Bob Nadkarni é um gringo privilegiado. Com o bom humor de sempre, vestindo bermudas, camiseta confortável e sandálias de dedos, toma café-da-manhã com seus hóspedes, também gringos, na sua varanda. Têm como cenário uma vista panorâmica da Baía de Guanabara. Todos conversam amenidades enquanto decidem o que visitar na cidade. De preferência, nenhum lugar onde haja turistas com máquinas fotográficas a tiracolo. A idéia é fugir do modelo tradicional de gringos à vista!
Esta seria uma cena comum se o breakfast fosse em um hotel carioca e não em uma pousada no alto da favela Tavares Bastos, no Catete, zona sul do Rio de Janeiro. O telefone toca diversas vezes, pois a varanda também é o ambiente de trabalho de Bob Nadkarni e fonte de inspiração para os todos os seus projetos pessoais.
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Há exatos dez anos Bob inaugurava a galeria de artes The Maze – labirinto, em inglês, no alto do morro, mostrando seus quadros expressionistas. Vários moradores da comunidade, que nunca tinham visitado uma exposição de quadros na vida, participavam da festança, curiosos com seu vizinho bizarro. Crianças desenhavam no chão de uma das salas da galeria. Na varanda cinematográfica, bebiam cerveja animadamente o cônsul britânico, o chefe da defensoria pública Oswaldo Deleuze e o ambientalista Alfredo Sirkis, do Partido Verde. Um vernissage como outro qualquer, do “asfalto”, com a presença de jornalistas estrangeiros – da BBC Television, da TV Rússia, da França, de Portugal, do Canadá – documentando o evento. O cinegrafista Luiz Eduardo Lerina registrava a festa para seu documentário Dois Mundos, em que Bob foi o tema central. Ninguém da imprensa nacional teve a coragem de subir o alto da Rua Tavares Bastos para cobrir a inauguração da galeria, para a decepção do dono da casa. Vestindo um blazer azul-marinho e com os cabelos brancos tingidos com as cores do seu Brasil “adotado”, isto é, verde, amarelo e azul, Bob explicava a todos: “O morador da favela não é bandido. Quero levar arte à comunidade”. Iniciava assim sua longa batalha pessoal para manter a família em lugar tão estimado e vencer os estereótipos de que viver em favelas é viver sempre cercado pela violência do narcotráfico.
Uma década depois, percebe-se que não foi somente este inglês bonachão que encontrou o caminho da favela de Tavares Bastos para construir o seu lar, doce lar. A comunidade também o encontrou. O inglês vivenciando profundamente a sua aldeia propiciou à comunidade da Tavares Bastos se “enxergar” sob um novo foco, mais humanitário. Sem querer, Bob Nadkarni adaptava o conceito de think globally, act locally (pense globalmente, aja localmente) no alto da favela. Hoje, os moradores têm o seu próprio gari para recolher o lixo e as crianças podem desfrutar da atuação de ONGs para aulas de capoeira, futebol, inglês, espanhol e informática.
Uma unidade do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar, o hoje famoso Bope, funciona desde janeiro de 2000 no alto da Rua Tavares Bastos, bem na entrada da favela, numa demonstração atualizada (e civilizada) do que deve ser uma instituição policial em defesa da sociedade civil. A unidade surgiu após muita insistência do Bob junto a autoridades locais para dar uma destinação melhor ao velho esqueleto de um prédio abandonado. Ali não há o confronto armado diário de policiais versus traficantes nem tiros de metralhadoras para o alto ou corpos estendidos em ruelas, para pavor de todos. Depois da inauguração, não faltou político subindo a Tavares Bastos tentando conquistar a simpatia do gringo bonachão e transformá-lo em um provável cabo eleitoral.
Hoje a casa de Bob está reformada e ampliada. Algumas daquelas telas enormes do vernissage ainda ocupam paredes inteiras. Ficaram quadros do seu tempo de cinegrafista da BBC, como óleo vermelho e preto onde exorciza o terror da Guerra do Líbano; o retrato da ex-mulher, Stela; a pintura de um garoto, Leonardo Santiago, ex-morador da comunidade, que Bob ajudou a lançar no futebol em 1990 e que atualmente joga no Ájax, da Holanda e last, but not least, o retrato do seu pai. “Um pastor anglicano que tentou me impedir de ser tudo aquilo que sou hoje”, comenta, sorvendo um gole de café bem quente.
O inglês expatriado, como é chamado por alguns hóspedes, já realizou mais de 400 documentários no Brasil. Ele se destacou quando recebeu o prêmio de melhor produtor pelo documentário Cubatão – O Vale da Morte, realizado para a Ecovision, em 1987. O escritório central da British American Enterprises Studios (Base), sua produtora independente, mantém-se em conexão com produtores europeus, norte-americanos, sul-africanos, australianos ou brasileiros.
Bob ainda está envolvido em produção de filmes, e também com aquarelas e pincéis, mas em ritmo bem mais lento. Nada que lembre os velhos tempos quando trabalhava 30 horas por dia nas décadas de 1970, 80 ou 90. “A comunidade já se acostumou com a subida e a descida de câmeras e refletores por suas ruelas”, comenta. “Muitas cenas da novela Vidas Opostas, da Rede Record, foram gravadas aqui, no ano passado. Os filmes Xuxa III, de Renato Aragão, o Passageiro, de Flávio Tambelini, e os videoclipes dos rappers Snoopy Dog, Pharrel e mais recentemente os da banda Black Eyed Peas também tiveram takes gravados aqui.”
A comunidade da Tavares Bastos já sabia que nos primeiros 20 dias de novembro o ator inglês Edward Norton seria jogado da varanda de Bob, e subiria as paredes na pele esverdeada do Incrível Hulk II, em mais um longa-metragem filmado na favela, tendo como suporte a casa de Bob.
E Bob Nadkarni costuma dizer que ainda não fez tudo na vida. Pois não é que no próximo ano ele vai estrear como ator em um filme experimental dirigido pelo cineasta e sommelier Jonathan Nossiter? Nada mal para um estreante contracenar com a atriz inglesa Charlotte Rampling e com o ator Matt Dilon? Sem dizer que ele já tem prontos 45 capítulos escritos do seu primeiro romance, The Flipside. “Essa é uma expressão que em inglês significa o que ainda não foi tocado na vida de cada um. É o lado B da vida. É quando o homem descobre acidentalmente que não precisa morrer para realizar tudo”, explica.
Certa vez, o jornalista Anton Foek, que costuma cobrir as periferias de cidades como Washington ou Los Angeles para tablóides norte-americanos, escreveu, após passar uma temporada na casa do Bob, uma história bem peculiar. Foek disse que primeiro Hollywood explodiu para o cinema no início do século XX. Em seguida, Bollywood, em Munbaii, na Índia, ficou famosa internacionalmente representando a Meca das produções independentes de baixo orçamento. Agora, existe a Bobywood, no Rio de Janeiro – a casa de Bob e seu entorno cheio de locações para produções cinematográficas.
Bob Nadkarni é mesmo uma figura! Até o inimaginável passou a ser possível depois da sua presença no topo da Tavares Bastos. Além dos filmes, dos amigos famosos, da pintura e da pousada, ele lançou um happy hour caseiro. É o The Maze Inn. São sessões de jazz, bossa nova e samba para entreter seus hóspedes e convidados com música ao vivo. Acontecem toda primeira sexta-feira do mês, a partir das dez horas da noite até o amanhecer. “A Tavares Bastos é um cantinho do paraíso e com música ficou muito melhor”, explica o alemão aposentado Rudolf, que foi jogador reserva da seleção alemã e, desde a Copa do Mundo de 2006, vive em uma suíte da pousada. O marketing boca a boca tem trazido um resultado positivo. Jovens de classe média não se intimidam em subir o alto da Tavares Bastos. Vão atrás de boa música para dançar e tomar uma caipirinha. “Como sempre na vida, estou fazendo uma coisa inédita!”, afirma este sexagenário rebelde que certamente custará a ter a mente envelhecida, enferrujada. Sem dúvida, o que mais salta à vista para quem chega em sua casa, além do belo cartão-postal, é a persistência desse estrangeiro em querer construir a sua vida em um canto que poucas pessoas conheciam ou davam valor. E, a partir desse encanto, tudo se transformou. Para toda a comunidade.
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