Internet, eleições e boataria

O jornalista e professor de comunicação da Universidade de São Paulo, Gaudêncio Torquato, acredita – com base no seu trabalho com marketing político desde os anos 80 – que as eleições desse ano terão um novo patamar com as rápidas mudanças de comportamentos nas redes sociais. Com o crescimento do acesso a internet no Brasil, as informações, ao mesmo tempo que são mais difundidas, ganham mais ferramentas de manipulação – os chamados boatos. Para ele, além da existência de notícias falsas e da sua consequente proliferação, as mentiras são aceitas quando muitas pessoas passam a aceitá-las. Ou seja, pela redundância: “Transforme um boato em verdade três vezes, quatro vezes, sei lá quantas vezes, que se torna verdade”.

Brasileiros – Até que ponto os boatos na internet podem influenciar o debate sobre o País neste período eleitoral?
Gaudêncio Torquato: O marketing sempre usou a promessa como moeda de troca. Uma ideia, um programa, um projeto e, entorno disso, se dá uma relação de compra e venda entre o candidato e o eleitor. Essa prática vem desde os tempos idos: na história, o primeiro estrategista de marketing político foi o Quinto Túlio Cícero, em 64 a.C., que escreveu uma carta ao seu irmão, Marco Cícero, candidato ao cargo de cônsul de Roma, onde ele dizia: “Olha, você precisa circular pelas praças, pelo centro da cidade, ir em todas as regiões, visitar as associações, todos os tipos de bairros, passar conselhos, ser amigo de lideranças, dar garantias de proteção, segurança, fazer com que elas sejam propagadores de votos para você, como se elas fossem candidatas também”, ou seja, era um manual de marketing político. Esta dimensão de promessas ganhou uma nova abordagem no chamado “estado-espetáculo”. O que é isso? É um estado sinalizado pela mídia. Nós começamos a ver essa espetacularização da política com os primeiros debates, na década de 70, nos Estados Unidos, com o Nixon e o Kennedy. O Kennedy bonito, exuberante. Evidentemente, os candidatos se apropriaram das técnicas da televisão e de lá pra cá melhoraram bastante suas performances.

Brasileiros – Aconteceu isso no Brasil também?
Gaudêncio Torquato: Sim. Na época do Celso Pitta houve uma série de promessas com o tal fura-fila, e o Duda Mendonça tinha ido até a Alemanha, fotografou alguns veículos desse tipo lá, voltou, fez uma maquete maravilhosa e conseguiu colocar esse fura-fila correndo em cima de São Paulo. Uma lorota imensa. Lembro-me do Collor também, vestido com roupa de piloto de aviação militar, ia para Amazônia, fazia seu cooper, etc. Falava que queria ser o guerreiro contra os injustos, acabar com a corrupção, privilégios. Enfim, deu no que deu. Eu percebo atualmente uma vacina ética que se impôs naturalmente pela discrepância com estas promessas, e isto surgiu com esses escândalos em série, malhas de interesses escusos, a mentira passou a ser mais controlada, mais apurada, tanto que eu vejo nas campanhas que os candidatos não fazem mais a espetacularização de antes. Agora não basta prometer, tem que dizer da onde vai tirar recursos para realizar as obras que você está apresentando, por exemplo. Essas respostas todas chegaram ao interesse do eleitor.

Brasileiros – De certa forma sempre houve mentiras e verdades na política. O senhor mesmo citou Quinto Túlio. As redes sociais está tornando esse fenômeno algo maior do que sempre foi?
Gaudêncio Torquato: O que ocorre é que com a expansão da informação pela sociedade por vias tecnológicas, a manipulação se torna mais intensa. Porque há muito interesse em inventar, driblar, dissimular, em desviar, em dar uma informação diferente. A informação hoje tem muitas fontes e com a extensão da internet, com a massificação da internet, a probabilidade de manipulação é muito maior.

Brasileiros – Historicamente, quais são as fontes dessas mentiras?
Gaudêncio Torquato: O ato nasce a partir de uma pessoa ou um grupo que vai passando a informação para outras três pessoas ou três grupos e vai passando, passando, e se formando cadeias sociológicas em torno daquela versão. O jacaré nasce de uma lagartixa (risos). No caso nas redes há um propósito desses grupos de disseminar ou defender determinado argumento, onde um fica responsável por soltar a informação, os outros compartilham, os compartilhamentos se multiplicam, os exércitos de combate e defesa se organizam ao redor daquela versão, e vão se formando cadeias de dezenas, centenas, milhares e até milhões de pessoas se alimentando daquela informação falsa. Esses grupos se canibalizam até chegarem nas pessoas que só precisam consolidar uma posição que já haviam tomado.

Brasileiros – E em que momento essas mentiras se tornam verdade, professor?
Gaudêncio Torquato: O Hitler escreveu em “Minha Luta” que uma mentira dita três vezes se torna verdade. Hoje, no estado-espetáculo, essa hipótese dada por ele já não é tão sólida, pois é possível perceber que existe uma resistência muito forte a essas mentiras. Mas lá para as massas nos fundões, onde ainda existem muitas pessoas politicamente incultas, os boatos vão se tornando verdadeiros. Eu não vou dizer exatamente em que momento, mas, por exemplo: o que é que vende guaraná? O que é que vende pão? O que é que vende carro? Propaganda. A ideia é passa, passa, passa, passa. O segredo está aí: redundância. É você falar a mesma coisa várias vezes até que aquilo vira a verdade. O sistema cognitivo vai aprendendo, você vai se acostumando. É a lei da redundância, da repetição…

Brasileiros – Acontece isso com os boatos também?
Gaudêncio Torquato: Mas é claro! Acontece com os boatos. Transforme um boato em verdade três vezes, quatro vezes, sei lá quantas vezes, que se torna verdade.

Brasileiros: A aparência de verdade dos boatos ajuda na manutenção deles?
Gaudêncio Torquato: Também. O nível dos receptores das redes sociais é um pouco mais alto. As pessoas sabem mandar uma mensagem, receber uma mensagem, postar algo. É uma turma jovem que não entende de política apenas, que entra lá para dar porrada. São os black blocs da internet. Mas quando a coisa é bem feita tecnicamente, as pessoas ficam impressionadas. Em princípio, quando você recebe algo bem feito – e os recursos de edição atuais são aprimorados – você tende a acreditar, compartilhar e fazer parte da turma que defende aquela versão. Se você duvida fica até na dissonância. Quando você descobre que é mentira, fica até com vergonha. Ou então feliz por ter desconfiado.

Brasileiros – Como esses boatos se compartilhavam antes das redes sociais?
Gaudêncio Torquato: No boca a boca. O boca a boca hoje é o Facebook, o Twitter, as outras redes. Antigamente era na linguagem oral. A internet é a suspensão dos nossos aparelhos vocais para o ambiente virtual. Por isso, antigamente era muito mais difícil espalhar uma notícia falsa. Hoje é muito mais fácil. O Brasil tem mais de 100 milhões de internautas diariamente e isso só tende a crescer. A mentira está no ar!


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