Nas madrugadas das terças e sextas, a Vila Leopoldina é invadida por produtores de mudas, plantas, árvores e flores. E também por paisagistas, floristas e decoradores. Do lado dos produtores, preponderam homens de ascendência japonesa. Do lado consumidor, não se sabe por que, mulheres de ascendência italiana.

Em meio a esses agentes do mercado circulam, céleres e loquazes, os carregadores. Há também carrinhos de bolos e doces, e as barracas de sanduíche no estacionamento.

Tudo começa à meia-noite da véspera e vai esquentar lá pelas quatro da madrugada. Às sete, oito, quando chegam os amadores, o melhor da festa já foi.

O ambiente é verde e florido e, por entre os boxes, se encontra gente que cheira à terra, sabe de plantas e irradia vigor. É gente que vem de longe. Gente com pegada, gente animada.

Nesse ambiente fervilhante, desponta a barraca do Adalmiro, que serve o melhor x-calabresa da madrugada, acompanhado de café preto na caneca. É um bom começo de dia. Sobretudo porque o Adalmiro adorna esse vigoroso desjejum com músicas que dizem ao coração. Músicas que agradam e inspiram. Preponderam os boleros.

No dia 10 de dezembro de 2002, a Lua Nova, delicada casquinha, estava sobre Betelgeuse, a avermelhada estrela de Oríon. Tudo isso dependurado num prenúncio de alvorecer. Nessas circunstâncias, o Adalmiro tocou Besame Mucho.

Pode ter sido o quadro celeste. Pode ter sido o aroma mesclado de calabresa e café que supostamente desperta a libido. Não se sabe bem a razão, o fato é que o Saburo, dos cactos e suculentas, num impulso, tirou dona Gilda para dançar. Ela, simpática florista, ficou encantada. Dançaram, por que não? Foi uma única música, dançada com muita graça e humor. Outros dançaram depois, a madrugada era linda.

Assim, o Saburo criou essa possibilidade que perdura até hoje nas madrugadas do Ceasa. Começa lá pelas cinco e termina com o raiar do dia. Dançam os produtores com as floristas e paisagistas. Não são muitos não. A um só tempo, não se vê mais que seis, sete casais dançando no asfalto. Dançam umas três músicas no máximo. As mulheres dançam mais porque seus maridos não dançam. E os homens, porque só veem graça em dançar com a mulher dos outros. As mulheres não falam dessas coisas a seus maridos. Os homens não abrem o bico com suas mulheres. É segredo bem guardado.

Mas, nem tudo é platônico entre plantas e flores. Às vezes, pinta um clima, emerge uma vontade, brota um desejo. As coisas, então, se resolvem por ali mesmo. Na caçamba de uma picape ou na cabine de um caminhão. De maneira sempre discreta e ligeira. Exatamente como na histórica picotada que sucedeu a dança inaugural de 2002.

E assim seguem as madrugadas das terças e sextas na Vila Leopoldina. Inspiradas por um produtor rural de Mogi das Cruzes. Saburo Shimazaki, essa alma espontânea e boa que criou o mais improvável recanto romântico da madrugada paulistana. Um lugar de gente sóbria, trabalhadora e séria que, é bem verdade, às vezes se permite uns pequenos deslizes.


*PhD pela Universidade de Cambridge, foi professor titular da USP. É autor dos livros Choro de Homem (Ateliê Editorial) e O Pai de Max Bauer (Ateliê Editorial/Editora Brasileiros).


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