Boniteza e precisão

Está embebida de Guimarães Rosa a maestria com que Rodrigo Siqueira conjuga imagens e palavras neste seu primeiro documentário longa-metragem (88 minutos), Terra Deu, Terra Come – prêmio maior para o diretor brasileiro no festival É Tudo Verdade, edição 2010. Comente com ele: “Você parece ser um rosiano de carteirinha”. E Rodrigo há de, mineiramente, maneirar: “A gente vai ficando, né? Basta ler o Guimarães Rosa pra ficar”.

Meio por acaso, naquela embriaguez rosiana que constrói uma sensação de realidade a partir do fraseado ficcional, na ambiguidade de não se saber se é mero “causo” ou pura verdade, é que Rodrigo, nascido em Belo Horizonte e há oito anos em São Paulo (“pai de Benjamin e torcedor do Galo”, ele impõe como condições prévias de identidade), garimpou o episódio que desencadeou sua dupla viagem. A de peregrino curioso, pelas veredas do Grande Sertão, e a de intelectual meticuloso, que veio a dar, mais de cinco anos depois, no documentário premiado. O episódio: aquele no qual o jagunço Riobaldo “toma parte” – ou seja, sela o pacto com o diabo, “no meio do redemunho”, ainda que o diabo, ele próprio, não compareça ao encontro.
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Virada de 2004 para 2005: Rodrigo, acompanhado da mulher Clarice, palmilha os campos gerais de Guimarães Rosa atrás de alguém capaz de lhe explicar a essência enigmática do “pacto” – e, por extensão, a genuína natureza do Coisa Ruim. Diziam que por lá ainda tem quem saiba desses mistérios. Cordisburgo, Morro da Graça, São Francisco, o Parque Nacional da Serra das Araras, a Chapada Gaúcha (em cujo tabuleiro eles toparam até com um casal de escoceses, leitores de Rosa, a tentar vislumbrar o Liso do Sussuarão e o Vão dos Buracos, dois dos sítios da geografia mítica do escritor). Dali, deslizando pelos atalhos pedregosos da antiga Estrada Real, enveredaram Rodrigo e Clarice por Milho Verde, São Gonçalo do Rio das Pedras, Diamantina, para, enfim, sucumbir à vastidão do Urucuia, a caminho do Planalto Central.

O olhar agudo do cineasta escarafunchou a alma dos circunstantes, mas não deparou nem com o Demo nem com a lógica de seus acordos. Para compensar, em um mágico 1o de janeiro, achou ouro em pó para sua futura narrativa, na figura de Pedro de Almeida, 81 anos, garimpeiro de diamantes e cantador de vissungos. Rodrigo sabia o que era isso desde que tomou conhecimento pela leitura do clássico O Negro e o Garimpo em Minas Gerais, do professor Ayres da Matta Machado. Vissungos são cantos em dialeto benguela que, ali, em Quartel do Indaiá, antigo quilombo vizinho a Diamantina, seu Pedro é hoje o último a preservar. Acionada a câmera, seu Pedro não se faz de rogado. Começa por comandar, como mestre de cerimônia, o velório, o cortejo fúnebre e o enterro de João Batista, que, dizem os convivas, morreu aos 120 anos. Com uma caneca, despeja sobre o cadáver assentado já na cova, coberto pela mortalha de linho, umas gotas de cachaça. “O que você queria taí! Nós não bebeu ela não, a sua taí. Vai e não volta pra me atentar… Faz sua viagem em paz.” E aí é outra viagem que começa, em uma teatralidade de fonemas, sons, frases, risadas, bebedeiras, máscaras, movimentos (a linguagem corporal de seu Pedro não fica a dever a um aluno dos cursos de teatro de Antunes Filho), em que a vertigem da narrativa trapaceia astuciosamente as fronteiras da farsa e do real. A delicadeza e a sutileza do estilo de Rodrigo Siqueira espantam as rasuras do folclore, um perigo em filmes desse tipo, e um primor de narrativa oral se impõe por si mesma (e, claro, com a necessidade imperiosa de legendas), narrativa vigorosa, divertida, sensível, humana e – como haveria de gostar o santo padroeiro Rosa – com o diabo, sempre ardiloso, arrevesando o desfecho.


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