O paulistano Ming Liu, filho de chineses que se conheceram no Brasil na década de 1950, é uma espécie de embaixador dos produtos orgânicos brasileiros. Seu vínculo com o setor começou quase por acaso. Mestre em grãos pela Kansas State University, na cidade de Manhattan, no Kansas, ele tinha trabalhado dez anos no segmento de trigo e estava havia seis no mercado financeiro americano quando recebeu um telefonema do pai de um antigo colega no curso de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas em São Paulo. Era um convite para ajudar a transformar o Paraná em referência no segmento de orgânicos. Liu nem pestanejou. “Essa é a tendência do futuro”, disse ao empresário Rodrigo Rocha Loures, que presidia a Federação das Indústrias do Paraná. Pouco tempo depois, Liu desembarcou em Curitiba. Mal arregaçou as mangas, ele se deu conta de que precisava trabalhar, na verdade, em um projeto nacional. E é o que vem fazendo no decorrer dos últimos dez anos, por meio do Organics Brasil, projeto de fomento de exportação de orgânicos que coordena, em parceria com a Apex, a agência brasileira de promoção de exportações. Aos 48 anos, Liu também integra o recém-criado Conselho Brasileiro da Produção Orgânica e Sustentável, o Organis.
Brasileiros – Como você chegou aos orgânicos?
Ming Liu – Um dos meus colegas na Fundação Getulio Vargas era de Curitiba, filho de Rodrigo Rocha Loures, dono da Nutrimental, que faz a barra de cereais Nutry. Cheguei a prestar consultoria para a empresa. Quando o dono da Nutrimental assumiu a presidência da Federação das Indústrias do Paraná, ele me convidou para trabalhar em um projeto de orgânicos para o Estado. Ele era, e continua sendo, um visionário. Disse o seguinte: “Da mesma forma que lembramos de Minas Gerais quando se fala em cachaça, quero que associem o Paraná com produtos orgânicos”.
Ele era um produtor de orgânico?
Não, mas sempre teve esse foco de alimentação saudável. Foi a empresa dele que desenvolveu produtos desidratados, liofilizados, para o navegador Amyr Klink consumir na travessia do Atlântico, em 1984. Como queria fazer produtos usando a biodiversidade brasileira, com um lado social, ele desenvolveu a barra Nutry, usando as castanhas de extrativistas da região do Pará.
A ideia era ampliar a produção?
Era investir também em produtos orgânicos. Naquele momento, havia nos Estados Unidos um questionamento sobre o uso de hormônios em animais e de agrotóxicos nas plantações. Como no Brasil tínhamos que começar do zero, conversamos com o Sebrae e com a própria federação do Paraná. O plano era transformar o Paraná no estado precursor dos orgânicos, até porque Curitiba tinha a ideia de ser uma cidade sustentável. Logo que começamos o projeto, fomos à feira internacional de orgânicos de Nuremberg, para conhecer melhor o setor.
Já em 2005?
Sim. Fomos juntamente com a Apex Brasil, a agência brasileira de promoção de exportações. Quando procuramos a Apex, para ver se a agência apoiaria o projeto idealizado para o Paraná, disseram que estávamos alinhados com a perspectiva de negócios deles, mas que precisávamos ser um projeto nacional. Daí surgiu a Orgânicos Brasil, mais conhecida como Organics Brasil, por causa da repercussão da marca lá fora. Antes, o Brasil só fornecia matéria-prima. Nós construímos a imagem de produto orgânico brasileiro e incentivamos os empresários a investirem em inovação, em capacitação, para começarem a fazer produto com valor agregado.
Como atua a Organics Brasil?
É um projeto de promoção internacional. Só que, para fazer isso, precisamos estruturar a base aqui no Brasil. Era um setor que ninguém conhecia. Sabia-se que algumas empresas estavam fazendo alguns produtos, como a Jasmine e a Nutrimental. Tinha também a Bio2, que produzia uma barra de cereais chamada eBar. Então, algumas empresas estavam começando a enxergar o potencial de crescimento nesse mercado.
Dez anos depois, como está?
A percepção do consumidor mudou muito. Hoje ele está buscando bem-estar, qualidade de vida. Na alimentação, quer os produtos menos processados, os orgânicos e os funcionais, como as ofertas sem lactose. O setor não para de crescer.
Como ele surgiu?
O segmento de orgânicos surgiu nas décadas de 1920, 1930, com as ideias da antroposofia. O grande antroposófico da época, o austríaco Rudolph Steiner, desenvolveu um conjunto de valores para o ser humano estar bem no seu universo. Na saúde, a medicina antroposófica. Na educação, as escolas Waldorf. Na agricultura, o orgânico. A origem é essa. E também o movimento naturalista, com o japonês Mokiti Okada, fundador da Igreja Messiânica, na década de 1930. No Brasil, tem a Fundação Mokiti Okada, que se desenvolveu por meio da igreja. Em termos de produtos, são os Korin, que encontramos em várias partes do Brasil. Os frangos Korin vêm, portanto, dessa ideia de produtos naturais.
Como esses valores chegaram ao Brasil?
Começaram a se espalhar nas décadas de 1960 e 1970, depois que a família Schmidt trouxe as ideias da antroposofia. Quando se instalaram no País, depois da Segunda Guerra Mundial, os Schmidt montaram a fábrica de cadeiras Giroflex, que acabou financiando o desenvolvimento do movimento antroposófico no Brasil. Eles criaram uma comunidade em Botucatu, chamada Demétria, onde montaram um instituto biodinâmico, que deu origem ao selo IBD, de certificação orgânica. Dessa forma, participaram também da inserção dos produtos brasileiros no mundo, pois a certificadora IBD garante a rastreabilidade do produto a ser exportado.
Na sequência, o crescimento do setor se deu mais pela demanda do consumidor?
Nas décadas de 1960 e 1970, veio o movimento hippie. Naquela época, foram banidos vários produtos que estavam sendo usados na agricultura, como o DDT. Enfim, houve uma revolução. Tempos depois, surgiu uma cadeia de mercados nos Estados Unidos chamada Whole Foods, com a proposta de comercializar produtos integrais, macrobióticos. Daí para a frente, o perfil do consumidor de orgânico mudou. Não eram mais aqueles hippies, começaram a ser pessoas mais hedonistas.
Como?
Consumidores em busca de produtos saudáveis. Os Estados Unidos perceberam o movimento e decidiram regulamentar. Fizeram isso em 2001. A Europa regulamentou em 2004, o Japão em 2005. O Brasil lançou a lei em 2003, mas só conseguiu regulamentar em 2011.
De que forma isso foi feito?
Todo o trâmite ficou a cargo da Coordenação de Agroecologia do Ministério da Agricultura, com foco no desenvolvimento do mercado interno e da inclusão de produtores. Isso porque o Brasil tem produção, mas também tem extrativismo. Tem comunidades de regiões e culturas diversas, inclusive indígenas e quilombolas. Como envolvia das relações humanas ao meio ambiente, cinco ministérios participaram do processo de regulamentação.
Isso foi ruim?
Foi ruim por um lado, porque levamos quase oito anos para ter a regulamentação. Por outro lado, temos que reconhecer que também foi bom, porque o Brasil é um País muito diverso. Como é que você vai considerar um produtor de guaraná orgânico, que faz extrativismo, e o agricultor que planta alface orgânica no cinturão de São Paulo? O Brasil tem esse diferencial. Grande parte dos produtos brasileiros carrega uma história. O açaí da Amazônia. A castanha do Serrado. As frutas tropicais. Isso enriquece muito o produto final.
Sabe-se quantas pessoas o setor emprega?
Por enquanto, o Ministério da Agricultura tem 13 mil unidades produtivas cadastradas. O que são essas unidades produtivas? Pode ser um produtor individual, uma cooperativa, uma associação com dez, cem ou milhares de produtores. Enfim, o ministério estima que essas 13 mil unidades envolvam entre 60 mil e 90 mil produtores. Se formos para o setor secundário, que é a indústria de transformação, temos mapeado cerca de duas mil unidades processadoras, que agregam valor. Mas são poucas as indústrias 100% orgânicas. Em geral, elas têm o orgânico e o convencional.
As duas produções?
Sim, da mesma forma que acontece nos Estados Unidos. Lá, multinacionais como Coca-Cola, Danone, Mondelez, Kellogg’s e PepsiCo têm a sua linha de orgânicos. A Coca-Cola tem o Honest Tea, uma linha de bebidas orgânicas, e tem uma outra marca, a Odwalla, com barrinhas de cereais, de frutas e smoothies.
E no Brasil, a Coca-Cola tem o quê?
Tem o Matte Leão. A regulamentação no Brasil é relativamente recente. Não é de se duvidar que em pouco tempo empresas como a Coca-Cola, a Mondelez e a Danone lancem produtos orgânicos aqui. Acredito que nesse momento essas grandes empresas estudam a cadeia de fornecimento. O problema é que essas empresas trabalham com altos volumes e nossa cadeia produtiva ainda está muito pulverizada em micros, pequenos e médios produtores.
Entre essas grandes empresas não teve nenhum lançamento?
Há uns seis anos, a Pepsi decidiu lançar um produto orgânico, muito pela vontade pessoal de um de seus diretores, que era adepto da antroposofia. Nós participamos da construção da cadeia de fornecedores. Perguntei se eles planejavam trazer o Naked, um suco orgânico que eles têm nos Estados Unidos. Responderam que pretendiam criar o próprio produto. Pensaram em fazer Doritos de milho com salsa de tomate. Chamamos as certificadoras para ver quem poderia suprir a cadeia de milho, de tomate, de cebola. Constatamos que não dava para ter no volume que eles queriam. Fomos então para outra cadeia, que eles já tinham em linha, o achocolatado. O Brasil é um grande produtor de cacau orgânico. Eles montaram então o Toddy orgânico.
Deu certo?
Eles fecharam uma parceria de exclusividade de seis meses com o Walmart, que investia em uma loja sustentável em São Paulo. Só tinha Toddy orgânico naquele local. Quando acabou a exclusividade, eles foram penalizados pelo varejo. Os outros supermercados avisaram que não queriam mais comprar, que ficassem no Walmart. A Pepsi acabou tirando o Toddy orgânico de linha. É assim mesmo. Quando um produto não gira, tem de tirar de linha.
Quais as perspectivas para 2016?
Existem várias iniciativas de pequenos empreendedores de todas as regiões do País. Esse vai ser o grande desenvolvimento. Ainda não vamos ter as grandes empresas. Os pequenos empreendedores é que vão aproveitar a logística de sua região e desenvolver marcas locais. Um exemplo é um suco prensado de Curitiba, o Sabor Vivo. São vários sabores, com alto valor agregado. Cada garrafinha custa entre R$ 15 e R$ 16. A data de validade é muito pequena, mas a empresa consegue colocação regional. E aí começa a criar conceitos. Foi isso que aconteceu no mercado americano, quando os primeiros empreendedores construíram suas marcas.
Quando entram as grandes empresas?
Em um segundo estágio, com os processos de aquisição, de fusão. Nos Estados Unidos, a Danone comprou uma marca de iogurte chamada Stonyfield Farm, cujo fundador, Gary Hirshberg, é até hoje referência em termos de indústria de orgânicos. O interessante é que a Danone comprou a Stonyfield Farm, mas manteve Hirshberg na empresa. Essa é a tendência. Comprar a unidade operacional, mas manter o fundador, porque ele é a alma do negócio.
Algum investimento se destacou no Brasil?
Até 2011, a Mãe Terra era uma empresa praticamente apagada, com embalagem, de certa forma, caseira. Os cereais tinham fechamento em grampo com papel. Aí um empresário chamado Alexandre Borges repaginou a marca. Eu o conheci em 2009, na Califórnia. Ele tinha acabado de vender o negócio dele na área de internet e disse que queria entrar para o mercado de produtos saudáveis. Foi trabalhar em supermercados nos Estados Unidos, para conhecer o setor.
E depois?
Para minha surpresa, ele voltou para o Brasil e entrou para o mercado. Enxergou na Mãe Terra uma empresa que poderia se desenvolver, trabalhando melhor o mix de produtos, de conceitos. Comprou a empresa e ampliou a cadeia de produtos e deu a eles cor, vida, conceito. O orgânico passou a ser uma das linhas adotadas pela Mãe Terra.
Quanto os orgânicos movimentam?
Em 2014, estimamos um faturamento de R$ 2 bilhões. Este ano deve fechar em cerca de R$ 2,5 bilhões. É um número pequeno diante dos R$ 468 bilhões do agrobusiness como um todo, mas os orgânicos estão crescendo mais de 40% ao ano. O maior mercado do mundo de orgânicos são os Estados Unidos, que movimentam em torno de US$ 37 bilhões, enquanto o mercado mundial oscila entre US$ 73 bilhões e US$ 75 bilhões. É a metade do faturamento de uma grande corporação, mas hoje 78% das famílias americanas consomem algum produto orgânico.
A aposta é no potencial de crescimento?
Nos Estados Unidos, 35% das fazendas de orgânicos dão retorno maior e melhor do que as convencionais. Na indústria do segmento, a expectativa é continuar a crescer. Não é uma questão de moda. Vivemos hoje em uma economia totalmente globalizada. O consumidor tem acesso a muita informação. Por causa disso, não apenas o orgânico, mas todo o setor saúde tem um potencial de crescimento muito grande.
Os postos de venda vêm aumentado no Brasil?
Sim, inclusive na grande rede de varejos. A tendência do supermercado é diminuir o tamanho e melhorar a oferta. O consumidor não quer mais comprar quantidade, quer qualidade. E nesses mercados também tem produto orgânico. Outro canal de venda extremamente rentável é a farmácia. Elas oferecem própolis, barras de cereal, barras de proteína. As lojas de conveniência nos postos de gasolina também oferecem vários produtos.
Há uma estimativa quanto ao número de pontos de venda?
As farmácias representam em torno de 70 mil pontos de venda. Entre as lojas especializadas em produtos naturais, só a cadeia Mundo Verde tem em torno de 300 lojas. Não temos um número fechado, mas outro canal de comercialização que vem crescendo muito são as feiras de rua. Quanto aos supermercados, tirando as três grandes redes (Walmart, Carrefour e Pão de Açúcar), existem milhares de pontos de vendas espalhados por todo o Brasil. Às vezes, é uma rede de supermercado com duas lojas, mas que tem interesse de trabalhar com esse segmento.
Qual a taxa de crescimento do setor?
Mais de 40% ao ano. Monitoramos desde 2011. A previsão é de que, nos próximos cinco anos, a taxa continue nessa ordem, porque a nossa base de desenvolvimento é pequena. Não temos a cadeia de produtos animais. Que cadeia é essa? São os lácteos, as carnes. Ainda não temos. Por isso, temos muita margem para crescer.
Em termos de logística qual é o maior empecilho para a produção?
O maior empecilho logístico está entre o setor primário e o secundário. Dependendo do produto, a logística fica inviável. Tem produtores de fruta no Nordeste e fábricas na região Sul ou Sudeste. Fica praticamente impossível trabalhar juntos, até porque os volumes são sempre menores do que na produção convencional. Por isso, a tendência é ter marcas regionais, com unidades de fábricas próximas às áreas de produção de matéria-prima.
E qual a porcentagem da produção que vai para fora do País?
Exportam-se em torno de 50% dos produtos certificados. Em 2005, quando começamos a fazer o levantamento, as exportações foram apenas de alimentos orgânicos. Somaram US$ 9,5 milhões. Em 2014, US$ 136 milhões de alimentos, cosméticos e produtos têxteis foram exportados. Ainda não fechamos os dados de 2015, mas a previsão é de US$ 150 milhões.
Cosméticos orgânicos?
São três empresas brasileiras que exportam cosméticos orgânicos, matérias-primas, óleos, ingredientes. Quanto ao têxtil, é o algodão orgânico, aquele que tinha sido banido no passado.
Banido como?
No decorrer de sua evolução, a indústria buscou sempre o algodão branco. Muitas sementes nativas, esverdeadas, amarronzadas, foram banidas pela indústria. Na Paraíba, a Embrapa fez um trabalho de resgate das sementes nativas. Por isso, o algodão orgânico produzido no Brasil é dessas sementes crioulas banidas pela seleção de qualidade do branco. Tem um tom mais cru.
Por que esse algodão tem importância no exterior?
O algodão é uma das culturas em que mais se aplicam agrotóxicos por hectare. A pessoa não come o algodão, mas sabe que o impacto do agrotóxico no meio ambiente é enorme. Além disso, há outros fatores. O Japão importa algodão orgânico porque nele não se aplica nenhum tipo de corante químico. O padrão de beleza do japonês envolve pele muito branca, quase nunca exposta ao sol. Por isso, a pele fica muito mais sensível a tintas, a corantes.
O Brasil é campeão mundial no uso de agrotóxico. Como isso afeta o setor de orgânicos?
Existe um conflito, inclusive no Ministério da Agricultura. O Brasil é o celeiro do mundo, o maior produtor de commodities agrícolas. Para se chegar a essa marca, colocam-se os interesses na frente dos valores. E a Coordenação de Agroecologia, que regulamenta os orgânicos, está dentro do Ministério da Agricultura. De um lado, estão os interesses das grandes indústrias de sementes, de insumos. De outro, o grupo que defende a não utilização de agrotóxicos. A ministra da Agricultura, Kátia Abreu, empresária do agronegócio, já declarou que há preconceito contra o agrotóxico no Brasil. Ao mesmo tempo, a Coordenação de Agroecologia busca a total suspensão do uso do agrotóxico.
Qual a saída?
Temos de ser bem pragmáticos nessa situação. O Brasil é o celeiro do mundo. Todo mundo reconhece a riqueza que o agrobusiness gera para o País. Para resolver esse embate, não dá para, de repente, suspender todos os agrotóxicos. As duas formas de produção podem coexistir. A Coca-Cola entrou no mercado americano de orgânicos quando começou a enxergar que uma parcela da população queria produtos saudáveis. Em Brasília, no Ministério da Agricultura tem representantes do agrobusiness e também dos produtores de orgânicos. Vão ter que conviver. Não tem como acabar com isso agora, mas pode-se tentar conscientizar o produtor de que existe alternativa ao agrotóxico, que há mercado para o orgânico. Esse é o balanço que faço. Radicalizar e enfiar o pé no peito da ministra não vai adiantar.
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