Uma coisa que nunca falta nos governos, em qualquer governo, são problemas. Não passa um dia sem que eles apareçam de onde menos se espera. Governar é encontrar soluções, com a celeridade possível, para evitar que estes problemas virem crises.
“Temos um problema”, era a frase que mais ouvia dos meus colegas da Secretaria de Imprensa nos dois anos em que trabalhei no Palácio do Planalto. “Só um?”, eu respondia, brincando, enquanto tentava advinhar de qual se tratava desta vez.
Por uma sina misteriosa que nunca consegui entender, se por acaso não havia problema em determinado momento, a gente mesmo criava um.
Fiquei pensando nesta compulsão de dar tiros no próprio pé, se já não bastasse viver em meio a um fogo cruzado, que não dá um dia de folga, ao ver hoje o caudaloso noticiário sobre a decisão do governo Lula de negar a extradição de Cesare Battisti pedida pelo governo italiano.
E me lembrei de outro episódio muito desgastante para a imagem do governo, aqui dentro e, principalmente, lá fora, quando o governo decidiu não renovar o passaporte de Larry Rother, o agora famoso correspondente do New York Times, que escreveu um texto infame sobre o presidente Lula.
Bastaria mover um processo contra o jornalista na Justiça, por injúria, calúnia e difamação, em defesa da honra do presidente. Num primeiro momento, recordo-me bem, o presidente Lula recebeu solidariedade unânime de toda a mídia e dos líderes da oposição, algo até então inédito nos dois primeiros anos de governo.
Mas, ao tomar a decisão radical que correspondia a expulsar o jornalista do país, toda a opinião pública voltou-se contra o governo, acusado de atentar contra a liberdade de imprensa, e Rother virou uma pobre vítima.
Desde o primeiro momento, fui contrário à medida e alertei meus colegas de governo para este risco (conto a história completa no livro “Do Golpe ao Planalto _ Uma vida de repórter”, da Companhia das Letras).
Com a decidida atuação do meu amigo Márcio Thomas Bastos, então ministro da Justiça, que se encontrava no exterior e voltou a tempo de consertar o estrago, a decisão foi revertida, mas até hoje é lembrada quando alguém quer criticar o governo.
Agora, repete-se a história, como revela reportagem da Folha desta sexta-feira. O jornal teve acesso ao processo sigiloso do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), orgão vinculado ao Ministério da Justiça, com todos os argumentos para não conceder o status de refugiado a Cesare Battisti, contrariando as alegações de Tarso Genro para negar a extradição.
A decisão do Conare foi em novembro, mas só ontem o Supremo Tribunal Federal, no qual tramita há anos o processo de extradição solicitado pela Itália, requisitou uma cópia do documento de 16 páginas.
Não existe “se” em política, mas imagino que se esta decisão do Conare, um orgão interministerial formado por conselheiros de diversas áreas do governo e da sociedade civil, tivesse sido simplesmente encaminhada ao STF na época, não estariam hoje abaladas as relações entre Brasil e Itália.
Nem o nosso país teria revertido contra ele um noticiário internacional amplamente favorável, agora ocupado por críticas contundentes, vindas de toda parte contra a decisão de conceder refúgio a um cidadão condenado por homicídios e práticas de terrorismo pela Justiça italiana.
Mais do que a decisão em si, o que provocou a violenta reação do governo italiano foram os termos utilizados pelo ministro da Justiça, Tarso Genro, para negar o pedido de refugio, aceitando as alegações de Battisti, segundo as quais correria risco de vida e de perseguição política caso voltasse à Itália.
Ao contrário de Genro, o Conare reconhece em seu documento que a Justiça italiana é democrática e respeita os direitos humanos.
Seja como for, a última palavra (poderia ter sido a primeira) sobre o caso agora será dada, provavelmente na próxima semana, pelo Supremo Tribunal Federal, que concedeu ontem prazo de cinco dias para que o governo italiano se manifeste sobre o pedido de liberdade apresentado pela defesa de Battisti.
O ex-militante político, que virou escritor e se refugiu primeiro na França, antes de vir para o Brasil, em 2004, depois de ter sido um dos líderes do grupo Proletários Armados pelo Comunismo, foi condenado na Itália à prisão perpétua, já faz 15 anos.
Não fosse esta nossa mania de criar e ampliar problemas onde eles não existiam, deixando questões jurídicas para serem decididas no lugar adequado, ou seja, na Justiça, não transformando tudo em questões políticas, Larry Rother e Cesare Battisti jamais teriam virado manchete de jornal, pelo menos no Brasil.
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