Como Bogotá virou a capital latino-americana das bicicletas

Ponte sobre Carrera Séptima, uma das principais avenidas de Bogotá. Foto: Vinícius Mendes
Ponte sobre Carrera Séptima, uma das principais avenidas de Bogotá. Foto: Vinícius Mendes

Da principal janela do seu escritório, na região central de Bogotá, Enrique Peñalosa interrompe momentaneamente uma leitura qualquer para observar o trabalho maquinal de um dos semáforos mais movimentados da capital colombiana. Atrás de sua mesa, um relógio confirma o que o sol forte sobre as paredes da sala já havia deixado evidente: passa do meio-dia, um dos três horários em que a prefeitura controla o volume de carros nas ruas da cidade por meio de um rodízio semelhante ao de São Paulo. Do lado de fora, enquanto o farol não abre, a cotidiana luta dos veículos, motos e caminhões pelas sobras do asfalto é interrompida quando dois ciclistas surgem no horizonte, ultrapassam os automóveis, dobram a esquina, ganham a outra parte da avenida e, então, voltam a sumir por uma ciclovia entre os prédios, num movimento de não mais do que dez segundos. “Esta foi uma das cenas mais bonitas do meu dia”, brinca ele à reportagem de Brasileiros, deixando transparecer, pela primeira vez, certa dose de orgulho.

A expressão de Peñalosa parece modesta tendo em vista as mudanças significativas feitas durante o seu governo, entre 1997 e 2000. Nos três anos em que foi prefeito, ele implantou corredores exclusivos para ônibus com estações fixas de transferência, serviço batizado de TransMilênio, iniciou o projeto para construção da primeira linha de metrô da capital, até hoje em fase de licitação e instalou mais de 300 quilômetros das chamadas Ciclorutas, espaços próprios para ciclistas entre as principais vias da cidade que são separados dos carros por canaletas de concreto e barras de ferro. Atualmente, a capital da Colômbia tem exatos 388,6 quilômetros de Ciclorutas ligando todos os bairros – próximos e distantes – com as ruas e praças do centro. Elas se somam, ainda, aos 120 quilômetros de Ciclovías, ruas fechadas para automóveis nos finais de semana e sinalizadas apenas para o uso de ciclistas, skatistas e corredores. Desta forma, Bogotá chega a ter, durante estes dois dias, 508 quilômetros de áreas exclusivas, o que lhe aumenta o rótulo de cidade com a maior malha cicloviária da América Latina e a quinta maior do mundo, atrás de Berlim, na Alemanha, Nova York, nos Estados Unidos, Amsterdã, na Holanda, e Paris, na França.

A mudança de pensamento sobre as bicicletas, porém, foi dolorosa para os bogotanos: em uma tarde de dezembro de 1974, cinco mil ciclistas – cansados do trânsito problemático e da falta de espaços exclusivos – fecharam as ruas do centro e pedalaram pela cidade durante todo o dia exigindo que a prefeitura construísse uma ciclovia na capital. Dois anos depois, em 1976, Bogotá já tinha 34 quilômetros de ciclovias, a maior parte delas ao redor da Plaza de Bolívar, a principal da cidade. “O protesto de 1974 é uma retrato perfeito de como as mudanças na America Latina, e especificamente no nosso país, se dão apenas quando a população percebe que tem mais poder do que supõe ter. Bogotá nunca mais esqueceu das bicicletas depois daquele dia”, conta a jornalista Verônica Oliveros, do jornal El Espectador.

Nas duas décadas seguintes, porém, os sucessivos prefeitos esqueceram-se parcialmente do projeto cicloviário, além de verem o desenvolvimento do sistema de busetas, pequenos e velhos ônibus guiados por motoristas sem formação técnica que passaram a dominar a cidade cobrando diferentes tarifas pelo serviço. Foi neste cenário que Peñalosa, então um jovem parlamentar, venceu as eleições municipais pelo Partido Liberal e, já no primeiro ano, começou as obras do TransMilênio e das Ciclorutas, que naquela época eram pequenas e estavam deterioradas pelos quase 40 anos de existência. “Naquela época eu não tive apoio político de nenhum setor, ao contrário do que acontece hoje. Mas eu fiz a seguinte comparação: por que na Holanda, Suécia e Dinamarca existem mais bikes do que na Espanha ou na Itália, onde o clima é até melhor? Porque a Holanda tem uma sociedade mais igualitária. Sempre foi assim. Lá, uma pessoa que tem um milhão de dólares na conta bancária anda de transporte público ou de bicicleta. Na Espanha e Itália os ricos se sentem muito importantes para esse tipo de transporte, assim como os ricos de São Paulo e de Bogotá. Percebemos, então, que as ciclovias estão refletindo uma visão da sociedade. A cidade reflete os valores da sociedade. Em uma sociedade igualitária se constrói mais ciclovias, mais calçadas e se dá mais espaço para o transporte público”, observa.

Enrique Peñalosa, ex-prefeito de Bogotá, em uma das Ciclorutas da cidade. Foto: Vinícius Mendes
Enrique Peñalosa, ex-prefeito de Bogotá, em uma das Ciclorutas da cidade. Foto: Vinícius Mendes

Há cerca de um ano, Enrique Peñalosa se encontrou com o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, durante uma conferência do grupo Fronteiras do Pensamento, em que o colombiano palestrou sobre a importância das bicicletas em grandes metrópoles. Encorajou o colega brasileiro ao projeto de ciclovias que ele estava começando na cidade, mas alertou sobre o conflito ideológico que isso atrairia consigo. “Em São Paulo, menos de 40% da população se locomove em carros, e essa faixa é justamente representada pelas camadas mais altas. Não importa que os pobres tenham carro, porque eles geralmente não têm estacionamento no local de trabalho. Nos edifícios do centro de São Paulo só existe estacionamento para os executivos de camadas mais altas. A pessoa que limpa o chão até pode ter carro, mas não tem onde estacionar. Em Bogotá tivemos conflitos porque muitos cidadãos queriam todo o espaço viário para eles. Queriam que as calçadas fossem estreitas, queriam estacionar seus carros nas ruas. Há sempre um conflito, não contra bicicletas ou contra pedestres, mas dos que têm carro e querem todo o espaço da rua para eles”, explica Peñalosa.

A capital colombiana – apesar de suas dimensões – tem uma realidade distinta da paulistana: a cidade tem apenas 1,5 milhão de carros para uma população de aproximadamente 7,7 milhões de habitantes distribuídos em uma área de mais de 1,5 milhão de quilômetros quadrados, quase o mesmo tamanho territorial de São Paulo. Bogotá, com os projetos cicloviários de Peñalosa, já consegue observar que 13% das suas locomoções diárias acontecem com bicicletas: são 83.500 viagens nos dias da semana e 1,4 milhão de usuários que frequentam os 508 quilômetros de espaços exclusivos aos sábados e domingos. “O atual prefeito (Gustavo Petro, do partido esquerdista M-19) criou a Cicloruta noturna em agosto, quando a cidade fez aniversário, e todo mundo gostou. No dia do evento, a rua se encheu de ciclistas, corredores, pedestres, enfim, de toda sorte de gente. Percebe-se aí que a discussão sobre a existência da ciclovia já acabou. Agora estamos debatendo como aprimorar ainda mais uma ideia que já deu certo”, opina Verônica Oliveros.

São Paulo, comparada a Bogotá, ainda está atrás, tanto fisicamente quanto na mentalidade de que o espaço público precisa ser melhor distribuído. Hoje, a capital paulista tem 78,3 quilômetros de ciclovias, que ganham mais 120 quilômetros aos finais de semana com as Ciclofaixas, projeto que a prefeitura da cidade divide os louros e os custos com um banco. Das quase 12 milhões de pessoas que vivem na metrópole, 261 mil andam de bicicleta diariamente e, aos sábados e domingos, há um aumento de 100 mil pessoas nas ruas com suas bikes, principalmente próximo aos principais parques, como o Ibirapuera e o Parque do Povo, ambos na zona sul. Além disso, São Paulo tem uma frota de 5,5 milhões de veículos, a maior do Brasil e uma das maiores do mundo, dado determinante para o conflito físico, financeiro e ideológico de adaptar as ruas e avenidas para outros tipos de transporte que não os automóveis.

Em junho deste ano, o prefeito Fernando Haddad estipulou como meta a construção de 400 quilômetros de espaços exclusivos até o final de 2015, um ano antes da eleição municipal, incluindo entre estes objetivos a construção de ciclovias que cruzarão as principais pontes da Marginal Tietê e que passarão por todo o canteiro central da Avenida Paulista. O conflito ideológico, que já estava em curso desde que elas começaram a funcionar, aumentou: moradores de Higienópolis, na zona oeste, demonstraram descontentamento com as incursões da prefeitura no bairro e alguns setores da imprensa aproveitaram para endossar o coro contra Haddad. O prefeito, porém, admite que esperava uma oposição maior. “Para minha surpresa, eu não acredito que teremos mais esse conflito em São Paulo. Todo mundo diz que o paulistano é conservador, mas ele está aderindo muito rápido a essa mudança cultural. A gente tem dificuldades, obviamente, mas também pedir para não ter nenhuma é impossível. As dificuldades que imaginávamos que teríamos não se efetivaram, ou seja, as resistências estão sendo vencidas de forma mais fácil do que parecia. O povo, na verdade, entendeu que não temos mais saída: ciclovia não é apenas enfeite, é necessidade”, analisa Haddad.

Bogotá, uma das cidades mais antigas da América Latina, é inspiração não apenas para São Paulo, mas para a capital da Argentina, Buenos Aires, e do México, a tumultuada Cidade do México, que também começaram projetos semelhantes. “Quem diria que Buenos Aires abriria um corredor de ônibus no meio da avenida Nove de Julho, um dos principais cartões-postais do continente?”, questiona Haddad. “Está acontecendo alguma coisa nessas cidades, é fato, mas ainda sim é muito pouco”, lamenta Peñalosa, já na rua, posando para a fotografia que ilustra esta reportagem, quando um homem freia sua bicicleta e, de frente para o ex-prefeito e para Brasileiros, o agradece. “Esse cara é responsável pela capital das bicicletas”.


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