Brasil redescoberto

Desvendar ou tentar se aproximar o máximo possível das tramas e circunstâncias da chegada dos europeus à América e do processo de formação do território brasileiro. Esse foi o desafio do historiador Ricardo Maranhão e do arquiteto Vallandro Keating, ao produzirem o livro Caminhos da Conquista – A Formação do Espaço Brasileiro, que acaba de ser lançado pela Editora Terceiro Nome. Em 240 páginas, eles retratam de maneira detalhada os vários episódios históricos que ocorreram nos cerca de 300 anos do período colonial. Desde a passagem dos primeiros navegadores pela costa brasileira até a ocupação e a formação das cidades. Ricardo, responsável pela pesquisa e pelo texto, se debruçou em bibliografias clássicas e contemporâneas, cópias de manuscritos antigos e relatos de época para traçar o panorama geral do que os europeus encontraram por aqui e dos personagens envolvidos: índios, colonizadores, viajantes, poderosos, guerreiros. Para enriquecer ainda mais os relatos, Vallandro, idealizador do projeto, criou cerca de 90 desenhos e mapas especialmente para a obra – que conta ainda com fotos, mapas e desenhos históricos.

Além desse material riquíssimo, outro destaque da obra é o fato de os autores não tratarem a formação do território brasileiro como conseqüência de um descobrimento – ou genocídio, como muitos historiadores costumam se referir a esse período de exploração e colonização. “É como se os habitantes da América, da África e da Ásia fossem apenas elementos animais da paisagem, e não seres humanos com suas línguas, religiões, artes e sabedorias”, escrevem no texto de abertura. Para eles, o que houve foi a conquista da América, com todos os ingredientes pertinentes à ação. Seria impossível falar em descobrimento puro e simples, pois o Brasil já era povoado por quase 3 milhões de habitantes – os índios. O que o leitor pode constatar ao longo das páginas é que, sem a ajuda desses desbravadores nativos, os portugueses, espanhóis, franceses e holandeses que por aqui passaram não teriam conseguido fazer história. Muitas das trilhas abertas pelos índios, por exemplo, serviram de caminhos para que os conquistadores chegassem ao interior do País.

O livro percorre com eficiência os momentos que antecedem a formação e a colonização de cidades como São Vicente, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador. Entre as muitas histórias e curiosidades está a carta que frei Gaspar da Madre de Deus escreveu sobre a viagem de Martim Afonso pela “muralha da Serra do Mar”. “Não basta chegar-se ao pico, para se ter dado fim às subidas, e vêem-se os caminhantes obrigados a continuá-las, quando as reputam acabadas, porque os cumes dos outeiros servem de base a outros montes, que adiante se seguem, e assim vão prosseguindo, de sorte que é necessário aos viandantes caminharem como quem sobe por degraus de escadas. Vencido finalmente esse caminho, talvez o pior que tem no mundo, chegou Martim Afonso ao campo de Piratininga…”. Ao contrário dos indígenas, os portugueses tiveram enorme dificuldade em transpor o íngreme percurso.
Eles também descrevem a chegada dos jesuítas e o trabalho do padre Manoel da Nóbrega, que, em 1553, foi a São Vicente instruir os padres José de Anchieta e Manoel de Paiva a estabelecer um dos primeiros

núcleos de catequização. Em 25 de janeiro de 1554, os padres da Companhia de Jesus construíram um barracão para catequizar os pequenos índios e filhos dos colonizadores, no local onde hoje está o Pátio do Colégio, no centro de São Paulo. Outro momento que prende a atenção do leitor é quando relata a organização de diversas nações tupinambás, entre 1560 e 1567, para combater os perós, como os índios chamavam os portugueses. Essas reuniões entre as lideranças tribais ficaram conhecidas como Confederação dos Tamoios. Elas aconteciam sempre em Iperoig, a praia central da atual cidade de Ubatuba.

ESTRADA DOS ÍNDIOS

Uma das mais importantes heranças indígenas encontradas pelos colonizadores ao chegar ao Brasil foi, sem dúvida, o Peabiru, uma estrada de mais de 2.500 quilômetros – e com inúmeras rotas secundárias – que ligava o alto dos Andes até o litoral sul brasileiro. O Peabiru era uma valeta de 1,40 metro de largura e 40 centímetros de profundidade, forrado por uma gramínea que impedia erosões.

Os primeiros relatos sobre o caminho datam de 1516 e são envoltos em mistérios e lendas. Entre eles, a de que o Peabiru fazia parte da Estrada do Sol, construída durante o Império Inca. O seu formato mais largo em relação às outras trilhas existentes em território brasileiro na época reforça a tese dos defensores dessa teoria. Já os jesuítas acreditavam que ele havia sido construído por São Tomé.

Especulações à parte, o fato é que o caminho, ladeado por muitas aldeias de índios guaranis, foi amplamente usado por diversos conquistadores, em diferentes períodos da colonização. O trecho inicial do Peabiru, chamado de trilha dos tupiniquins, era o único meio conhecido na época de cruzar a Serra do Mar. Passou a ser muito utilizado também pelos jesuítas, principalmente por José de Anchieta, quando estes colocaram em prática o trabalho de catequização dos índios. Por isso, a trilha foi rebatizada como “Caminho do Padre José”.

 

A história e a relevância de Diogo Álvares, o “Caramuru”, na história também está registrada nas páginas do livro. Está lá, inclusive, a origem do seu apelido – era o nome de uma moréia branca da região. Primeiro homem branco a ter contato direto com os índios na região da Bahia, ele acabou se casando com a índia Paraguaçu e, por ter defendido os índios contra a escravidão, tornou-se líder de uma parte dos tupiniquins. Por muito tempo ele intermediou as conversas entre os índios e os portugueses, como Francisco Pereira Coutinho, encarregado de implantar a capitania hereditária da Bahia. Graças a essa ajuda diplomática, ele teve o apoio dos nativos na construção do povoado de Vila Velha. A relação só desandou quando o português decidiu instalar moinhos de cana-de-açúcar na região, obrigando os índios a trabalhar como escravos. Ele acabou sendo expulso da região. Acompanhando a ordem cronológica dos acontecimentos, o livro explica ainda a atividade açucareira, principalmente na Bahia e em Pernambuco, que durou quase quatro séculos. A tomada de Pernambuco pelos holandeses, a corrida do ouro em Minas Gerais, a expansão bandeirante e a conquista da Amazônia pelos espanhóis, cercada por lendas e mistérios. Tudo acompanhado de belíssimas ilustrações. É um saboroso redescobrimento do Brasil.


Comentários

Uma resposta para “Brasil redescoberto”

  1. Avatar de Marcelo Munhoz
    Marcelo Munhoz

    Olá, também sou pesquisador dos assuntos que envolvem a transposição da serra do Mar e do Peabiru. Preciso mencionar aqui que no quadro ‘Estrada dos índios’ a firmação de que o caminho do padre José tenha sido construído sobre a trilha dos tupiniquins, contraria tudo o que já pesquisei a respeito. Em qualquer caso o ponto de parida sempre era ilha de São Vicente. Daí, a trilha dos tupiniquins seguia pelo vale do rio Quilombo, e o caminho do padre José, no lado oposto, pelo rio Perequê. Aprecio muito as pesquisas nessa área e gostaria de sugerir que se certificasse dessa informação. se puder ajudar em algo, segue meu e-mail marcelomunhoz@live.com

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