Bondosa Maria Izabel

Na calmaria da baía, o pescador joga a tarrafa. O sol nem surgiu por trás dos morros verdes de mata cerrada, mas seu dia já começa, aproveitando a maré cheia do Saco Grande do Corumbê para a pesca de paratis, ou peixes brancos, na língua Tupi. De longe, se vê a paisagem azulada pelo amanhecer da fazenda Santo Antônio, sua minúscula praia com marolas que chacoalham as conchinhas espalhadas na areia e, atrás da cerca de madeira baixa, cinco casas distribuídas à beira da costa. Em uma delas, a fumaça dançante que sai da chaminé alerta que ali também se começa o trabalho cedo.

Dentro da casa, pela janela, Maria Izabel vê o barquinho, o pescador e essa magnífica paisagem da baía da Ilha Grande, enquanto remexe com a colher de pau um punhado de milho numa frigideira de ferro sobre o fogão queimando com lenha e alguns caules de cana-de-açúcar. Tudo isso vai se misturar em um grande caldeirão cheio de garapa, ou caldo de cana.
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Aqui é onde tudo começa no trabalho de Maria Izabel. Está pronto o fermento. Em 20 dias ela terá a levedura. Vai moer a cana, fermentar. Logo depois começará o processo de destilação. Enquanto descansa, lendo um romance, deitada na rede ao lado de seu alambique, a cachaça vai pingar. Ela é uma das produtoras do município de Paraty, que mantêm, no processo artesanal e na herança cultural da cachaça, a qualidade e o fundamento da aguardente que leva seu nome.

Pequena, roupas leves, um colar de sementes e descalça, como sempre. Maria Izabel Gibrail Costa é índia, caiçara, aristocrata, e nada disso. É uma das raras mulheres em um ramo masculino. Nascida em Paraty há 59 anos, é geminiana, de 8 de junho, mas isso também está longe de definir sua crença. O que hoje importa é que, depois de 13 anos de trabalho, produz uma cachaça reconhecida por especialistas e apreciada por turistas que visitam seu sítio. A última safra está longe dos 11 mil litros/ano desejados. Agrura da obsessão em usar somente cana própria ou de outros canaviais da região, que ela saiba como é cultivada.

Seu alambique é pequeno. Seu sítio, de uma beleza indescritível. Um santuário, descoberto por ela há 25 anos e há não muito tempo pela Endemol italiana, que a convenceu alugá-lo para a gravação, em 2005, de La Frattoria, reality show no estilo Big Brother. “Não me arrependo de nada que faço, mas sinto como se tivesse desrespeitado o espaço”, reflete sentada sobre uma pedra à beira da praia coberta pela maré cheia, onde se chega pela surpreendente fenda que separa duas rochas imensas.

Outros estrangeiros já descobriram a fazenda Santo Antônio e a “Laranjinha Celeste”, apelido de uma de suas cachaças, a azulada, destilada com folhas de tangerina. Ela os convida para um trago de pinga entre grandes barris de jequitibá e carvalho de sua adega, mostra sua garrafa e exibe o rótulo, encimado por uma figura feminina esguia e exótica e cujo design foi presente da amiga e ex-vizinha, Liz Calder, criadora da FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty), e executado pelo ilustrador Jeff Fisher. Maria Izabel faz troça: “Como vocês veem, não sou eu”, e num segundo de imodéstia, deixa escapar: “Mas eu já fui assim”.

Cavalo a pelo
“Talvez eu seja primitiva, sabe? Quando a gente for muito evoluído, seremos extremamente simples.” Maria Izabel pensa e repensa o mundo todos os dias. É assim desde pequena, quando começou a criar seus valores.

Ah, esses valores! Tinham que ser… “verdadeiros. Eu fazia questão de fazer o que gostava. Não deixava de fazer nada. Ih, eu era cheia de coisa”. Como morava na fazenda, um dia achou que dava muito trabalho tirar sapato para entrar na cachoeira e andar de canoa. Resolveu guardá-los e só andar descalça. Faz isso até hoje. Junto com os sapatos ficaram também os vestidos de organdi que sua mãe lhe dava; afinal, uma roupa imprópria para quem monta a cavalo.

“Minha mãe dizia que eu era um caso perdido”.

Nos anos 1960, vestia batas indianas, no melhor modelo Aquarius. Cavalgava pelas históricas ruas de pedras de Paraty, cabelos compridos, livre e leve. Atravessava o rio que separa a cidade, mas não pela ponte – ia por dentro do Perequê-Açu, dava um banho no seu cavalo malhado, aproveitava ela mesma para se refrescar e saía molhada, sem dar satisfações, expondo as formas que bem poderiam inspirar desenhistas.

Seus cavalos eram contos de fadas – Cigano, Esnobe, Princesa. Depois destes, veio Sereno, manga-larga que ela ganhou em uma aposta com um amigo, em uma noite de festa cheia de vinho, quando choveu granizo na cidade e acabou a luz – mesmo assim, eles foram de bote à praia do Forte ver quem subia à unha uma parede rochosa. Seu desafiante caiu na primeira vez. Pediu revanche. Caiu outras duas. No dia seguinte, Maria Izabel foi dar banho de rio em Sereno. “Eu vivia me desafiando. Nessa coisa de criar valores, tinha a coragem. Eu até sentia medo, mas lutava para não ter.”

Assim como na produção de pinga, desde sempre ela está muito mais na companhia dos homens. Quer dizer, menos em casa. Sem perceber qualquer destino, peso ou valor nisso, trouxe à luz seis rebentos, todos mulheres. Cinco do primeiro casamento com Carlos, arquiteto argentino, e a mais nova do quase casamento com Alain, francês navegador que morava em um veleiro e negociava pedras preciosas. Chegou a ter uma mina de esmeraldas no Espírito Santo. “Ele me respeitava muito, mas, ah, começou a parecer casamento de verdade e isso eu não queria mais.”

Fuga da Santa Casa
Maíra, a quinta da fila, não se lembra, mas Amaury Barbosa, atual secretário-adjunto de Cultura da cidade, conta como a viu pela primeiríssima vez. Dono do bar Miota, nos anos 1980, Amaury saiu de casa na praia do Pontal às 11 horas da noite para trabalhar. Uma hora antes, fora da cidade, Maria Izabel, no último mês de gravidez, acordara sentindo contrações, 15 dias antes do previsto. Arrumou uma carona e foi para a Santa Casa. Quando chegou não gostou do médico indicado para fazer o parto e saiu em busca de uma obstetra na Praça da Matriz, “a mulher do Dr. Rubinho”.

Nesse momento, os caminhos dos dois se cruzaram com um cumprimento de “boa noite”. Amaury foi para mais uma noite de álcool e cantorias. Maria Izabel achou a obstetra para seu penúltimo parto natural. Aos 30 minutos do dia 1º de agosto de 1981 nasceu Maíra.

Às 7 horas da manhã seguinte, Amaury volta do trabalho para casa, passa pela Santa Casa e reencontra Maria Izabel andando na rua, com Maíra no colo e sua segunda filha, Maria, andando a caminho da farmácia “para comprar umas coisinhas que faltavam”. Deixou então as filhas na casa da tia, saiu de novo para mais compras e encontrou a estilista Gloria Kalil, que tinha uma casa na cidade.

“Eu achei estranho. Dias antes ela estava grávida e num dia, de repente, eu a vejo na rua, sem barriga, muito lépida da vida”, se diverte Gloria, que lembra com alegria da jovialidade dessa época. “Nós éramos muito jovens e Maria Izabel era uma caboclinha, uma beleza da força da natureza. Andava descalça e ao mesmo tempo, refinada. Era uma princesinha local.”

Matriarca
“Maria Izabel marcou época em Paraty”, confirma Diuner Mello, historiador paratiense. “Bonita, inteligente. Tem os dois lados de sua ascendência, Costa e Madruga, a que empreende e a que mantém a família.” Assim como sua mãe, criou suas filhas praticamente sozinha.

Dona Josephina Gibrail Costa foi assim. Cuidava dos filhos, da fazenda e do seu marido Paulo, doente. De origem libanesa, comerciante, uniu-se aos históricos fazendeiros produtores de cachaça, Madruga Costa – entre eles, o mais ilustre foi o avô de Maria Izabel, Samuel Costa, primeiro prefeito da cidade e grande exportador de pinga no século XIX. Nessa época, a cachaça brasileira tinha valor de compra e era o principal produto da região no comércio após o Ciclo do Ouro.

A cachaça brasileira foi exportada desde muito cedo no Brasil Colonial. As de Paraty, então, eram privilegiadas, porque o porto da cidade era o segundo mais importante do país. Por lá passaram o açúcar do século XVII e todo o ouro extraído de Minas Gerais a caminho da Coroa, ou melhor o Quinto, que representava 20% de imposto, em ouro – o que precipitou a revolta dos Inconfidentes, contra as taxações aplicadas por Portugal. Naqueles dias, nas reuniões conspiratórias, a liberdade era celebrada com brindes de pinga.

A família de Maria Izabel passou por esses ciclos produzindo cachaça. Antes dela, teve Samuel Costa. E antes dele, o Capitão Francisco Costa, pai de Samuel e vice-cônsul de Portugal em Paraty. Antes ainda, segundo o historiador Diuner Mello, teve Miguel Dias Freire da Mata, no século XVIII, que plantava cana, produzia açúcar e também aguardente, na então chamada Estrada da Patrulha, depois conhecida como o primeiro Caminho do Ouro. Nem Maria Izabel sabe disso.

Os filhos de Samuel Costa não se interessaram pela produção. Paulo, pai de Maria Izabel, morreu novo. Sua esposa, Dona Josephina, não tinha tempo, criava sozinha seus cinco filhos. Diuner se lembra dela levando e trazendo frutos e pinga na carroça, da fazenda para a cidade. “Ela vinha com um burro, cestos pendurados e as crianças dentro. Acima de tudo, ela era matriarca.”

Antes disso, quando solteira, Dona Josephina se aventurara na vida política e candidata à Câmara de Paraty nas eleições municipais de 1935, a primeira mulher a participar e ocupar um cargo pelo mandato popular na cidade, foi também uma das primeiras no País.

Maria Izabel vem dessa linhagem de primazias. Sua irmã, Maria Inês, um ano e meio mais velha, diz que ela tem muito da mãe. Para Diuner, Paraty tem dessas mulheres, femininas, cujos maridos tombaram doentes nas trilhas do ouro ou no mar, desde o tempo colonial, e elas assumiram a família e os negócios.

Mas Maria Izabel é simples. Diz-se primitiva. “Tento viver com equilíbrio, coerência e respeito.” Recentemente perdeu o prumo quando recebeu a conta do novo valor da taxa de ocupação do sítio Santo Antônio, uma área da Marinha. Um aumento de 900% que a envolveu em uma bruma de incertezas. Ficou sabendo do valor em uma segunda-feira de sol sem calor. Não deixou de trabalhar, para “recuperar” logo seu sítio depois do reality show e começar a produzir “laranjinhas celestes”. Desfia essas dúvidas enquanto envolve, ela mesma, suas garrafas com o rótulo presenteado por Liz Calder. Acha que não terá dinheiro para pagar, fala do esforço que foi construir seu alambique nos últimos 13 anos, de moer cana quando nem tinha luz, dos imóveis que vendeu para comprar o equipamento exigido pelo Ministério da Agricultura, enfim, da determinação de fazer um bom produto, que leva seu próprio nome, Maria Izabel.

Então, descansa uma garrafa sobre o balcão de angelim, iluminado pelo balanço da folha de palmeira, esfrega o dedo sobre o engradado de garrafas semicompleto, e chora. Enxuga com a palma da mão o rosto molhado, olha para mim e diz: “Essa burocracia me tira do eixo”.

Cachaça


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