Bastidores de uma eleição

Em setembro de 1983, depois que a Veja publicou uma última página assinada por mim, sob o título “Pela Renúncia de Figueiredo”, o jornal O Estado de S. Paulo me convidou para escrever uma coluna dominical no corpo do jornal, sobre política e economia.

Eu só conhecia o Júlio de Mesquita de vista, e quando fui tratar com ele, acertamos duas coisas: eu não receberia nada e ele não mexeria em nada do texto (mas o leria antes de autorizar a publicação); eu poderia mencionar o nome de Tancredo e defender a sua – então improvável – candidatura. Esta última providência foi tomada porque o pessoal da redação havia me prevenido que o nome de um ex-getulista como Tancredo estava proscrito de artigos no jornal. Já o Júlio, quando indagado sobre esse possível problema, simplesmente me disse: “Escreva o que quiser e sobre o que quiser”.
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Assim foi que comecei a minha colaboração com o jornal no fim de setembro de 1983. Logo em janeiro de 1984, surgiu o movimento Diretas Já e tanto eu quanto o jornal nos engajamos na campanha; ele mais discreto e eu a todo o pano. Outro ponto para o Júlio que jamais me censurou.

As Diretas duraram de 25 de janeiro – o comício na Sé – até a derrota na votação no Congresso em 25 de abril.

Após o seu descarte, seus partidários, perplexos e decepcionados, ensaiavam vários rumos: alguns simplesmente propunham uma postura recusionista, como se isso adiantasse alguma coisa; outros propunham a repetição da anticandidatura, para perder, mas marcar posição; outros, como o esperto Brizola, queriam um mandato tampão de dois anos para Figueiredo e depois Diretas; e outros começaram a trabalhar para ir ao Colégio para ganhar.

Aí surgia o problema número dois: e com que candidato (e contra quem: Maluf? Andreazza? Um militar?)? A oposição tinha três potenciais candidatos principais e outros menos óbvios: Montoro, governador de São Paulo que criara as Diretas contra a descrença de quase todo mundo; Ulisses, que empolgara o movimento e se transformara no Senhor Diretas, dono do discurso de encerramento de todos os comícios; e Tancredo, governador de Minas, com larga experiência política e maior trânsito na situação e mesmo entre o “Sistema” que qualquer outro de seus rivais.

Mas Tancredo não se atrevia a lançar-se. Considerava que a candidatura sairia de São Paulo: ou bem Montoro, ou bem Ulisses, e que ele, Tancredo, seria “cristianizado” se tentasse obter o lugar.

Mas, aqui em São Paulo, havia quem trabalhasse pela ideia Tancredo. Roberto Gusmão, seu amigo de décadas, assumira uma secretaria no governo Montoro e tratava de neutralizá-lo. Severo Gomes, íntimo de Ulisses, trabalhava por sua desistência. Em outra chave, Marco Antonio Coelho, próximo de Severo, estava em constante contato com Mauro Santayana, redator dos discursos de Tancredo e tão próximo seu quanto era possível. Assim, os paulistas tinham uma avaliação permanente dos humores de Minas.

De minha parte, sem ter qualquer posição partidária e mesmo sem influência que não fosse a da coluna, cujo “leitorado’ crescia a cada semana (na época, o Estadão tirava 550 mil exemplares aos domingos!), eu dava vazão ao sentimento arraigado há anos que a chave da saída era o nome de Tancredo.

Pensava assim e assim escrevia. Em uma série de artigos, em maio e junho de 1984, propugnei abertamente a candidatura de Tancredo, uma coisa realmente esquisita de um colunista fazer e de um jornal deixar publicar.

O lançamento
No dia 10 de junho, a minha coluna sob o título Declaração de Voto era isto mesmo – uma clara defesa da candidatura do governador mineiro como a única possível de levar de vencida as forças do sistema. (Hoje, relendo aquele texto fico pasmo em ver que a direção do jornal me deixou publicar uma coisa assim. Saudades de Júlio de Mesquita Neto.) No dia seguinte, recebi uma amável e formal carta de agradecimento do “meu” candidato.

Mas as coisas iam muito devagar. A oposição se debatia entre as suas dúvidas e temores, enquanto pela situação, Maluf ia minando Andreazza. O tempo passava e corríamos o risco de nem sairmos para o jogo. Claro que os líderes da opção Tancredo continuavam a trabalhar nos bastidores, mas eu mesmo pouco sabia dessas negociações. Sabia apenas que Tancredo gostaria de se lançar, mas só o faria com total segurança do apoio das forças paulistas.

Foi aí que Severo convocou para o dia 12 julho, uma quinta-feira, uma ampla reunião em sua casa. Estavam lá muitos dos “viúvos” das diretas, vários jornalistas, alguns políticos e membros da chamada sociedade civil. Sob a batuta do hospedeiro, logo se chegou à conclusão que a oposição devia tentar a via do Colégio Eleitoral e que o melhor candidato seria Tancredo. Em seguida, decidiu-se que era preciso fazer um “manifesto dos paulistas” que desse ao prudente quase candidato a segurança que ele tanto queria.

Acertou-se escrever imediatamente o manifesto e ao mesmo tempo coletar assinaturas relevantes que mostrassem que as forças da sociedade paulista estavam sim com a opção Tancredo. Na mesma hora, designou-se uma comissão de grandes jornalistas para redigir o manifesto e os três escolhidos Cláudio Abramo, Alberto Dines e mais um, de quem não me lembro mais, passaram para a sala de jantar do apartamento de Severo, na rua Jacurici, para chegar ao texto do manifesto.

O prato demorou para sair e alguns dos convivas mais temerosos começaram a abandonar a reunião. Vendo isso, Marco Antonio Coelho aproximou-se de mim e instou-me a redigir o documento. Com verdadeira modéstia e respeito, argumentei que era um quase amador perto daqueles grandes nomes que estavam debatendo o texto. Marco, porém, insistiu muito e então fui a um canto da sala e escrevi em menos de 5 minutos uma proposta de manifesto, curto e direto ao ponto.

Marco Antonio apanhou o papel, levou-o para a sala de jantar e o deu ao Cláudio Abramo, que o leu e com a sua inegável autoridade declarou: “É este aqui. Pronto”.

A partir desse ponto, as coisas se aceleraram: decidiu-se que outra comissão levaria o manifesto, logo no dia seguinte, para entregá-lo em mãos a Tancredo, que já estava prevenido por Mauro Santayana e Marco Antonio de sua existência.

A comissão, decidiu-se, seria composta por Severo, pai da ideia e fiador da concordância tácita de Ulisses e por Dilson Funaro, que enquanto o texto era redigido, se ocupara de telefonar para convencer (e convencera) o Antônio Ermírio a autorizar a inclusão de seu nome na lista de subscritores. Marco Antonio resolveu propor mais um nome, o meu, argumentando que eu ganhara a honra pela autoria do manifesto.

Ninguém se opôs (embora muitos se entreolhassem) e Marco foi encarregado de datilografar o texto com os primeiros nomes de subscritores, ainda naquela noite, para entregar o documento à Comissão na manhã seguinte, no saguão de Congonhas.

Assim foi combinado, assim foi feito. Embarcamos lá pelas 10h30, de sexta 13 de julho, a caminho do Palácio das Mangabeiras e da candidatura de Tancredo.

Que nos recebeu, nos agradeceu e imediatamente se pôs a campo, como candidato assumido à Presidência da República.

Epílogo
Depois do sucesso de nossa missão, tínhamos, é claro, de dar publicidade ao manifesto, para que ele surtisse efeito junto ao público em geral.

O pequeno drama de achar recursos para pagar a publicação começou. Muitos signatários e… nem um contribuinte…

Finalmente o doutor Mindlin conseguiu que o Estadão publicasse graciosamente o manifesto. Já com a Folha… não teve acordo e o Denisard Alves da FEA e então Secretaria de Finanças do Covas e eu rachamos o seu custo.

Dessa forma, no dia 17 de julho, os dois grandes jornais paulistas publicaram o manifesto dos paulistas pró Tancredo e o resto é história mais conhecida.


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