Podem chamá-la de qualquer coisa. Até de perua. Ela não se importa. Com fidalguia, passa para a fila da direita e não dá bola para as chacotas. Ao completar 60 anos, a Kombi, essa senhora modesta e discreta, continua mantendo a linha – ou as linhas. E olha que ela já ouviu de tudo. Até desaforos.

Ao longo de seis décadas, foi chamada de lenta (“Sai da frente, lerdeza!”) e de barulhenta (quando rodada com um motor 1.200, refrigerado a ar). Também se viu tratada de mal-acabada e, sobretudo, de ultrapassada, com o perdão da rima. Tudo bem. Ela nunca pretendeu ser um prodígio de velocidade, muito menos de aerodinâmica ou design. Ergonomia? Entre tantas imprecações, jamais ouviu essa palavra. Convenhamos, a posição do motorista está longe da ideal, assim como a da direção, parecida com a de um ônibus. Melhor deixar para lá. A Kombi não foi criada para essas frescuras.
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Quando, em 1947, a Volkswagen incumbiu o engenheiro holandês Ben Pon de desenvolver um veículo utilitário de preço acessível – e suficientemente reforçado para transportar 800 kg -, deixou claro que o trabalho teria como ponto de partida o conjunto mecânico do Fusca. Era o mais razoável, em uma Alemanha às voltas com a reconstrução, passados somente dois anos do fim da Segunda Guerra. Ben Pon previu um chassi tubular e linhas retas. Não conseguiu bons resultados. O jeito foi recorrer a um monobloco e forjar formas mais arredondadas.

Em 1950, chegava às ruas da cidade de Wolfsburg a Kombinationsfahrzeug, um nome típico do inflexível léxico germânico, e que pode ser traduzido por “combinação de veículos”. Outros automóveis da época tornaram-se peças de museu, ou circulam, longe da aparência inicial, pelas ruas de Havana, graças aos mais criativos mecânicos do globo, os cubanos. Já a Kombi pode gabar-se – sem nenhuma soberba, frise-se – de manter-se uma sexagenária em plena forma e com fiéis admiradores. Muitos dos kombimaníacos são, sim, empresas e pequenos comerciantes, atraídos pelo preço, a durabilidade e a facilidade de manutenção. Mas não só.

O jornalista Heródoto Barbeiro é fã desde adolescente, quando dava duro na oficina mecânica do pai – como explica no exclusivo texto da página seguinte. Já o mestre-cuca inglês Jamie Oliver faz questão de mostrá-la em quase todos os programas da série de TV Naked Chef (exibido no Brasil pelo GNT). Embora, para muita gente boa, a Kombi seja só um anacronismo sobre rodas – e, a rigor, essa turma tenha lá argumentos sólidos para o julgamento -, de uns tempos para cá, a veterana perua tornou-se, veja só, até estrela de cinema.

Citemos apenas três filmes recentes, dos muitos que protagonizou. No longa de animação Cars, ela retoma seu papel dos anos 1960: desponta ainda mais hippie do que a esquina Haight/Ashbury, de San Francisco, Califórnia (leia a reportagem seguinte). Em Little Miss Sunshine, assume outro personagem característico, ao transportar uma família de classe média pelas estradas dos Estados Unidos; enquanto em Diamante de Sangue, é pilotada por Leonardo DiCaprio. Se uma nova produção cinematográfica precisar de uma frota de peruas novinhas, basta recorrer à fábrica da Volkswagen em São Bernardo, na Grande São Paulo. O Brasil é o único País onde a Kombi continua, firme, em linha de montagem.

A constante demanda explica o fenômeno de ser o mais antigo modelo ainda produzido no País, ainda antes do Fusca. De 1957 – quando começou a ser fabricada em São Bernardo – a fevereiro de 2010, nada menos que 1.360.850 unidades saíram rodando por aí. A procura continua. De janeiro a fevereiro deste ano, foram adquiridas 3.851 unidades 0 km, o que corresponde a 4,5% das vendas dos veículos comerciais leves.

Pareceria pouco, não fosse um dos segmentos mais concorridos. Quem compra? Pesquisas da Volkswagen revelaram que 71,4% da produção do ano passado se viram entregues a empresas de médio e grande portes, enquanto 24,7% passaram às mãos de pequenos empresários e particulares. Os demais 3,9% foram adquiridos por órgãos do governo.

Uma cirurgia plástica – ou face lift, no jargão dos fãs de automóveis – que mude as formas originais da Kombi não costuma ser bem-sucedida. No entanto, hoje, a sexagenária desfila com nova modelagem, que, longe de a tornarem fashion ou fancy, ao menos adequaram o guarda-roupa aos novos tempos. Entre as novidades das últimas duas décadas, estão os freios a disco na frente e válvulas moduladoras de pressão para as rodas traseiras. Outra, o motor Total Flex 1.4, de 8 válvulas, arrefecido a água – e menos barulhento.

A Kombi suporta ser chamada de tudo. Até de pão de forma. Menos de senhora acomodada.

VOCÊ VEIO DE KOMBI?
Heródoto Barbeiro*

Chegar de Kombi é mais ou menos como entrar pela porta do fundo. Dar uma carona na simpática van é ainda mais constrangedor. Certa vez, eu apresentava o programa Opinião Nacional, da TV Cultura de São Paulo, que terminava às dez da noite, e um dos convidados não conseguiu táxi para voltar para casa e na saída me pediu uma carona. Era o senador Eduardo Suplicy, que morava em um aristocrático bairro da cidade. Diante do pedido, não tive outra alternativa se não dizer a ele que estava de Kombi… Lá fomos nós em um modelo antigo, que precisava de reforma e pintura para transportar um senador da República.
Essa paixão nasceu na Baixada do Glicério, onde meu pai tinha uma oficina mecânica e eu trabalhava como auxiliar, de borracheiro a mecânico. Lá, se aprendia de tudo, especialmente a dirigir e a consertar Kombis, que eram carros para qualquer necessidade. Colocar o motor refrigerado a ar no ponto era possível só com uso de uma simples chave de fenda. Trocar um platinado, ou um cachimbo, ou uma bobina era coisa que qualquer principiante como eu era capaz de fazer. Tudo era fácil, até mesmo usar a chave de roda para soltar a polia do dínamo. Ainda não tinha alternador, para trocar a correia do motor. É verdade que as velhas Kombis não paravam, nem mesmo quando quebrava o cabo de aço que comandava o carburador. Era só prender a borboleta aberta, engatar logo
Heródoto Barbeiro teve várias Kombis. Nos fins de semana, dirige um modelo novo rumo a seu sítio
uma segunda, desembrear, dar a partida e na hora que o motor roncava acelerado, era deixar andar. E andava. Além de uma mecânica simples, que qualquer um era capaz de aprender, a Kombi carregava tudo o que cabia em seu interior, geralmente sem banco para se ter mais espaço.
Da Baixada fui parar na Serra do Mar. Comprei um pedaço da Mata Atlântica que foi transformada na Reserva Mahayana, no município de Mogi das Cruzes. Não havia estrada, o terreno íngreme e os caminhos esburacados. Era a desculpa que eu precisava para continuar de Kombi. Ela era um cabrito montês e quase tudo chegou lá a bordo da van, ora azul, ora saia e blusa, hora pintada de “batkombi”, ora amarelinha de tanto barro. Mas, o sucesso maior era a Kombi do Abdalla, um amigo turco que me visitava e tinha tudo dentro da poderosa: pá, picareta, enxada, machado, sacos de estopa, pedaço de trilho, latas vazias, ferro velho, enfim uma quantidade assustadora de coisas que ninguém usava nunca, mas estava tudo lá para uma emergência. Hoje, ainda vou para lá de Kombi, sou um kombeiro de final de semana e ela faz o maior sucesso na chegada, é só abrir a porta e a cachorrada se esborracha no banco de trás prontos para um tour no meio do mato.
*Heródoto Barbeiro é jornalista da TV Cultura da Rádio CBN


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