“Não acredito em músicos modernos que não sabem fazer música antiga.” Vou te contar, sua visão pode até não crer, mas Tom Jobim falou essa frase aos 29 anos numa entrevista a Vinicius de Moraes para um jornal literário. Rolava o ano de 1956 e faltavam dois para que a dupla fizesse “Chega de Saudade” e a entregasse para a gravação antológica de João Gilberto. Depois de 1958, nunca mais a música brasileira seria a mesma.
Sete anos após aquele ano emblemático em que o Brasil jogou pela janela a síndrome de viralatas, pregada por Nelson Rodrigues, tanto com a conquista de nossa primeira Copa do Mundo de futebol como com o surgimento da bossa nova, nasciam Alexandre e Márcio e, em 1971, Marcelo. Os três são a prova viva de que Antonio Carlos Jobim não é só nosso maestro soberano como também sabe do que fala (perdão, caro leitor, mas não dá para tratar artistas como Tom e Vinicius como se já não estivessem vivendo com a gente).
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Paulo Moura: testemunha ocular
Eles são o Bossacucanova, moçada que faz uma releitura, inserindo balanço eletrônico no ritmo que ganhou o mundo juntamente com os dribles de Pelé e Garrincha, há meio século. Para quem nunca ouviu e se arrepia só de pensar na experiência feita pelos rapazes, eles tranqüilizam: “canção eletrônica, não tem bate-estaca. Usamos o eletrônico como ferramenta, buscamos a música original, o som original de uma bateria, de um violão, do disco de vinil”, diz Márcio. Alexandre, Márcio e Marcelinho eram três engenheiros de gravação que, em 1997, utilizavam sobras de horas de estúdio para produzir novos talentos, como Clara Moreno, filha da cantora Joyce. Numa dessas sobras, de “onda”, como conta Alexandre, mais conhecido como Alex Moreira, resolveram fazer um remix de “Só Danço Samba”, de Tom e Vinicius, gravada por Os Cariocas. Daí surgiu um álbum inteiro com a nova roupagem para a dama cinqüentona.
Seis meses depois o disco já era lançado nos Estados Unidos. E isso é natural, pois a bossa nova, criada por João Gilberto, Tom Jobim, Vinicius, Carlinhos Lyra, Roberto Menescal, foi adotada pelos americanos, quase como se fosse filha de pai e mãe. Por falar em Menescal, este, além de dono do estúdio, o Albatroz, onde os garotos faziam suas experiências mirabolantes, é pai de Márcio, o baixista do Bossacucanova. Ao mexerem com a gravação de 40 anos atrás de Os Cariocas, os meninos não se esconderam debaixo da mesa de som, com medo da punição pela traquinagem. Pelo contrário, saíram mostrando: “Olha o que fizemos”. E não é que os velhinhos gostaram? “Eles se amarraram. Os Cariocas, o Lyra, o Menescal, o Marcos Valle e a Wanda Sá, todos gostaram muito”, conta o tecladista e guitarrista Alex.
Marcelinho da Lua e Márcio Menescal lembram que ficaram receosos ao fazer laboratório com a música, mesmo já conhecendo há muito tempo os grandes nomes da bossa nova, que freqüentavam e freqüentam o estúdio Albatroz. “Os Cariocas foram lá gravar e, sem avisar, demos play na máquina e mostramos o que tínhamos feito com ‘Só Danço Samba’. Falamos das mexidas e que botamos algumas batidas. Eles ficaram meio assim… Um olhava para o outro, desconfiados… Mas, depois que as vozes entraram, aprovaram o que ouviram.” Márcio e Marcelinho contam que ninguém falava nada, todos ouvindo a transformação musical, quando o baterista Quartera afirmou: “Enfim meus sobrinhos vão ouvir a música da gente”. O ar pesado do estúdio transformou-se numa brisa à beira-mar com a aprovação da ousadia da garotada. “Imagina, os caras vinham ouvindo aquela gravação, daquele jeito, há 40 anos”, diz Márcio.
Com o remix aprovado, o grupo se entusiasmou para gravar um disco. Nascia o Bossacucanova. “Gravamos o disco quase todo assim, só na última faixa não fizemos remix, mas uma versão para ‘O Barquinho’, misturando músicos de funk com os de bossa nova. Chamamos o Menescal, o Jorjão Barreto, da Banda Black Rio, e o baterista Raimundo Bittencourt, que tocou catálogo telefônico com escovinha.” O disco chegou ao exterior, lançado por um selo belga, e foi distribuído também nos Estados Unidos. A repercussão foi tão boa que a gravadora encomendou ao grupo um novo trabalho, mas com músicas na linha do que foi feito com “O Barquinho”. Lançaram Brasilidade, CD inteiro com Roberto Menescal.
O dilema de ser ou não ser engenheiros de som ou músicos foi colocado no caminho dos três, pois uma rádio de Los Angeles os chamou para uma apresentação ao vivo. “Vocês vão ter de tocar. Sabemos que o Marcelinho da Lua é o DJ, mas o Márcio e o Alex vão ter de tocar.” Essa foi a solicitação da emissora. E a reação dos dois? “Estes gringos são malucos. A gente não toca desde a adolescência.” Mas Marcelinho, feliz em saber que ia fazer o que já fazia, botou “pilha” na dupla. “Vão tocar, sim.” E foram.
O grupo procurou outros músicos brasileiros que vivem em Los Angeles e, de novo, a bossa nova, agora com corpinho e rostinho de garotona e mais gingado, desembarcou em Los Angeles e foi parar no lugar de onde nunca saiu: as ondas das rádios americanas. Pé na estrada é a rotina do grupo, que já foi indicado ao Grammy Latino e tocou na cerimônia de premiação, fez excursões pela Ásia, América do Norte, Europa, Oceania e América do Sul, além de muitas viagens pelo Brasil, divulgando os três discos já gravados para um público que vai de adolescentes até oitentões, que não têm saudades da bossa nova, pois vivem com ela todos os dias.
Márcio explica que a bossa nova tem um catálogo enorme, dá para fazer a carreira toda tocando só os clássicos, mas em todos os discos procuram navegar por outros ritmos, como maracatu e bastante samba. “Fazemos essencialmente música brasileira, mas vai ter sempre o espírito da bossa nova, que é o nosso estilo de vida.” Com todo o sucesso, reconhece que têm muita estrada pela frente. “A gente não está de penetra na bossa nova, não. Pedimos licença e fomos entrando com todo o respeito. Estou agradecido, por mais que eu conviva com esses ícones, jamais serei igual a eles.”
Pai e filho no mesmo ritmo
Filho de peixe peixinho é. Ainda mais filho de Roberto Menescal, que entremeava na juventude a batida do violão de João Gilberto com a pesca submarina. Márcio Menescal não só dormia sob o mesmo teto de um dos ícones da bossa nova como seu apartamento dava de porta para a casa de Nara Leão, em Ipanema. “De vez em quando ela ia tocar com meu pai, onde também apareciam Carlinhos Lyra, João Donato…” Não tinha como não ser muito bem influenciado.
Com todo esse parentesco, vizinhança e visitas, Márcio desde sempre sabia que ia ser músico. Já pequeno tinha uma foto com um violão na mão, com 14 anos quis montar uma banda, experimentou todos os estilos, mas percebeu que o que era bom para ele estava sendo feito em casa. Em casa e na gravadora Polygram, onde o pai, durante 30 anos, foi diretor artístico. “Acompanhei várias gravações. Teve uma que eu não vou esquecer jamais. Eu era pequeno e acompanhei meu pai na gravação do disco da Elis, aquele ‘sou caipira, Pirapora Nossa Senhora de Aparecida…’. Lembro dela cantando, mas me fixei no técnico, vi aquele monte de botão, naquela mesona. Pensei: o cara que mexe nisso é o cara mais inteligente, mais importante do mundo. Quero ser igual. Sou técnico de som até hoje.”
O pai, Roberto, vê a bossa nova como um fator determinante de entendimento com o filho: “Acho muito bom termos esse diálogo musical, apesar da diferença de 30 anos nos separando. Me parece que ele veio um pouco pra cá e eu um pouco pra lá e por isso os dois saíram ganhando nessas experiências com a bossa nova. O Márcio tem um gosto musical muito legal e que me ajuda muito nos meus arranjos”.
Também parente de Menescal, Marcelinho da Lua foi chegando aos poucos perto do primo, sem que este soubesse da afinidade familiar. “Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo. Com todo o direito a sê-lo, ouviram?” Marcelinho da Lua, que ouviu Fernando Pessoa, é primo de Roberto Menescal, mas só depois de três meses na gravadora é que contou para o patrão que era filho da Idinha, sua prima em segundo grau. “Tu é maluco, por que não contou logo?”, reagiu Menescal. Ia contar como, se nem ele acreditava que trabalhava com o ídolo e parente de sua mãe e da avó?
Quando criança, Marcelinho lembra de sua avó contando sobre uma viagem a Paris em que as rádios tocavam “O Barquinho”, de Menescal e Ronaldo Bôscoli. “Era como se ela recebesse boas-vindas toda hora.” O Bossacucanova não teve dificuldades para pesquisar os clássicos daquele ritmo, pois a mãe de Marcelinho cedeu para o grupo todos os seus discos de vinil, muitos deles com autógrafos dos grandes ídolos. Foi ouvindo os discos da fase de ouro que Marcelinho da Lua aceitou a tese de que a bossa nova é uma mulher elegantíssima, com pouca roupa, na qual cabe qualquer adereço, desde que se faça com respeito, com conhecimento de causa. “Ela pode vestir uma roupa moderna ou uma antiga ou misturar as duas. Está sempre bonita. Respeita a forma, mas aceita misturas, jazz, samba, baião, marcha-rancho, afro…”
Menescal e Lyra assinam embaixo
Grandes nomes da bossa nova, Roberto Menescal e Carlinhos Lyra estão na “onda” da garotada com a naturalidade que a bossa nova propõe. Para Menescal, o trabalho do Bossacunova é uma das continuidades daquele ritmo, pois vários artistas nacionais ou não estão procurando novos caminhos para esse estilo musical.
Autor de “Minha Namorada”, ao lado de Vinicius de Moraes, Lyra percebe que há um encontro legítimo e gratificante de duas gerações que falam a mesma língua. Menescal mostra-se ainda enfurecido quando é lembrado dos puristas, contrários à bossa nova e a inovações: “Os tradicionalistas que se danem, pois eu já usava guitarra elétrica em 1958. O movimento contra as guitarras elétricas na década de 1960 foi outra babaquice, pois o ato de plugar uma guitarra num amplificador não vai definir se a música é boa ou não”.
Já Carlos Lyra prega que a cabeça deve estar sempre aberta para as coisas novas que tenham qualidade e implacavelmente fechada para qualquer tipo de mediocridade. “Espero passar a idéia de que o todo é maior do que as partes e que, portanto, a arte é sempre maior do que o artista.” Lyra mostra curiosidade para saber a opinião de João Gilberto a respeito do Bossacucanova: “Sendo Menescal, Marcos Valle e eu pioneiros sobreviventes da bossa nova e todos apoiamos o Bossacucanova, com a convicção de que Tom e Vinicius fariam o mesmo, acredito que só falta saber se o João aprecia o grupo tanto quanto a filha Bebel Gilberto”.
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