Como nos tempos do fascismo, o intolerável se infiltra aos poucos. Mas já está nos nossos bairros, na nossa porta (na periferia do Rio, de São Paulo e outras grandes cidades faz tempo que ele enegrece e enluta a vida dentro das casas). Foi essa pulsão de morte, explodindo na nossa cara, que levou um grupo de moradores de Pinheiros a reagir à execução à queima-roupa do catador Ricardo Nascimento pela Polícia Militar, sem razão alguma.
O que esse acontecimento nos ensina? Que a política de extermínio dos pobres no Brasil se intensificou e que, a partir de agora, a “limpeza” étnica e social passa a ser feita abertamente, à luz do dia, com requintes de sadismo. “Cidade Linda” quer dizer especificamente isso: extermínio dos pobres, de todos os que “sujam” a beleza da paisagem da capital. “Cidade Linda” é a eliminação de tudo o que não se identifica com a Berrini, a Avenida Paulista e a Faria Lima, e os mafiosos projetos de privatização e venda dos “ativos” da metrópole.
Nessa estratégia, governo Dória e governo Alckmin mais do que convergem: há conluio e intensa cooperação (apesar da briga de foice entre os “líderes” pela candidatura à Presidência). Polícia Militar e Guarda Civil Metropolitana são os braços armados para a execução da “limpeza” – contando com o endosso do Judiciário e do Ministério Público, é claro.
Mas não são só eles os executantes: desde que Dória assumiu a Prefeitura, multiplicam-se as ações sádicas contra os pobres – da violência explícita na Cracolândia aos jatos de água nos moradores de rua, nas noites geladas de São Paulo, da invocação da “lei” para proibir a distribuição de sopa às intervenções constantes do rapa, tirando os míseros pertences para inviabilizar o povo de rua, passando pelo enlamear sistemático da praça que os craqueiros ocupavam…
À execução de Ricardo Nascimento, como sempre impune e acobertada pelas autoridades, seguiu-se a morte, por AVC, de Piauí, companheiro de rua do catador. No dia seguinte à morte de outros três moradores de rua mortos de frio, um deles, ironicamente, na frente da Faculdade de Saúde Pública, na avenida Doutor Arnaldo.
Têm razão os militantes do movimento que protesta contra o genocídio dos jovens negros – é política de extermínio, mesmo! Assim como no Brasil rural, proliferam os assassinatos de líderes camponeses, quilombolas e indígenas (nesta mesma semana, o “Presidente” Temer entregou aos ruralistas, na bandeja, a inviabilização de novas demarcações de terras indígenas, caracterizando, além de mais uma violação da Constituição de 1988, um crime humanitário e ambiental que já está sendo avaliado no exterior).
Não é mais possível tolerar o intolerável. A corda rompeu-se, a paciência acabou. Desde a deslegitimação programada do governo Dilma Rousseff assistimos diariamente à escalada da violência fascista em todos os níveis e esferas – a começar pelo Judiciário, que viola as leis, acoberta os desmandos e colabora na instauração do Estado de Exceção em nome de uma suposta luta “contra a corrupção”.
Não há mais o que esperar. É preciso reagir a partir de onde estamos, com as armas de que dispomos. É preciso fazer proliferar as iniciativas, mesmo que no plano micro, para afirmar que não aceitamos a investida criminosa contra o povo brasileiro e o próprio País. É preciso articular tais iniciativas até que elas se tornem um tsunami que estoure a muralha de impunidade a proteger governos ilegítimos, elites corruptas e corruptoras, juízes produtores de injustiça – pulsão de morte a sugar a vida de brasileiros como a do catador Ricardo Nascimento, cujo único “crime” foi exercer uma profissão que, segundo a BBC, é responsável pela parcela mais decisiva da reciclagem do lixo urbano, e que seria extremamente cara se fosse remunerada como deveria.
Ricardo Nascimento foi executado porque sua vida de brasileiro super-explorado não valia nada, mesmo sendo ele extremamente produtivo.
*Laymert Garcia dos Santos é professor titular do departamento de Sociologia/IFCH da Universidade Estadual de Campinas, bacharel em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Sociologia das Sociedades Industriais pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) da França e doutor em Ciências da Informação pela Universite de Paris VII – Universite Denis Diderot.
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