Eram quase 19 horas, do dia 18 de junho de 2009, quando os 800 soldados da Legião Estrangeira chegaram ao aeroporto de Istres, na França. Nas costas, a mochila. Nas mãos, o bilhete para o Afeganistão. O cuidado dos últimos detalhes antes de partir para a guerra mascarava o coração partido por deixar para trás a família e a segurança de um país democrático.
A tropa de elite da França foi convocada para reforçar a segurança do Afeganistão durante as eleições e ganhar território frente aos talibãs, fundamentalistas islâmicos. Um ano antes, dez militares do exército francês morreram e mais de 20 ficaram feridos em uma emboscada a 50 km de Cabul, a capital do país. No aeroporto de Istres, portanto, todos estavam cientes do perigo que os aguardava nos próximos seis meses e meio.
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Quando o subtenente do 2o Regimento Estrangeiro de Infantaria, Renato Jadão de Azevedo, reuniu seus homens para começar o embarque, por alguns segundos ele se perguntou por que, sendo brasileiro, estava entrando nessa guerra. A mesma pergunta poderia ter passado pela cabeça do sargento-chefe Fernando Vianna Ferraz Filho e do legionário de primeira classe Fábio Santos de Lima, integrantes do destacamento.
A resposta: assim como centenas de outros brasileiros, eles vieram para a França porque vislumbraram na Legião o que não encontraram na terra natal. Descontentes com as condições das Forças Armadas do Brasil, decidiram lutar com o uniforme de outra nação na guerra contra o terrorismo.
A Legião Estrangeira foi criada em 1831 pelo rei francês Louis Philippe. Na época, a causa não era nobre: o país estava em guerra pela reconquista da Argélia e precisava de reforços. Após diversas revoluções pela Europa, muitos estrangeiros encontraram refúgio na França. Sem emprego ou documentos de identidade, decidiram se juntar ao novo exército. Diz o lema da Legião: “Seja qual for sua origem, religião, nacionalidade, formação, nível escolar, situação familiar ou profissional, a Legião Estrangeira lhe oferece uma nova chance para uma nova vida”.
Por ser mantida pelo governo francês, no decorrer de sua história, a Legião sempre apoiou as causas da França em conflitos armados. Os estrangeiros, pelo fato de não terem família ou muito a perder, eram vistos como soldados mais durões e passíveis de serem deslocados com maior rapidez. Por esse motivo, foram enviados para tarefas de alto risco no lugar do exército francês. Desde então, mais de 35 mil legionários perderam as vidas a serviço da Legião. “São estrangeiros filhos da França, não devido ao sangue que receberam, mas pelo sangue que derramaram”, dizia Louis Philippe. Atualmente, quase 7,7 mil homens vestem esse uniforme. A Legião e o exército francês têm o mesmo nível tático e desempenham quase as mesmas funções. O salário também é equivalente.
Qualquer homem entre 17 e 40 anos pode se alistar. Não é preciso falar o francês. A cada ano, cerca de 10 mil candidatos de 150 nacionalidades se alistam. Apenas mil são aceitos. O número de brasileiros na Legião tem aumentado nos últimos anos.
Em 2005, havia por volta de 160 homens – o que corresponde a 2% do total. Hoje, esse número quase dobrou. Legionários vindos da América Latina – majoritariamente representada pelo Brasil – correspondem a 10% do contingente. Mas são os imigrantes da Europa Central que formam a maioria entre os estrangeiros. Representam 18% do total.
Entre os incentivos para que nossos conterrâneos se tornem legionários estão: aventura, possibilidade de se tornar cidadão francês e, em especial, o salário superior ao do exército brasileiro – vencimento inicial de 1 mil euros mensais, que chega a 2,5 vezes, dependendo da missão. No Brasil, a média dos salários é de R$ 550. Além disso, os legionários podem se aposentar a partir de 15 anos de serviço. Segundo eles, porém, o motivo maior é a falta de perspectiva dentro do Exército Brasileiro. Para alguém que se alista no serviço militar no País, o período máximo de serviços é de sete anos. Apenas os concursados, aqueles que entram como militar de carreira (sargento ou oficial), podem chegar à aposentadoria.
Foi justamente a dispensa após sete anos que levou Fábio Santos de Lima a inscrever-se na Legião. Casado e pai de dois filhos, aos 26 anos, ele decidiu seguir para a Europa, depois de participar de operações contra o narcotráfico na fronteira com a Colômbia. Hoje, mora no alojamento do quartel em Nîmes, no sul da França, e procura economizar no que pode para mandar dinheiro para a família, no Rio de Janeiro. Lima resume: “Se tivesse como prolongar minha carreira no Brasil, não teria ido para a Legião”.
Nem todos sabem o que terão de enfrentar para se tornar um legionário. Para ser aceito, é preciso passar por uma duríssima sequência de testes físicos e psicológicos. Uma vez aprovados, não podem voltar atrás. Passaporte e objetos pessoais são confiscados na entrada, o que ao longo dos anos vem provocando críticas da imprensa francesa. Durante os primeiros anos, o recruta terá documentos provisórios com uma nova identidade. Um legionário tem o direito de recuperar seu verdadeiro nome após três anos de serviço. O passaporte original pode igualmente ser solicitado no período das férias, mas o pedido nem sempre é atendido. A Legião controla a saída dos legionários para impedir deserções. Para driblar esse controle, a maioria parte sem aviso prévio. Evidentemente, sem a posse dos documentos, não tem como voltar ao país de origem. A saída é procurar a Embaixada do Brasil, em Paris, alegando a perda do documento para tirar uma segunda via.
Tão logo aceitos na Legião, os novatos são levados para a instrução, no regimento-escola de Castelnaudary. Ali, o treinamento procura os limites da preparação física e mental. Os recém-chegados fazem marchas de 75 km, portando sacos de mais de 30 kg nas costas e, muitas vezes, em temperaturas abaixo de zero. Além disso, nos três primeiros meses, ficam incomunicáveis. “Sem notícias, minha mulher saiu à procura de comunidades brasileiras da Legião no Orkut para tentar me localizar”, conta Lima. O legionário recém-admitido não tem acesso a telefone, nem a internet. Não pode sair do quartel.
O contrato inicial é de, no mínimo, cinco anos. Por lei, eles têm 45 dias úteis de férias por ano. Mas as folgas variam de acordo com as missões. Antes e depois de cada operação, costumam ganhar duas a cinco semanas de férias. Os estrangeiros também não recebem qualquer ajuda financeira para visitar a família. “A despeito de suas situações familiares, os candidatos são considerados solteiros no momento de seu engajamento”, impõem os estatutos da Legião.
Os recrutas que sobrevivem à instrução são remanejados para os 11 regimentos espalhados pelo mundo. A partir daí, suas rotinas se alternam entre treinamentos e missões no exterior. Há 18 anos na Legião, Renato Jadão de Azevedo percorreu diversos pontos do mundo com o uniforme da França. Passou por Djibouti, Costa do Marfim, República Centro Africana, Tchad, Macedônia e pela antiga Iugoslávia. Nascido em Marabá, no Pará, sempre teve uma condição financeira confortável. O sonho de sua mãe era que se tornasse advogado. Azevedo preferiu seguir a carreira militar. Por não ter passado no concurso para oficial no Brasil, decidiu se alistar na Legião. Seu batismo de fogo – como é chamado o combate frontal com o inimigo – foi em Ruanda, na África. Segundo Renato, a missão da Legião era apoiar o exército Hutu contra a invasão dos Tutsi. O trabalho da Legião, porém, foi dispensado quando os Estados Unidos assumiram o comando. “Eles viram com bons olhos a possibilidade de ter uma massa anglófona em Ruanda, com a entrada dos Tutsi no governo”, conta.
Mesmo sem o respaldo da França, os Hutu partiram para a força, resultando no genocídio de mais de 800 mil pessoas. “Nós somos os braços armados da política, por mais frustrante que as ordens possam parecer no campo de batalha”, resigna-se Azevedo. Também como legionário, fez o estágio de guerra na selva, em Manaus, o mais cobiçado pelos militares da Legião.
Sua última missão ocorreu no Afeganistão. “A parte mais difícil da operação foi deixar minha esposa e meu filho de sete meses”, lembra Azevedo, com lágrimas nos olhos. Dessa vez, a estrutura da base militar em que ficou alojado permitiu um fácil acesso à comunicação para mandar notícias para casa, mas elas nem sempre eram tranquilizadoras. Aos 38 anos, o subtenente enfrentou um combate direto com os talibãs e escapou por um triz de uma emboscada. Um dos veículos do exército afegão de seu grupo de patrulha passou por cima de uma mina terrestre, a poucos metros do carro onde estava Azevedo. Ele ajudou a evacuar a área para o resgate dos corpos. “Depois dessa missão, posso dizer que já vivi de tudo no batalhão de infantaria”, confessa.
Se, para Azevedo, o Afeganistão encerrou um ciclo na Legião, para Lima representou apenas o começo. A operação foi a sua primeira com o uniforme da organização. Há quase dois anos na Legião, o soldado de família evangélica passou quase sete meses sem uma boa noite de sono. “A guerra dos talibãs não é no corpo a corpo, mas sim com atentados a distância. Sentia o perigo 24 horas por dia”, lembra Lima, que até hoje não sabe dizer qual foi o real sentido da sua missão no Afeganistão.
Sem ter presenciado um combate direto com os talibãs, o legionário de primeira classe não viu propósito nas inúmeras patrulhas feitas nas montanhas a nordeste de Cabul. Para os comandantes, o motivo da presença de seu pelotão era intimidar os talibãs. “Perto do risco que corri, o dinheiro da missão não justificou minha ida”, desabafa.
Já para o sargento-chefe Fernando Vianna – 11 anos de Legião – o Afeganistão foi uma prova psicológica. Criado no bairro do Jardim Europa, zona nobre da cidade de São Paulo, Vianna sempre sonhou em seguir a carreira militar, mesmo a contragosto da família. “Nunca me enquadrei nos moldes tradicionais da sociedade”, diz. “Buscava disciplina e aventura.” Ao completar 18 anos, alistou-se no Exército Brasileiro. Mas quando leu uma reportagem sobre a Legião Estrangeira em uma revista, descobriu que estava no lugar errado. “A possibilidade de participar de operações pelo mundo me fez largar tudo”, conta. Intensificou sua preparação física e até entrou na Aliança Francesa para aprender a língua. Em 1999, apresentou-se no quartel general de Aubagne.
Logo depois de sua formação, foi transferido para Djibouti, na África, por dois anos. A paisagem monocromática do deserto e as constantes tensões nas fronteiras vizinhas deixaram para trás as lembranças de casa. Vianna só voltou a rever a família depois de quatro anos na Legião. Para ele, um bom soldado deve se afastar das emoções, se quiser manter a razão. Apesar do autocontrole que desenvolveu, ainda se surpreende com os “ossos do ofício”.
Durante os primeiros meses no Afeganistão, ele esteve em diferenças situações em contato com os civis. Fez patrulhas nos povoados. Garantiu a segurança nas entregas de tratores, cobertores e de material escolar feitas pela Organização do Atlântico Norte (OTAN). Acompanhou a criação de poços artesanais nos vilarejos. No entanto, se viu de mãos atadas quando o general francês que estava à frente da missão decidiu recuar as tropas da Legião durante as eleições. O oficial achou que cabia ao exército afegão comandar a operação. Algumas horas depois, Vianna soube que diversos pontos de voto pelo país foram atacados pelos talibãs. Muitas pessoas tiveram seus dedos cortados por terem participado da votação. Outras foram assassinadas. “Fiquei frustrado”, confessa. “Você está longe da família, em um lugar perigoso e não faz o que poderia fazer para ajudar a população. Se quiséssemos, poderíamos ter acabado com os talibãs.”
Apesar de tudo, a missão foi considerada pelo governo francês um sucesso. No total de 800 homens, apenas um morreu no Afeganistão, vítima de um acidente. O veículo blindado em que trafegava caiu de um penhasco. Terminada a missão, os legionários puderam reencontrar as famílias. Lima e Vianna passaram as cinco semanas de férias no Brasil. Já Azevedo foi ao encontro da família na própria França. De volta ao trabalho, eles estão em treinamento para a próxima missão. Foram convocados para restabelecer a ordem na conturbadíssima e violenta República Centro Africana.
Embora afirmem ter encontrado na Legião a realização profissional que procuravam, os três brasileiros ainda pensam em voltar para casa algum dia.
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