Se o Brasil tivesse entrado para a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), como defendia o governo Fernando Henrique Cardoso e boa parte do empresariado brasileiro, a crise econômica teria efeitos muito mais graves sobre o País. “Com a ALCA, não teríamos, por exemplo, o controle do crédito, o controle do Estado sobre o sistema financeiro, instrumento que se revelou fundamental para que fôssemos um dos países que saiu da crise mais rapidamente, e com menos danos”, afirma o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, um dos intelectuais e economistas mais respeitados do Itamaraty e do Brasil e um crítico histórico do, praticamente finado, bloco comercial.
Essa bagagem cultural, sua trajetória profissional e a visão abrangente do Brasil e do mundo foram, certamente, fatores que levaram o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 20 de outubro, a tirar Samuel da Secretaria Geral do Itamaraty, o segundo posto na hierarquia da Casa, e atribuir-lhe nova missão. Carioca de 69 anos, ele é amigo e parceiro do chanceler Celso Amorim desde o começo dos anos 1960, quando estudavam no Instituto Rio Branco. E a nova missão, dada por Lula para um de seus gurus em política externa e comércio internacional, é mais do que ambiciosa: “Samuel, você vai ter de pensar o Brasil não apenas para os próximos anos, mas para 2022. Definir que País queremos para nossos filhos e netos”, afirmou o presidente durante a posse do diplomata como ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.
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Considerado um grande ideólogo, formulador de estratégias, Samuel foi eleito Intelectual do Ano em 2006. É autor de dezenas de livros, com destaque para os fundamentais Quinhentos Anos de Periferia, de 1999, e Desafios Brasileiros na Era dos Gigantes, de 2005. Escolhido como responsável pelos projetos que deverão definir o destino do Brasil, pode ser considerado a pessoa certa, no lugar certo, na hora certa. Seu antecessor no cargo foi Roberto Mangabeira Unger – intelectual que, apesar de um estilo confuso, agravado pelo incrível sotaque americano ao falar português -, alinhavou os primeiros projetos com prazo mais longo de execução para o Brasil, como o que fazer, por exemplo, com a Amazônia (embora tenha gerado atritos com muitos outros ministros, em especial Marina Silva, então do Meio Ambiente). Mangabeira deixou o cargo em junho desse ano, por um motivo prosaico – manter sua cátedra como professor na Universidade de Harvard. A escolha de Samuel Pinheiro Guimarães dá, sem dúvida nenhuma, um upgrade (para usar um termo da nova comunicação, tão cara a Samuel) no cargo.
E Samuel já colocou sua usina de ideias para funcionar. Ele quer formular planos – tendo o ano do Bicentenário da Independência como foco – para definir em que País viveremos. “Qual será o nível econômico que pretendemos alcançar, quais as metas de crescimento do PIB. E, paralelamente, quais os níveis de desenvolvimento social que temos de oferecer aos brasileiros? São alguns dos desafios lançados pelo presidente e que temos de ter sempre em mente”, afirma.
O ministro, que vai planejar o futuro, destaca que tudo será pensado tendo como perspectiva o aumento da produção, da capacidade industrial do País crescendo em paralelo à distribuição de renda para que ocorra uma real melhoria da qualidade de vida de todos os brasileiros.
O novo ministro concorda com o presidente quando ele fala que a Amazônia e o Pré-sal podem ser a redenção do Brasil. Na Amazônia, onde a biodiversidade é uma chave para o desenvolvimento do País, em todos os sentidos, ele pretende estimular a pesquisa científica, para se descobrir qual o real valor da floresta, certamente muito acima da simples extração de madeira. O Pré-sal deve ser considerado uma fonte de recursos ainda a ser dimensionada, com o uso do petróleo e do gás, de modo racional e não-poluidor.
O ministro destaca ainda que o Brasil tem de investir em tecnologia de ponta, especialmente na cibernética, na tecnologia da informação, na tecnologia espacial e na tecnologia nuclear, que considera os setores do futuro. “Queremos que a secretaria seja um polo gerador de debates e de estímulos para novos projetos que façam o Brasil crescer e melhorar a vida das pessoas. Faremos propostas e planos que os demais ministérios possam implementar, com seus recursos e quadros”, destaca.
Samuel é um grande defensor da tecnologia nuclear – o Brasil já domina o ciclo completo do urânio e está em quinto lugar em volume de reservas. Ele destaca que as usinas nucleares hoje são seguras e não poluem. Elogia o programa nuclear da Marinha, dizendo que o reator que está sendo construído para o submarino nuclear poderá ser usado como gerador de energia em pequenas cidades e em regiões remotas, tanto para o mercado interno, quanto para o externo.
Para o ministro Samuel, o mundo vive uma “catástrofe gigantesca em termos econômicos e ambientais”. Samuel vincula a crise ambiental ao liberalismo, quando se achava que as empresas, mesmo buscando o lucro máximo, poderiam ser disciplinadas e não poluidoras. Ele garante que qualquer projeto no mundo tem de levar em consideração o aquecimento global e uma redução drástica da produção de gases do efeito estufa. “Não se trata de voltar aos níveis de anos atrás, mas as emissões foram aumentando e, do jeito está, a catástrofe é inevitável”, afirma. Ele não tem dúvidas em dizer que tudo começou com a crise ideológica que sobreveio a falência da visão liberal, onde o Estado teria de ser mínimo e as “forças do mercado” resolveriam tudo. Dentro desse cenário, ele destaca que a decisão tomada pelo Brasil (levando junto seu maior parceiro de Mercosul, a Argentina) de pular fora da ALCA se mostrou muito mais acertada, perante as crises internacionais, do que simplesmente se prevenir de um domínio industrial e comercial do Brasil por parte dos EUA. “Nós sofremos muito menos porque pudemos usar políticas econômicas e instrumentos de controle próprios. Políticas, aliás, que os defensores do liberalismo consideravam erradas, ultrapassadas”, comenta, com um largo sorriso.
Aliás, nunca deve ser esquecido que, em 2001, o então chanceler brasileiro Celso Lafer (que, em visita oficial, tirou os sapatos em um aeroporto dos EUA, obedecendo ordens de funcionários da imigração americana), demitiu Samuel Pinheiro Guimarães da presidência do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais do Itamaraty. O motivo aparente seriam as críticas à então incensada entrada do Brasil na ALCA, feitas por Samuel em uma palestra do Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos, no Rio de Janeiro, para uma plateia predominantemente de militares. Na verdade, o governo FHC estava cada vez mais incomodado com o fato de muita gente no Itamaraty ter restrições às políticas externas e econômicas, com forte viés neoliberal, consideradas na época como a “redenção do Mundo”. Samuel, um dos maiores teóricos do Itamaraty, teria sido punido como uma espécie de advertência para os diplomatas e para os brasileiros de modo geral. Felizmente, com o novo governo, o Brasil mudou. E Samuel segue no poder.
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