Dulcídio Wanderley Boschillia, que o expulsou. (Meses depois, Rui Rei trocou Campinas pelo Parque São Jorge, mas essa é outra história.) O jogo ficou à feição do Corinthians, mas todos os ataques paravam no goleiro Carlos e a decisão parecia se arrastar para
a prorrogação.
Aos 36 minutos do segundo tempo, porém, o juiz marcou uma falta a favor do Corinthians, pelo lado direito do ataque. Zé Maria levantou a bola na área, Basílio ajeitou para Vaguinho acertar o travessão, Wladimir cabeceou na volta, Oscar salvou um pouco à frente da linha do gol, Basílio pegou o rebote e, de peito de pé, mandou para a rede de Carlos. Chegava ao fim o mais renitente jejum da história do futebol brasileiro.
Encerrado o jogo, a festa corintiana espalhou-se por toda a cidade. Como se ainda fosse um simples mortal, Basílio deixou o Morumbi no carro de um amigo, a caminho da casa onde mora ainda hoje – na Casa Verde, é claro: “O Wilsinho, que tinha jogado comigo na Portuguesa, e um compadre meu, o Waldomiro, combinaram fazer um churrasco para mim, lá na minha casa, qualquer que fosse o resultado do jogo. Achei legal. Quando acabou o jogo, coloquei um boné, atravessei uma sacola no peito e saí no meio do povão até o carro. Pegamos o carro e, um pouco depois, já estava tudo parado. Era uma loucura. Um cara olhou pra mim, olhou de novo, e falou para quem estava em volta: ‘Olha o Basílio!’. Saí do carro, abracei o cara, abracei o pessoal em volta, voltei para o carro e fomos embora. Minha casa estava invadida, tinha um monte de gente lá. Varamos a noite, muito churrasco e cerveja, só fui dormir às seis da manhã. Às sete, já tinha gente para me entrevistar. Passei a sexta-feira dando entrevistas e só fui descansar no sábado, quando a gente viajou para um jogo no Maranhão, pelo Campeonato Brasileiro”.
É bem mais tranqüila a rotina atual do herói corintiano, embora não sejam poucos os jornalistas e torcedores que, vez por outra, ainda desembarcam na Casa Verde para ouvi-lo e ver de perto as relíquias por ele guardadas daquele histórico 13 de outubro: a camisa, as chuteiras e presentes que recebeu depois de amigos corintianos – um pedaço da rede e o número 1 do placar do Morumbi.
Hoje em dia, Basílio dedica a maior parte de seu tempo à Cooperativa de Trabalho de Esportistas Práticos, um grupo de ex-jogadores que presta serviço a escolinhas de esporte da Prefeitura paulistana. Mas curte, e muito, a atenção que lhe dispensam corintianos de todo o País: “Costumo dizer que muitos são chamados, mas poucos são escolhidos. E eu me sinto escolhido”.
Não se enxergue pretensão demasiada nessa declaração do antigo meia que nunca foi um craque, mas sempre se destacou em campo pelo domínio dos principais fundamentos do futebol e, em 253 jogos pelo Corinthians entre 1975 e 1981, marcou 29 gols. Bastaria aquele contra a Ponte, ele sabe melhor do que ninguém: “Eu represento toda aquela família que Osvaldo Brandão conseguiu armar em 1977”.
Naquele ano em que João Roberto Basílio se fez imortal, Pelé deixou definitivamente os campos e Maria Esther Bueno se despediu das quadras, mas o Brasil de todas as torcidas vivia tristeza ainda maior, com o fechamento do Congresso por ordem do general Geisel.
Devidamente entronizado como ícone no Memorial do Corinthians, Basílio reconhece: “Naquela época, a gente não se preocupava, eu principalmente não me preocupava, com os problemas políticos. Era uma época difícil, muito difícil. A gente não tinha a liberdade de se expressar como tem hoje. O que eu mais lembro é que a gente acompanhava muito a questão da discriminação racial, tanto nos Estados Unidos como aqui no Brasil. Eu comemorava os gols com o gesto de fechar a mão, que era dos negros americanos”.
Sobravam razões para a identificação com os Panteras Negras, além da cabeleira black power e do punho cerrado na comemoração dos gols, como lembra o mulato espigado, aos 58 anos, sentado na sala de sua casa, ao lado da mulher, a loira Ana: “Nós fomos cercados pela polícia umas duas ou três vezes. No Brasil, infelizmente, o negro é tratado assim. O preconceito era muito grande. Quando passávamos de carro por uma viatura, éramos abordados. Eu negro, ela branca, você já viu? Eles vinham atrás, pediam documentos. E era uma época difícil, a gente não podia achar ruim, não podia se exaltar nem cobrar o porquê daquela atitude”.
Era mesmo um Brasil tão diferente deste de hoje?
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