A partir de 1089, quando o Papa Urbano II deu início às Cruzadas, a Europa, dividida e estática, se transformou e a dinâmica social, como é conhecida hoje, foi aos poucos sendo formada. Grandes viagens articulavam o comércio do continente, impulsionavam a formação de centros comerciais e, consequentemente, centros urbanos se uniram e articularam estados nacionais – a primeira monarquia a centralizar o poder foi a portuguesa. A formação do estado monárquico, que conseguiu concentrar recursos de uma nascente burguesia comercial,
foi crucial para o pioneirismo lusitano nas grandes navegações. Diferentemente das Cruzadas, a expansão marítima não tinha uma motivação religiosa e sim econômica.
Em 22 de abril de 1500, Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil procurando alimentos, especiarias, entre outros possíveis itens de interesse, visando fortalecer a economia de seu país. Entre outros objetos, Cabral trouxe na bagagem a moeda “O Português”, pertencente a Dom Manuel, rei de Portugal entre 1495 e 1521. Mais de cinco séculos depois, são poucas as moedas, objetos e documentos daquele período que resistiram até os dias de hoje e estão acessíveis aos brasileiros.
Felizmente, por iniciativa do Itaú Cultural, essa situação foi capitulada. Desde 13 de dezembro, tais relíquias podem ser contempladas na cidade de São Paulo, na sede do Instituto, na Avenida Paulista, que ganhou um novo espaço expositivo para abrigar peças da Coleção Brasiliana e Numismática Itaú, um dos maiores acervos de objetos e obras importantes para a arte, cultura e história do Brasil. Com dois andares reestruturados para abrigar uma exposição curada do acervo, o espaço carrega o nome de Olavo Setubal (1923 -2008), fundador do Itaú, que idealizou e iniciou a coleção em 1969.
A reforma do espaço em função da exposição com 1,3 mil obras escolhidas entre cerca de 10 mil peças, que fazem parte dos dois acervos, ficou a cargo de Daniela Thomas. Apesar do conteúdo histórico, os curadores salientam que a exposição não é sobre a “história do Brasil” e, sim, de arte. Responsável pela coleção Brasiliana, o escritor e historiador Pedro Corrêa do Lago, falou com a reportagem da Brasileiros sobre o teor artístico da mostra, que tem predominância de imagens, sendo o papel o principal suporte dos trabalhos expostos. Os documentos e as moedas são complementares à iconografia e contribuem para a contextualização histórica.
O arqueólogo e professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, Vagner Porto, é o curador da coleção Numismática, formada por moedas, medalhas e condecorações. Segundo o próprio, a ideia inicial era que cada coleção ocupasse um espaço diferente, no entanto, com o decorrer de uma série de conversas, deu–se a escolha de fazer um museu integrado. Algo que exigiu dele construir uma interlocução com a coleção Brasiliana: “Meu desafio foi fazer com que a moeda, que tem uma finalidade econômica, normalmente apreciada por colecionadores e numismatas de plantão, fosse inserida dentro de um espaço artístico e dialogasse com as apresentações de arte”.
A mostra permanente é dividida em seis módulos. A maioria das obras expostas apresenta leituras feitas por europeus sobre a colônia portuguesa em diferentes momentos históricos sendo que, no último módulo, esse panorama se altera ao apresentar obras de artistas brasileiros.
O Espaço Olavo Setubal é divido em dois andares. No primeiro, a exposição tem início no módulo O Brasil Desconhecido, com trabalhos feitos entre o Descobrimento do Brasil e o século 16, momento em que os europeus não conheciam quase nada do território recém-descoberto. Para garantir o domínio português, era necessário atrair pessoas interessadas em colonizar a região, o que demandava propaganda. Porém, as obras do período mostram as primeiras impressões que os europeus tinham dos índios e distorções sobre tipos físicos e costumes. O segundo núcleo, O Brasil Holandês, retrata o período em que a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais (West-Indische Compaignie – WIC) executou seu projeto de ocupação da região Nordeste do Brasil, conhecido como Invasão Holandesa, no século XVII. Segundo Corrêa do Lago, foi durante esse período que, pela primeira vez, cientistas e artistas vieram ao Brasil para estudar e registrar a região. “Mauricio de Nassau trouxe muita gente competente que veio estudar a América. Nós tivemos o privilégio de ter grandes artistas pintando a nossa paisagem em 1627.”
Foi Nassau que possibilitou a revelação do Brasil ao mundo, pois foi ele quem fez com que as primeiras imagens nacionais autênticas fossem produzidas. Ainda no primeiro andar, está exposto o terceiro módulo. O Brasil Secreto reflete o trauma herdado pelos portugueses com a ocupação holandesa. A partir daí, eles procuraram esconder a colônia de outras possíveis ameaças. Após conseguir se livrar da WIC, os lusitanos preservaram sua colônia por mais de um século. Tal situação só foi alterada quando o rei D. João VI e a família real portuguesa vieram ao Brasil em 1808, fugidos do Bloqueio Continental de Napoleão Bonaparte (1806) – marco histórico para o quarto módulo: O Brasil dos Naturalistas. Nesse momento, muitos cientistas e artistas de todo o continente europeu viajaram para o Brasil, que também era bastante atraente para viajantes exploradores e aventureiros. O Brasil dos Naturalistas é o último núcleo expositivo do primeiro andar.
No segundo andar, encontram-se obras do século 19, quando o País já tinha uma dinâmica cultural, econômica e social bem mais consolidada. O quinto módulo, O Brasil da Capital, retrata o fascínio dos viajantes pela cidade do Rio de Janeiro, que, além de ser a capital, era litorânea, logo, de fácil acesso. Em seguida, O Brasil das Províncias apresenta o momento em que os viajantes também procuravam outros cenários, como a Bahia e Pernambuco. É nesse espaço que se vê a primeira imagem feita da cidade de São Paulo, no ano de 1822. O Brasil do Império apresenta uma realidade histórica refletida na arte, explicitada, entre outras coisas, pela questão dos retratos e dos jornais críticos ao Imperador, como a Revista de Agostini.
No trajeto final do espaço expositivo, há uma sala, chamada O Brasil da Escravidão, dedicada exclusivamente ao período em que negros trazidos da África eram tratados como mercadoria. Esse espaço conta com representações feitas por seis artistas – entre eles, o francês Jean-Baptiste Debret, o alemão Johann Moritz Rugendas, o inglês Henry Chamberlain –, além de documentos deixados pela atividade econômica da escravidão.
O nono e último módulo reúne obras majoritariamente produzidas no século 20 e reverencia ícones da cultura brasileira, como Machado de Assis. O espaço também exibe um painel com aqueles que ocuparam o cargo de Presidente da República. Segundo Corrêa do Lago: “É o momento em que a cultura brasileira e os brasileiros finalmente se reconhecem com a República”.
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