Vida de palhaço não é brincadeira. Ainda mais quando o artista é da trupe dos Doutores da Alegria, que há 17 anos faz dos quartos de hospital um picadeiro para alegrar a vida dos doentes, principalmente crianças.
A reportagem de Brasileiros acompanhou, em julho, uma jornada destes palhaços no Hospital da Criança, no Jabaquara, e saiu de lá com a certeza de que existe vida, e vida com alegria, lá onde muitas vezes ela está no limite entre a esperança e a agonia. Precisa ser muito palhaço para encarar este desafio duas vezes por semana. Criador e líder dessa trupe, o ator Wellington Nogueira, retirado do dia-a-dia das palhaçadas para cuidar da organização do grupo, não quer, porém, outra vida.
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Vida de palhaço não é brincadeira, mas é muito boa, sim senhor, como podem atestar os 58 terapeutas dos Doutores da Alegria hoje aprontando em 18 hospitais de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Belo Horizonte.
Eles já visitaram mais de 550 mil crianças e adolescentes, convivendo com 13 mil profissionais de saúde que beneficiaram cerca de 600 mil famílias. Ganham, em média, de R$ 140 a R$ 200 por dia de trabalho, mas o bem que fazem para tanta gente pequena não há dinheiro que pague, como o leitor poderá constatar nas histórias publicadas nas páginas seguintes.
“Aqui começamos”, vai logo contando, no seu jeito festeiro e despojado, o homem que deu início à história neste mesmo lugar, no Hospital Nossa Senhora de Lourdes, no Jabaquara, em 1991. Diante do espelho, manobrando a maquiagem com as duas mãos, enquanto se veste e se pinta de Dr. Zinho, seu personagem na trupe dos Doutores da Alegria, o ator Wellington Nogueira, 47 anos, dá uma volta no tempo.
No começo da manhã de uma segunda-feira, em que o País só falava das lambanças federais em torno do caso Daniel Dantas, encontramos Wellington no pequeno vestiário reservado aos palhaços, no primeiro andar do velho prédio do hospital geral, totalmente renovado há pouco tempo. O Hospital da Criança, bem em frente, onde ele vai se apresentar, inaugurado em 1997, tem acesso por um túnel sob a Rua Perobas.
Voltamos então ao final de 1990, ano em que Wellington retornou ao Brasil, depois de uma longa temporada de oito anos em Nova York, onde trabalhou no Clown Care Unit do Big Apple Circus, um programa lançado por Michael Christensen, em 1986, no qual ele se inspiraria para criar os Doutores da Alegria aqui.
Ao chegar a São Paulo, foi direto para o Incor, onde seu pai, um corretor de imóveis, com o mesmo nome que ele, estava internado após sofrer um derrame. “Trouxe as coisas de palhaço?”, quis saber o pai, já ciente do que Wellington havia aprendido durante seus anos de estudos nos Estados Unidos. “Então, vai trabalhar, tem que ir com quem precisa, meu filho, porque eu já estou rifado…”, resignou-se o pai, que morreria poucos meses depois.
“Eu não tinha idéia nem por onde poderia começar”, recorda o palhaço, que sempre se emociona ao falar desses primeiros tempos da carreira, quase estragando a maquiagem cuidadosamente pintada. Depois de ir a vários outros, Wellington veio parar por acaso no Nossa Senhora de Lourdes, um hospital do qual nunca havia ouvido falar. “O problema é que ninguém entendia esse meu trabalho que eu queria fazer com os doentes porque ninguém tinha feito isso antes.”
Na mesma época em que era implantado o Estatuto da Criança e do Adolescente, a UTI infantil do hospital estava passando por um processo de reestruturação. Era para ser só um primeiro contato, mas a reunião dele com a administradora Cristiane D´Andrea acabou se esticando por quatro horas. No final, ela só queria saber quanto custaria seu trabalho – um assunto sobre o qual ele também não tinha a menor idéia.
Wellington lembra-se bem que estava de terno e gravata, carregando uma maleta 007 bem cafona. “Eu me senti num filme de ficção científica.” No caminho de volta para casa, ao descer do metrô na Estação Paraíso, o ator se daria conta de que seu sonho, mais cedo do que ele mesmo pensava, se tornara possível: daqui em diante, ele seria um palhaço de hospital, o primeiro “Doutor da Alegria”.
Já há algum tempo, Wellington deixou de participar das visitas rotineiras aos hospitais para trabalhar no aprimoramento e na expansão do grupo, dedicando-se à formação de novos palhaços e a um conjunto de atividades relacionadas aos Doutores da Alegria.
Para nos mostrar na prática como funciona a terapia dos palhaços, hoje ele está aqui ao lado de dois colegas. Dagoberto Feliz, 47 anos, era músico, pianista e regente, trabalhou em teatro e está há seis anos na trupe. Fernando Paz, 35 anos, formado em letras, foi colega de Dagoberto no teatro e incorporou-se ao grupo em 2005. Dagoberto conta que não teve muitas dificuldades para trabalhar diante da platéia de uma pessoa só. “É um contato muito pessoal, você vai descobrindo o que fazer pelo olhar do outro, sem forçar nada.” Certa vez, quando ainda trabalhava no Instituto da Criança do Hospital das Clínicas, uma menininha quis ficar um pouco com o cachorro de pelúcia que levava nas apresen- tações, o Melquíades.
Ao final da visita, pediu o bicho de volta, mas não houve jeito. Durante dois meses, houve uma negociação, a brincadeira sempre era essa. Dagoberto até trouxe outro cachorro, apresentado como irmão de Melquíades, o Malaquias, para ficar no lugar dele, mas não teve jeito. “O Malaquias não se adaptou”, explicou a menina, e assim acabou adotando o cachorro de Dagoberto.
Ator, autor e tradutor de teatro, Fernando Paz nunca vai esquecer do menino Vinicius, que estava internado na UTI do Hospital do Mandaqui. O contato dele com o mundo era limitado por uma bolha de vidro que o protegia e, por isso, a brincadeira com Vinicius só podia se dar a distância.
Numa das visitas, Fernando percebeu a alegria do menino quando via Uga, um fantoche de dedo em forma de tartaruga, e compôs na hora uma música, que ele sempre pedia para ouvir de novo.
Uga, uga, é a nossa tartaruga
Ela mora no mar
Põe os ovos na areia
Gosta da lua
E da maré cheia
Os três colocam seus aventais de médicos, pegam os instrumentos de trabalho e ficam brincando um com o outro – é o ritual de aquecimento. Wellington toca flauta com o nariz, Fernando carrega um violãozinho, pequeno como ele, Dagoberto leva seu acordeão. O velho chapéu que o líder do grupo não larga ele comprou na sua primeira viagem à Disneylândia e só foi reencontrar, jogado num canto do armário, quando virou palhaço em 1991. Trata-se mesmo de um adereço engraçado, “mezzo napoleônico, mezzo bávaro”, segundo o dono.
A caminho do túnel que os levará ao Hospital da Criança, eles cumprimentam e brincam com todo mundo como se fossem antigos funcionários. Parecem estar o tempo todo em função. Fazem um breve alongamento enquanto esperam o elevador, e lá vão eles. Distinto público, caros leitores, a partir de agora, com vocês, os Doutores da Alegria: Dr. Zinho (Wellington), Dr. D. Pendy (Dagoberto) e Dr. Montanha (Fernando).
A primeira parada é na UTI infantil, onde pedem para a gente não entrar. Faz sentido: se um trio de palhaços já pode perturbar a rotina de uma UTI, dois repórteres perturbariam muito mais… Do vidro na porta dá para ver que eles se divertem tanto quanto as crianças, ou mais – afinal, não estão doentes… Ao cruzarem na saída com uma enfermeira empurrando uma maca, fazem troça:
– A senhora tem carta para dirigir isso? Não tem medo de passar pelo bafômetro? Numa cama da enfermaria, reencontram o menino Marcelo.
– Nossa, como você cresceu!….
O menino vai ter alta hoje, eles se despedem com um forte abraço. Sempre que os palhaços aparecem, Patrícia Pinheiro, enfermeira supervisora da Unidade de Cirurgia Infantil (UCA), larga o que está fazendo para entrar na brincadeira. Há seis anos no Hospital da Criança, ela já os conhecia do tempo em que trabalhava em Mogi das Cruzes, como vai me contando:
“Nos hospitais hoje, trabalhamos muito com a humanização dos procedimentos e, por isso, eles são muito importantes para nós. Estes ‘doutores’ aí ajudam a distrair as crianças para elas não lembrarem o que estão fazendo aqui dentro. É bom não só para as crianças mas para nós adultos também…”
Patrícia repara nas minhas anotações, e ri:
– Nossa! Mas depois o senhor vai entender o que está escrito aí? Parece letra de médico…
A rotina dos Doutores da Alegria, que se apresentam sempre em dupla, prevê duas visitas semanais (às segundas e quartas ou às terças e quintas-feiras) aos doentes nos hospitais em que trabalham, onde passam em média seis horas por dia. Em julho, eles fazem o mês do “cachorro louco”, que eu sempre pensei ser em agosto, quando todos os palhaços passam por todos os hospitais. De vez em quando, como hoje, Wellington vai junto para ver como anda o trabalho da rapaziada.
Como o bom humor faz parte do seu ofício, definem seu trabalho como científico: é a “bestereologia”. As sextas-feiras são reservadas para o desenvolvimento pessoal desses cientistas. Em sua ampla sede, na Rua Alves Guimarães, em Pinheiros, eles se reúnem numa “roda artística”.
Para trocar impressões e expe- riências do trabalho na semana, contam histórias uns para os outros no palco do casarão, sempre sob o comando de Beatriz Sayad, atriz e palhaça, filha de João Sayad, secretário estadual da Cultura. Nos finais de semana, para completar a renda, a maioria dos palhaços apresenta-se em teatros e circos.
– Eu não te vi ontem desfilando no concurso de Miss Universo? – provocam ao encontrar uma médica muito bonita.
– Você vem todo dia aqui? – caçoam de uma veterana enfermeira.
Só não acha graça quando os vê a fisioterapeuta Kelly Veiga, 25 anos, que se esconde atrás do balcão da enfermagem. “Desde criança, sempre tive medo de palhaço”, justifica. “Por isso, nunca gostei de circo.” O baixinho Dr. Montanha, com ares de mentor intelectual do grupo, mostra-se compreensivo: “O que ela tem chama-se ‘colrofobia’, que é a fobia a palhaço. Por que tem esse nome? Ah, isso eu não sei…”.
Dr. Zinho explica que algumas crianças assustam-se com qualquer barulho no hospital – e palhaços costumam ser barulhentos. No saguão do setor Primeira Pediatria, uma senhora faz questão de cumprimentar os palhaços. “Parabéns pela vida que vocês trazem aqui”, diz a professora Maria Neuza, de Campinas, que está há oito dias acompanhando uma sobrinha no hospital. “No meu tempo de criança, não tinha nada disso. Que Deus abençoe o trabalho de vocês. Fico até arrepiada quando vejo as crianças sorrirem mesmo sentindo dores na UTI.”
Quarto 181. Chegamos atrasados para a visita. “Já estamos indo embora”, informa o pai. “Tudo bem, já tirei foto com eles na semana passada”, consola-se o pequeno paciente. De quarto em quarto, chegamos ao de Cauã, de seis meses, que sofre de hidrocefalia, e também quer ir embora, mas não pode. A mãe, Irene, diz que ele fica uma semana no hospital, vai para casa, uma semana depois tem que voltar de novo, “por causa de uma válvula que botaram na cabeça dele”.
– Vim aqui para te oferecer uma música – anuncia Dr. Montanha. A senhora gosta de “Pizza Amanhecida”?
– A senhora não quer levar o Dr. Montanha para casa? – provoca o Dr. D. Pendy. Ao seu lado, a enfermeira Carla Isnard Leonardi me conta que é fã deles. “Esses palhaços são fenomenais, tanto para as crianças como para nós…”
Quarto 271. A criança está dormindo, mas os pais se divertem ao ver Dr. D. Pendy entrar no quarto com uma enorme cueca, perguntando:
– Vocês sabem quem perdeu isso?
Quarto 275. Dr. Montanha aparece com um pente gigante e se oferece para arrumar o cabelo de Lúcia, mãe de Tainá, de 10 anos que está há uma semana internada com pneumonia.
– Vai fazer isso na menina, a doente é ela – reclama Lúcia, para a alegria da filha, que se diverte.
– Mas você foi a sorteada, agora não tem jeito – retruca Dr. Montanha, que coloca a cueca na cabeça da mulher. “Isso é para você se proteger do sol. Com esses problemas na camada de ozônio, é bom não facilitar…”
De cueca e laço vermelho na cabeça, Lúcia sai dançando no quarto ao som de uma tarantela em homenagem ao seu nome.
– Nunca me senti tão deusa… – diz a mãe para Tainá, que a esta altura já nem parece doente.
– Não sabia que minha mãe era uma artista…
Chega a comida, acaba a brincadeira, vamos em frente.
Quarto 276. Ninguém precisa dizer nada para percebermos que a situação aqui não está para palhaçadas. Em segundos, o clima muda radicalmente. Fraquinho, sem se mexer, Marcos, de um ano, está deitado do mesmo jeito que chegou há uma semana, conta a jovem mãe, Taís. Marcos tem um tumor no rim.
Os Doutores da Alegria, dessa vez, nem ousam chegar perto. Ficam parados junto à porta, só entoando baixinho uma antiga cantiga de ninar e soltando bolinhas de sabão. Dr. Montanha ainda tenta animá-lo com um burrinho de madeira que mexe a cabeça, mas nada. Ficamos assim meia hora, só fazendo companhia para o pequeno paciente.
Quarto 278. Aqui está internado um velho conhecido dos palhaços. Rafael comemorou seu primeiro aniversário no hospital. Hoje, com 11, recupera-se de uma cirurgia no estômago. Como ele está bem, os três já entram no quarto imitando bichos, parece que abriram todas as jaulas do zoológico. Rosa Maria, a mãe, diverte-se como se estivesse num circo de verdade.
– Onde eu morava, na Ilha Comprida, tinha um galo que cantava igualzinho… Quarto 273.
– Quem é mãe de quem aqui? – vai logo perguntando Dr. D. Pendy, que percebe como a menina Camila está bem disposta hoje. – O que tem na sopa da Camila? Será que tem cobertor? Será que tem televisão? Será que tem penico?
– Nãaaaaao! – responde Camila, de 4 anos, que ri o tempo todo, entra no clima dos palhaços e começa a cantar junto com eles.
Fran, a mãe, nem acredita no que está vendo. Há apenas duas semanas, os médicos tiraram um tumor da cabeça de Camila. “A gente nem sabia que ela tinha isso. Camila nunca teve nada, sempre foi uma menina sadia. Apareceu de repente…” No saguão da Terceira Pediatria, os palhaços se descontraem das histórias que acabaram de ouvir, cantam e fazem coreografias com as enfermeiras, carregando um enorme osso de plástico que é usado como microfone.
Quem mais se diverte é Nurimar Anduolo, escriturária do andar, que está no hospital há tanto tempo quanto Wellington Nogueira, e se declara apaixonada por ele. “Este é um caso velho, mas o meu doutor está cada vez melhor…”, derrete-se.
– Por que então não leva ele para casa? – provocam os outros dois.
– Se a esposa dele deixar…
Wellington gosta dessa vida, dá para perceber, mas agora ele raramente reencontra o pessoal dos seus primeiros tempos no Hospital Nossa Senhora de Lourdes. “Chegou uma época, faz uns três, quatro anos, que eu deixei o hospital e fui para a área estratégica, pensar no futuro dos Doutores da Alegria.” Em outras palavras, ele cuida hoje da holding do grupo, que abriu uma rede em outros Estados, criando outros espaços de trabalho.
Pergunto a ele como consegue alternar em segundos seu método de trabalho, de um quarto para outro, como acabamos de ver, quase sempre no limite entre a alegria e a tragédia, a vida e a morte. Como um verdadeiro professor de “bestereologia”, Wellington gosta sempre de dar exemplos e lembra de um episódio bem emblemático que aconteceu com seu colega Dr. Mané Pereira, o nome de guerra (no caso, melhor dizendo, de paz) de Márcio Douglas.
Douglas estava começando seu trabalho com Soraya Saide, coordenadora artística responsável pela seleção e treinamento de palhaços dos Doutores da Alegria. Atriz formada pela Escola de Arte Dramática da USP, com estágio na Clown Care Unit, de Nova York, Soraya trabalhou em teatro e está nos Doutores da Alegria desde 1993. Em Boca Larga, o anuário que os Doutores da Alegria editam desde 2005, ela relata o episódio citado por Wellington:
“Uma experiência forte aconteceu em 2004, logo no primeiro dia de treinamento do Márcio Douglas (Dr. Mané Pereira). Fomos avisados pela enfermagem, mas entre ouvir e ver há uma distância e tanto… Entramos no quarto de uma adolescente que tinha um tumor exposto enorme na cabeça. Mané desviou o olhar e foi direto para a janela procurar o burro estacionado lá fora.
Percebi a dificuldade dele e, dentro da relação de poder entre ‘branco’ (no vocabulário dos Doutores, o palhaço articulado) e ‘augusto’ (como chamam o parvo, o ingênuo da história), fomos construindo uma gag para uma saída rápida e engraçada: dei-lhe uma bronca pela má educação e o coloquei de castigo num canto, de costas. Mas com isso ele foi ganhando tempo e, quando se virou e olhou para a garota novamente, ‘só vi os olhos dela, o tumor sumiu’. Aí a história se transformou, a garota tinha dado toda a permissão do mundo e o jogo se estabeleceu.”
Um belo dia, tempos depois, recorda Wellington, Dr. Mané Pereira apareceu para trabalhar com um desentupidor de pia na cabeça enfeitado com uma flor no meio. “Era o tumor resolvido pelo palhaço…”. Por isso, diz o fundador do grupo, a palavra de ordem dos Doutores da Alegria é sempre “escutar e olhar, não impor nada, estar disponível para o outro, descobrir o que não está explícito”. Mesmo com todos esses cuidados, ele admite que tem criança que não gosta deles. “O palhaço é o único que a criança doente pode mandar embora do seu quarto. O médico, a enfermeira, o pai, a mãe, ela não pode…”
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