Beijo-te com este livro

Poder do livro, poder da palavra, não raro o conteúdo se sobrepõe ao suporte. As religiões do livro são, antes, as religiões da palavra. O ato mesmo de ler um livro evoca menos o suporte do que seu conteúdo, por mais consciente que seja o leitor do poder exercido pelo formato, pelo papel e pela tipografia sobre sua leitura. E não poderia ser diferente. Ou poderia?

Em um dos muitos julgamentos que elevaram o romance de D. H. Lawrence, O Amante de Lady Chatterley (1929), à condição de inimigo da ordem social, o júri, na presunção de imparcialidade, foi desafiado a uma prática no mínimo curiosa. Para testar a natureza subversiva do romance e seu poder sobre os leitores, cada jurado foi convidado a tomar um volume, isolar-se de qualquer contato social e o ler de forma intensiva, à exaustão. Uma vez devassado o réu, o veredito não poderia ser outro, senão sua condenação à clandestinidade. Apenas os novos ventos de 1960 alçariam o pequeno volume – por força da lei, note-se – à condição de clássico Penguin, na Inglaterra.

Um atentado contra “as instituições democráticas”, concluiria o editor de Henry Miller, em Paris. Afinal, não tiveram destino diverso as publicações realizadas durante sua feérie parisiense, no entreguerras. Em 1950, as edições Du Chêne publicavam o Trópico de Capricórnio com um prefácio inflamado do editor, verdadeiro manifesto contra a censura que recaía sobre o autor, e sobre a liberdade de expressão de modo geral. Esses dois exemplos revelam, no final das contas, que apenas a massificação dos livros e, na falta de termo mais preciso, a banalização do sentido que se atribuía à literatura licenciosa, erótica ou obscena, nos anos não menos feéricos de 1960-70, tornaram vazias as leis que impunham o silêncio das palavras e o desaparecimento de seu suporte. Mas não o poder perturbador do livro.

Afinal, se parece certo que o livro desaparece no momento mesmo em que se o abre, o que torna a atenção sobre o texto pretensamente mais severa do que aquela que se tem sobre o suporte, não menos certo é o medo ou a vigília que o objeto livro desperta entre os espíritos mais devotados. “Desconfie sempre de um homem que carrega consigo um livro em pequeno formato”, alertara Mercier, às vésperas da Revolução. Tratar-se-ia, segundo o autor, de literatura licenciosa, erótica ou política. Pouco importava, seus efeitos eram igualmente perturbadores.

A imaginação bem se esforça para alcançar a experiência de cada um daqueles jurados, em condição de total isolamento físico, tendo a seu alcance apenas um exemplar do libidinoso romance de D. H. Lawrence, o qual, por seu pequeno formato, diria Rousseau, “lê-se com uma só mão”. Ainda sobre o efeito prolongador do suporte sobre o conteúdo, mais vale a mensagem de Shakespeare, citada à guisa de dedicatória: “I kiss you with this book”.


*Professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Autora, entre outros títulos, de O Império dos Livros. Instituições e Práticas de Leitura na São Paulo Oitocentista, Edusp/Fapesp, 2011 (vencedor do Prêmio Sérgio Buarque de Holanda – Melhor Ensaio Social 2011, da Fundação Biblioteca Nacional). Editora da Revista Livro, do Núcleo de Estudos do Livro e da Edição (Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária – USP).


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