Brasil, 25 anos de democracia

Leonardo Salvador: o primeiro voto para presidente neste ano. "Estou ansioso". Foto: Letícia Moreira
Leonardo Salvador: o primeiro voto para presidente neste ano. “Estou ansioso”. Foto: Letícia Moreira


Leonardo Salvador tem 18 anos,
é negro e estava desempregado até o mês passado. Ele, que cursou os ensinos fundamental e médio em escolas públicas, vive com a mãe e mais cinco parentes (a avó materna, uma tia e três irmãos) em uma pequena casa na Vila Alzira Franco, bairro de classe baixa de Santo André, na região do Grande ABC, em São Paulo. A renda mensal da família é de cerca de R$ 800, situação que piorou em julho, quando a mãe, Fabiana Salvador, deixou o emprego de recepcionista para retirar um câncer de uma das mamas. Em maio de 2012, quando Leonardo tinha 16 anos, contrariando colegas e familiares, decidiu tirar o título de eleitor para escolher os candidatos de sua preferência aos cargos de vereador e prefeito da cidade. “Queria ter uma base para o momento em que eu tivesse de votar para presidente.”

Neste mês de outubro, assim como outros 141.824.606 milhões de brasileiros alistados no sistema da Justiça Eleitoral, Leonardo vai participar de sua primeira eleição presidencial, a sétima de forma direta para o maior cargo político do Brasil desde 1989, condição rara em um país que, mesmo sendo independente há 192 anos e tendo sua República proclamada há 124, jamais conseguiu manter um período democrático com participação relevante do povo nas decisões políticas e com liberdades significativas por mais de duas décadas.

Na maior parte da história do País, aliás, Leonardo não teria sequer direito ao voto: se tivesse nascido durante o Império, entre 1824 e 1889, não passaria perto dos processos decisórios apenas por ser negro, já que o Brasil – o último nos continentes americanos – os libertou do fardo da escravidão apenas em 1888. Além da cor de sua pele, ele também ficaria abaixo do corte de “cidadãos ativos” imposto pela corte portuguesa para a escolha dos representantes das cidades brasileiras. Um “cidadão ativo”, também chamado de “votante”, precisava ter mais de 25 anos, ser proprietário de terras ou possuir uma renda anual de 100 mil réis, além de ser casado para ter, então, permissão de votar em eleitores que, por sua vez, reunidos, decidiriam quem seriam os representantes. Se Leonardo, porém, fosse um cidadão na chamada República Velha, entre 1889 a 1930, seria excluído dos processos decisórios por ser menor de 21 anos e, mesmo se pudesse participar, correria um enorme risco de não ter seu voto considerado pelas escandalosas fraudes organizadas em torno das eleições. Sua única vantagem seria o fato de ser homem, já que as mulheres só tiveram permissão para participar das eleições em 1932, e com restrições – funcionárias públicas, por exemplo, não votavam. Mais: se Leonardo fosse um possível eleitor durante o regime do Estado Novo, imposto por Getúlio Vargas, passaria 11 anos, entre 1934 a 1945, sem ver nenhum nível de eleição acontecer no Brasil.


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Leonardo, porém, vive em um momento único do País: o maior período democrático da nossa história, com 25 anos contados a partir das eleições presidenciais de 1989, ano em que uma ampla massa de brasileiros – beneficiada pela Constituinte de um ano antes – teve acesso ao voto direto para o cargo de chefe do Executivo e passou a gozar de uma série de liberdades e estímulos à cidadania. A Constituição de 1988 assegurou também a permissão do voto para a última camada que ainda estava distante das decisões políticas: os analfabetos, que na época representavam 20% dos brasileiros, dado que caiu para 8,6%, em 2013, segundo a UNESCO. No pleito deste outubro de 2014, as quase 142 milhões de pessoas que irão às urnas de todo o território nacional verão mais uma eleição seguir os padrões internacionais, que determinam que o processo seja justo, competitivo, regular e aberto à participação de todos os segmentos da comunidade política, independentemente de ideologias e de suas raízes culturais, étnicas, religiosas ou socioeconômicas. Os brasileiros também têm um sistema de votação reconhecido por entidades mundiais e sem possibilidades de grandes reviravoltas, além de saberem que é praticamente nula a chance de um novo golpe – mesmo com surgimento de facções que ainda defendem essa esdrúxula ideia – e, caso fiquem insatisfeitos com o governante eleito, têm à disposição mecanismos de participação legais.

“Falar em democracia plena no quesito eleições, com analfabeto votando, voto feminino, voto em trânsito, voto facultativo para menores de 16 anos e maiores de 70, o debate amplo, geral e irrestrito que surge com as campanhas eleitorais, além do funcionamento da justiça e das liberdades democráticas, só é possível neste Brasil que respiramos agora”, diz Thiago Rocha de Paula, professor de História e cientista político da Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

Nesses 25 anos, o País vivenciou vários episódios que fortaleceram o espírito democrático: duas manifestações de rua significativas, os Caras Pintadas, no início dos anos 1990, e os protestos de junho de 2013; o processo de impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, em 1992, com a sucessão para seu vice, Itamar Franco, feita de forma segura; pequenos e grandes escândalos de corrupção, principalmente, na esfera legislativa; o retorno das Forças Armadas para os quartéis; a presença cada vez maior de movimentos sociais nas discussões políticas; a ampla liberdade de imprensa; o surgimento de dois governantes significativos para o fortalecimento do espírito democrático –Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva – e a consequente polarização entre seus partidos; a legalidade de grupos políticos radicais ou moderados; a criação de comissões para punir infratores do regime militar e a diminuição da desigualdade social. Hoje, o Brasil é considerado uma das democracias mais efervescentes do planeta, lidera politicamente o continente sul-americano, que vive momento democrático semelhante, e discute o futuro sem os temores naturais de uma nação instável, como foi durante boa parte da história.

A maturidade da política brasileira conquistada nesse período já pode ser notada até nos programas de governos dos principais candidatos a presidente deste ano, que, ao contrário dos conflitos estritamente partidários de épocas anteriores, conseguem observar méritos em mandatos de partidos ideologicamente antagonistas: Marina Silva, herdeira da chapa de Eduardo Campos, do PSB, e Aécio Neves, do PSDB, principal opositor ao PT, colocaram entre suas propostas, por exemplo, a permanência de programas criados nos 12 últimos anos petistas, como o Ciências sem Fronteiras e o Minha Casa Minha Vida.

“Nesses últimos anos, tivemos uma democracia política melhor do que uma democracia econômica. Enquanto no plano político da democracia, o Brasil avançou e continua avançando, no plano econômico, a gente está andando muito devagar”, avalia Luiz Carlos Bresser-Pereira, ex-ministro da Fazenda do governo Sarney, ex-ministro da Ciência e Tecnologia de Fernando Henrique e um dos fundadores do PSDB. Bresser-Pereira, inclusive, já declarou seu voto para a atual presidenta, Dilma Rousseff.

A análise vai ao encontro de recentes dados que relacionam o momento brasileiro com a situação mundial, como o relatório divulgado em maio último pela Freedom House, instituição dos Estados Unidos empenhada na difusão de direitos civis. No documento, o Brasil aparece como um dos países mais democráticos do mundo, com nota 2 em uma escala que varia de 1 a 7, do mais para o menos democrático – considerado, portanto, um país totalmente livre. A nota brasileira é a mesma de países razoavelmente resolvidos nesse sentido, como Islândia, Romênia e Grécia. Em 1973, quando a entidade passou a medir as democracias anualmente, usando critérios como liberdades políticas e direito ao voto, o Brasil tinha avaliação 5, semelhante à maioria dos países africanos recém-independentes e de alguns regimes autoritários da Ásia e da América Latina. “Tal como ocorreu no Brasil, nas últimas três décadas a maioria dos Estados existentes no mundo tornou-se democrática. Quando argumentou, 17 anos atrás, que uma terceira onda de democratização tinha varrido o mundo entre 1974 e 1990, Samuel Huntington (cientista político espanhol) referiu-se a não mais que 30 países que tinham feito a transição do autoritarismo para a democracia, o que fez dobrar o número de governos democráticos no mundo”, explica José Álvaro Moisés, diretor do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas (NUPPs), da Universidade de São Paulo.

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A desigualdade social, fator ligado ao campo econômico apontado por Bresser-Pereira, é, talvez, o grande desafio para o futuro. Segundo o último levantamento feito pelo Banco Mundial, o Índice de Gini – medida utilizada para aferir o desequilíbrio entre as classes sociais – do Brasil é de 54.7 pontos, em uma classificação que vai de 0 a 100, do menos para o mais desigual. Em 1989, a taxa era de 63.3 pontos, uma das maiores da nossa história, o que prova uma notável diminuição da distância entre os mais pobres e os mais ricos desde o começo do processo democrático para cá. O nível atual, no entanto, ainda está longe de países como a Índia, que soma 33.3 pontos, ou como o Equador, vizinho sul-americano, que tem 49.3 pontos, taxa abaixo da média.

“Desde o século 19, quando as instituições liberais do Brasil começaram a se desenhar, já se excluía uma massa de pessoas dos processos decisórios. A desigualdade sempre foi um problema, porque era e é uma exclusão social, cultural e política, e porque a participação demanda a presença da sociedade nas decisões, a divisão dos espaços públicos, e esse desequilíbrio sempre foi uma trava, colaborando para a desigualdade cultural também. Nesse ponto, o legado da escravidão continua sendo enorme. A herança da escravidão está na exclusão da maior parte da população negra, e tem muita gente no Brasil que ainda não foi incluída socialmente, mesmo com os meios legais de participação política”, avalia Rodrigo Patto Sá Motta, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisador da história brasileira e editor do site Culturas Políticas, que aborda aspectos da nossa democracia.

“O crescimento foi pequeno, mas especialmente no quesito da desigualdade, ainda que nós não tenhamos sido grandemente bem-sucedidos, conseguimos alguns avanços, com relevância maior para os últimos 12 anos. É claro que o Brasil continua com diferenças sociais e a diminuição desse desequilíbrio ainda é a prioridade absoluta, porque a democracia depende do cidadão se sentir parte da sociedade, parte do sistema político, e é muito difícil isso acontecer quando a desigualdade econômica é grande. As boas democracias não têm uma distinção entre classes aos níveis da brasileira”, completa Bresser-Pereira.

Mesmo padecendo de graves problemas, como a corrupção e a desigualdade social, o momento democrático atual ainda é o preferido dos cidadãos, segundo atestou a pesquisa Datafolha realizada em março último sobre o assunto: nela, 64% das pessoas disseram que a democracia é sempre a melhor forma de governo, contra 16% que responderam ser indiferentes ao regime do País e 14% que admitiram que, em certas circunstâncias, uma ditadura seria um caminho melhor para o Brasil. Apesar do apego ao momento, os brasileiros ainda se mostram desconfiados sobre o presente: a maioria dos ouvidos, 59%, se mostrou “pouco satisfeita” com a nossa democracia, diante de uma margem relevante, 28% que se disse “nada satisfeita” e uma pequena camada, 9%, que afirmou estar “muito satisfeita”. Ainda para 61% das pessoas, o Brasil é uma “democracia com grandes problemas”, distante dos 21% que consideram uma “democracia sem grandes problemas”, 9% que consideram que “não vivemos em uma democracia”, e apenas 3% que dizem ver, no Brasil, uma “democracia plena”.

“Para a população, especificamente, a imagem forte das instituições e a periodicidade com que se realizam eleições são importantes. Associado a isso, há ainda uma solidez econômica que alcançamos porque, por mais que exista a tentativa de desatrelar uma coisa da outra, a economia mexe com o dia a dia das pessoas e, se elas não têm uma estabilidade material, não vão conseguir desassociar o insucesso financeiro da política, ainda mais em um mundo globalizado como o que vivemos. Assim, tendem a considerar muito suas situações materiais quando vão observar os rumos do País em qualquer sentido. Acho que a democracia brasileira conseguiu, nesses últimos 15, 20 anos, fazer isso acontecer”, observa Dainis Karepovs, doutor em História pela Unicamp e analista da Assembleia Legislativa de São Paulo.

A juventude da democracia brasileira está inserida em um período de liberdades vivido por boa parte dos países latino-americanos, colocando-os mais uma vez no mesmo trilho histórico de desenvolvimento, como não deixou de ser na maior parte dos episódios desde a sua colonização. Os índices de desigualdade, pobreza, participação e até os acontecimentos políticos, econômicos e sociais do continente se passaram em momentos próximos, como o fim do regime militar de Augusto Pinochet, no Chile, também em 1990, ou a ascensão e permanência de líderes de esquerda, como Evo Morales, na Bolívia, e Hugo Chávez, na Venezuela, por meios eleitorais, que coincidiram com a eleição de Lula no Brasil. “É parte de um processo continental, sem dúvida. Começou a ser desenhado nos anos 1980, com a retirada de apoio aos militares no poder por parte dos Estados Unidos e pela pressão das sociedades civis por democracia e direitos. Mas as desigualdades sociais são um desafio para as democracias latino-americanas. Sem a incorporação material e política das massas, superando os nossos tradicionais elitismos, qualquer projeto democrático é insustentável no longo prazo”, diz Marcos Napolitano, professor-doutor em História da Universidade de São Paulo.

Para ele, outros desafios estão postos para o fortalecimento do espírito democrático do País em um futuro próximo. “Se pensarmos democracia como um conjunto de direitos consolidados em instituições e em valores culturais compartilhados por diversos grupos sociais, ainda precisamos avançar muito. O Brasil evoluiu em direitos políticos e sociais, mas ainda patina em direitos civis e em direitos humanos. A justiça é lenta, não é isonômica (dado seu formalismo processual que beneficia quem pode pagar bons advogados). A polícia ainda é muito violenta, sobretudo contra as classes populares. Ainda há tortura e execuções extrajudiciais. O Estado ainda não é um provedor de bem-estar e serviços públicos de qualidade”, analisa.

Leonardo Salvador está dividido entre Dilma Rousseff, que lhe permitiu entrar, por meio do Pronatec, no curso de Técnico em Farmácia da Universidade do Grande ABC, e Marina Silva, que lhe agrada pela forma direta com que fala com os jovens. “Estou ansioso para ficar frente a frente com a urna”, revela. Pergunto-lhe como ele, um jovem de 18 anos prestes a usar o documento pela primeira vez para escolher seu presidente, imagina o Brasil dos seus filhos. “Melhor, mas não muito diferente do País de hoje.” 


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