Geografia
Valparaíso de Goiás localiza-se a 120 quilômetros de Goiânia, mas é considerada uma região do Entorno do Distrito Federal, posto estar a apenas 30 quilômetros de Brasília, com população estimada em aproximadamente 120 mil habitantes, o que lhe confere o sétimo lugar no ranking de cidades mais populosas da região Centro-Oeste.
A cidade margeia o porto seco do Distrito Federal, cujo objetivo é atrair grandes empresas, o que ainda não aconteceu, donde 60% de sua economia provêm basicamente do setor moveleiro – a cidade tem mais de cem empresas atuando nesse segmento -, sendo os 40% restantes fomentados pelo chamado “setor informal”.
Uma das 60 escolas locais é a Escola Municipal Casinha Feliz de Valparaíso, localizada no bairro Pacaembu, na região periférica mais pobre do município, ao lado do lixão municipal, cujas condições em que é mantido já levaram o Ibama a multar em 50 mil dinheiros a prefeitura, que recorreu e conseguiu suspensão da multa, para alívio não só da administração municipal, mas também dos pais de alguns alunos – afinal, têm no lixão a sua fonte de renda.
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Apesar disso – et pour cause -, um homem deu a vida, literalmente, tentando impedir que o ensino público da cidade fosse atirado no terreno do abominável vizinho.
Matemátia, história e literatura
Elementos para uma questão de álgebra:
1) Em 2008, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) repassou 3 bilhões de dinheiros para todos os estados;
2) Apenas no primeiro semestre de 2008, a Secretaria da Educação do Estado de Goiás captou, entre convênios com o governo federal, verbas vinculadas à educação, mais recursos do Tesouro Estadual, 54 milhões de dinheiros;
3) Pela Constituição Federal, todos os estados têm de investir no ensino público 25% do total da receita de impostos e de transferências federais recebidas. Em 2008, foram repassados a Goiás quase 5 bilhões de dinheiros.
Agora, faça a conta: divida a verba do Fundeb por 27 (26 estados brasileiros, mais o DF), some a parte destinada a Goiás ao valor da verba estadual declarada, mais 25% de R$ 5 bilhões dos repasses, divida pelo número de municípios do estado (246) e tente entender o porquê de a Escola Casinha Feliz, com seus mais de 600 alunos, ter direito a uma mísera verba anual de 6 mil dinheiros – logo, mesmo com a prefeitura garantindo a merenda, e o MEC, os salários dos professores e funcionários da escola (no total, 30 pessoas), difícil tornar de todo atraente e agradável uma escola em que se pode destinar para a educação, higiene e recreação de cada aluno 10 dinheiros – por ano, cabe repetir.
Recordando seu passado, Adeuvaldo Barbosa Espíndola, o Professor Valdo, se reconhecia naquelas crianças, e, temendo que fora da escola elas se tornassem apenas mais um número a engrossar as abomináveis estatísticas derivadas da miséria, corria atrás de tudo e de todos que, de alguma maneira, pudessem ajudá-lo a justificar o nome da escola. Conseguia.
A escola, limitações mil à parte, é muito organizada, limpa, oferecendo às crianças as condições mínimas para seu aprendizado e formação. Para o resto, com o apoio de seus colegas, Professor Valdo dava jeito. Exemplo: determinado a criar uma biblioteca razoável para a escola, procurou uma editora de Brasília que mantém um projeto cultural e didático sólido, O Livro na Rua, com a edição de diversos clássicos da literatura nacional e internacional distribuídos gratuitamente em centros culturais e comunitários, escolas públicas e onde mais o livro for bem-vindo – e a foto que ilustra esta matéria foi tirada no dia em que o projeto chegou à escola, poucas horas antes de o professor ser assassinado por três menores, coincidentemente, alguns dias depois de ter advertido uma aluna que flagrara, dentro da escola, em atividade nada curricular.
Química
Os bons resultados obtidos com o trabalho naquela escola animavam o Professor Valdo a tentar repetir a experiência na Escola Municipal Urbana Antônio Bueno de Azevedo, à qual fora nomeado diretor, cargo que, acreditava, lhe daria oportunidade de desenvolver ainda mais projetos do que, como professor, desenvolvia para a outra escola – mas, das duas, uma: ou superestimou a sua abnegação em favor do ensino público ou subestimou a gravidade de alguns fatos sobre os quais, temendo as mais óbvias retaliações, quase todos na escola preferem calar (e as poucas pessoas que concordaram em falar exigiram que seus nomes fossem preservados).
Uma delas contou a história de K, um ex-aluno da escola que, em 18 de abril de 2008, matou a tiros um seu colega, JM, depois de convencê-lo a irem nadar em uma cachoeira próxima à cidade. Orgulhoso de sua valentia, e querendo intimidar a todos, o garoto fazia questão de dizer o quanto estava “no conceito” com um temido tipo local – coincidentemente ou não, ex-namorado da então namorada de JM -, e como conseguira, no dia do crime, convencer os professores a liberarem-no das aulas, pois ardia em febre: pusera alguns dentes de alho no ânus, ‘técnica’, dizia, da qual soldados se valem quando querem conseguir uma dispensa do quartel. Poucos meses depois, K foi assassinado na esquina da escola. Para os investigadores, pela precisão do disparo, não havia dúvida: o autor tinha experiência em atirar.
O problema que atrapalharia a rotina – e os planos – de Valdo naquela escola, no entanto, já não causa tanta perplexidade, devido à frequência com que se apresenta em muitas escolas (públicas e privadas) deste País: o tráfico de drogas entre alunos.
Na primeira vez em que viu sua aluna consumindo droga na escola, o professor, segundo uma pessoa a quem relatou o episódio, adotou um tom paternal, lembrando-a dos riscos não só do consumo, mas, principalmente, do envolvimento com pessoas ligadas ao tráfico, ao que a garota reagiu de forma preocupada, dizendo-lhe para não se meter, pois o risco poderia ser ainda maior para ele. Na segunda vez, porém, o professor fora mais severo, advertindo a menina sobre as medidas que, na condição de diretor da escola, teria de tomar, caso a flagrasse novamente. A menina, então, adotou uma postura mais agressiva, lembrando-o do episódio envolvendo um ex-coordenador do programa “Educação de Jovens e Adultos” (EJA) que fora ameaçado de morte, com tentativa consumada, da qual só escapara graças à interferência de um funcionário da escola que, conhecendo alguns integrantes do grupo desde as suas primeiras fraldas, se fez respeitar, exigindo que ‘perdoassem’ a vítima.
Menos de um mês depois de advertir a aluna, o professor está quase entrando na serralheria onde ia pagar o conserto de um portão da Escola Casinha Feliz. Pelas costas, três garotos o atacam. O serralheiro vai em seu auxílio. Tiros. O serralheiro é atingido por uma bala, o professor, por três. Alvoroço. Populares dividem-se entre socorrer os feridos e tentar pegar os garotos. Conseguem deter um deles até a chegada da PM. O professor é levado ainda com vida para o hospital, mas não resiste ao ferimento da bala que lhe atravessara o tórax.
A imprensa local noticia, em um boxe de 1/8 de página, a morte de um professor que “reagiu a um assalto”. Em seu depoimento à polícia, o garoto detido ‘entrega’ os companheiros, destacando que o autor dos disparos o convocara para ajudá-lo a “acertar contas com um cara aí”. A imprensa local nada noticia.
A viúva quis ter acesso aos depoimentos, para saber o porquê do assassinato, mas, como o crime foi praticado por menores, o processo corre em sigilo, de forma que, para ter acesso à informação, precisaria contratar um advogado. A viúva, então, desistiu de saber. Juntando os fatos – que Valdo, para não assustá-la, omitira -, dá pra deduzir o porquê.
Quarenta e cinco dias depois do crime, faltando 15 dias para os garotos serem soltos por falta de julgamento, a audiência e a sentença: quatro meses de detenção para os dois cúmplices, seis meses para o “mentor” (sic) do crime e autor dos disparos. Primeira instância, mas ninguém recorreu. Cumprirão a pena no Case – Centro de Atendimento Sócio-educativo de Luziânia (GO).
Física
Para a viúva, difícil explicar tudo isso, um dia, para outros dois menores, um menino de 4 meses e uma menina de 4 anos, filhos do casal. “Quando sair a revista, separa uma pra mim. Tenho muito orgulho do Valdo, do trabalho que ele fez, e meus filhos também vão ter.”
Descaso e abandono não são exclusividade da rede pública de ensino. Em Valparaíso de Goiás só há um Centro Integrado de Operações de Segurança (Ciops), uma espécie de tampão criado, no início de 2000, para suprir a ausência de delegacias nas cidades do Entorno do DF, localizado no mesmo bairro onde funcionam as escolas aqui citadas, num imóvel improvisado também como cadeia – o que é ilegal, sendo permitido o encarceramento de uma pessoa apenas durante a realização de boletins de ocorrência -, abrigando, ainda que em salas diferentes, homens, mulheres e adolescentes acusados dos mais variados crimes. O funcionamento é de segunda à sexta-feira, até as 18 horas. Aos sábados, domingos e feriados, funciona apenas como cadeia – e como não tem agente carcerário, quem cuidará dos detentos? Se ocorrer um crime fora do horário de funcionamento, deve-se esperar a reabertura do Ciops, ou, em caso de urgência, fazer a ocorrência em outra cidade do Entorno.
No caso do assassinato do Professor Valdo, a viúva reconhece, as polícias civil e militar trabalharam de forma eficiente e rápida, até, mas ele, nas palavras de um agente da polícia civil, era uma “pessoa muito querida de todos, um batalhador que fez muito pelos filhos de muita gente daqui”. Agora cabe ao Ministério Público, ao qual foi entregue o processo, apurar quem, de fato, tinha “contas a acertar” com o professor – e, muito importante, por quê.
Gramática
Uma única lei da física explica tudo isso, desde a abissal decadência do ensino público à inoperância dos órgãos de segurança pública: a Lei da Inércia – no caso, do Estado, não importando em que instância.
No boletim de ocorrência do assassinato do Professor Valdo, W. S. F.; E. S. A.; e W. F. S são apontados como “autores” do crime. Talvez um “co”, imediatamente antes de “autores”, fizesse mais e melhor justiça, se não à viúva e aos filhos da vítima, aos fatos, pelo menos.
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