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O casarão do músico pernambucano Alceu Valença é um dos pontos turísticos da histórica Olinda. Do andar de cima se avista o verdejante mar que rodeia o Brasil antigo. Não é possível mirar o oceano sem pensar na história do País. Por instantes, paro e imagino tudo o que de melhor (e pior), em mais de 500 anos, desembarcou por essas divisas marítimas. É difícil descrever a sensação. Disputas, comércio de especiarias, tráfico de escravos – e o traço holandês, cuja herança cultural afeiçoa-se a rostos, à arquitetura de prédios históricos e aos mínimos detalhes da colorida complexidade de Pernambuco.
Brincalhão e sagaz, Valença é um prosador nato e o principal animador do carnaval da cidade. Todos os anos, diretamente da sua sacada, ele esquenta os foliões tocando frevos, toadas e contando animados causos de nordestinidade. À revista Brasileiros, ele falou de tudo um pouco: sua infância, as influências musicais, carreira, shows. Para quem pensa que mercado independente é coisa de artista moderno, Alceu foi um dos primeiros artistas a ter o comando da própria carreira – um feito e tanto ainda hoje no Brasil. “Não toco na rádio, não pago jabá e não estou em nenhuma grande gravadora. Perguntam-me sempre: ‘Por onde andavas, tão desaparecido?’ Eu falo: ‘Por aí, velhinho, dando show para 30 mil pessoas em algum lugar deste País’”, diverte-se. “Entendeu, velho?”, diz seu bordão predileto. E assim iniciamos a conversa.
Brasileiros – Onde começa sua história?
ALCEU VALENÇA – Na Fazenda Riachão, em São Bento do Riachão, uma cidade entre o agreste e o sertão pernambucano. Foi nesse lugar que ouvi os primeiros sons de minha vida: a voz melancólica dos cantos dos vaqueiros boiadores, a voz dos cegos de feira. Vivi um Nordeste totalmente diferente do de hoje. Aliás, um mundo completamente diferente. Houve uma revolução tecnológica. Participei de duas: saí do canto medieval e vim bater na internet.
Brasileiros – Como você se tornou artista?
A.V. – Minha família toda é muito musical, apenas meu pai e minha mãe não são. Como papai e mamãe não faziam música, eu também não podia. Ficava ali sem poder cantar, só ouvindo. Não poder tocar e cantar foi um complexo terrível que carreguei até os 13 anos. E eu queria tocar violão porque havia uma febre na minha rua. O velho achava que música era algo estigmatizado, coisa de cachaceiro… (pausa
para a foto).
Brasileiros – Como fazia para ouvir música?
A.V. – Em minha casa não tinha toca-discos. Até que um dia, depois de tanta reclamação, compraram uma radiola. Papai comprou, mas não liberava grana para comprar os discos. A mesada era muito pequena. Era minha irmã quem comprava os discos, mas eles não faziam minha cabeça. Ela tinha discos de Cauby Peixoto, Roberto Carlos, que era uma coisa que eu gostava, mas muito distante. Tinha um disco do Peri Ribeiro de bossa nova que eu gostava! Mamãe terminou comprando um violão para mim, só que não me deram professor. Aprendi sozinho. Mas, até hoje, não toco muito bem.
Brasileiros – Quais foram suas principais influências?
A.V. – Luiz Gonzaga e aqueles que o influenciaram. Gonzaga é filho musical dos mesmos violeiros de minha infância. Ele fez a síntese dessa cultura – digamos que ele seria os Beatles. Ouço tanto Luiz Gonzaga quanto os músicos anônimos que vieram antes dele. É diferente do cara que hoje pega o disco do Gonzaga sem ouvir o que esteve atrás.
Brasileiros – Onde entra a cultura popular na música brasileira?
A.V. – O folclore já morreu. Quando se fala em folclore existe um senso pejorativo a respeito. No Brasil, deixaram o folclore de lado (imita contorcendo o rosto de modo blasé), viraram a cara. Mas se metem no blues, por exemplo, que, particularmente, acho maravilhoso. Não se dão conta que o blues, na verdade, nada mais é que folclore. Vem da raiz folk. Só que é folclore norte-americano.
Brasileiros – O que falta no Brasil?
A.V. – Nós vivemos carentes de novidades, de oportunidades para conhecer coisas mais genuínas. Dentro da classe intelectual há uma vontade de mudança, mas pouco muda. Em 1988, eu estava preocupadíssimo, não suportava mais o meu próprio sucesso. Queria que aparecesse alguma coisa, e apareceu: Chico Science, com o mangue beat. E fui vítima desse “novo” por parte dos intelectuais. Eu fui “destruído” com a vinda do mangue. Achavam que duas vertentes, o novo e o velho, não podiam conviver dentro do mesmo cenário musical. Mas o meu público não me viu como “ultrapassado”. Neste momento eu já tinha rompido com tudo, já achava uma bosta a indústria de cultura. Disse a mim mesmo: “Vou exortar o que resta do meu público, que já era enorme”. Na época de rejeição, cheguei a 26 mil pagantes. Sou uma das exceções do mercado.
Brasileiros – E como está o mercado musical atual?
A.V. – No Nordeste está acontecendo uma coisa que não é fenômeno musical – é um fenômeno mercadológico. Dinheiro, negócios. Como você faz para ganhar dinheiro e conservar seu valor artístico? Tenho um público maravilhoso, imenso. Sou um fenômeno. Fenômeno que a mídia não viu – e estou literalmente cagando para a mídia. E mesmo assim, qualquer show que faço é entupido de gente. Eu convoco o povo, é uma loucura.
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