O carioca Sérgio Vieira de Mello era um homem do mundo. Nomeado Alto Comissário para os Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), em julho de 2002, dedicou grande parte de sua vida às ações humanitárias ao redor do planeta em nome da instituição, onde ingressou aos 21 anos, quando ainda estudava filosofia na Universidade de Paris. Conhecido pela sua inteligência e enorme capacidade de administrar e negociar conflitos, Mello era visto como o sucessor natural de Kofi Annan, o então secretário-geral da ONU. Em 34 anos de atuação na ONU, o embaixador brasileiro ocupou posições de destaque na área humanitária e comandou pessoalmente missões importantes em zonas de guerras. Foi conselheiro político sênior na Força das Nações Unidas no Líbano, entre 1981 e 1983, durante a invasão israelense, e por muitos anos ocupou cargos de direção no Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur), em Genebra. Em 1994, dirigiu a Força de Proteção a Civis da ONU (Forpronu) para a antiga Iugoslávia, no auge da guerra na Bósnia. Atuou também como coordenador humanitário para a região dos Grandes Lagos, no leste da África, logo após o genocídio de Ruanda, em 1996. Durante os conflitos no Timor Leste, em 1999, Mello foi o encarregado de administrar a reconstrução do território devastado pela guerra, onde assumiu o cargo de executivo-chefe do governo transitório. Ele também esteve à frente de missões em Kosovo, Camboja, Sudão e Bangladesh. Em maio de 2003, Kofi Annan o nomeou representante especial do secretário-geral para atuar durante quatro meses no Iraque, onde deveria restabelecer a paz e ajudar o país na construção de um governo democrático no pós-guerra. A bem-sucedida carreira diplomática de Sérgio Vieira de Mello, porém, foi brutalmente interrompida no dia 19 de agosto de 2003, quando a sede das Nações Unidas em Bagdá, onde trabalhava, foi atingida em um ataque terrorista. Outros 21 funcionários morreram e mais de 150 pessoas ficaram feridas, no ataque atribuído à rede Al Qaeda. Em homenagem póstuma, a ONU concedeu o Prêmio de Direitos Humanos das Nações Unidas a Sérgio Vieira de Mello, um brasileiro que conquistou o mais alto cargo dentro da instituição.
Margarete Sobral Kiefl
A brasileira que ajudou a levar ao mundo imagens da violência no Timor Leste
Em setembro de 1999, quando a capital do Timor Leste ardia em chamas e a sede da ONU era invadida por timorenses que tentavam escapar da violência dos indonésios, a brasileira Margarete Sobral Kiefl tinha uma preocupação: impedir que as milícias indonésias tivessem acesso à base de dados da ONU com os nomes de todos os funcionários timorenses contratados pelas Nações Unidas. Alguns dias antes, a ONU realizara com sucesso uma consulta popular para saber se os habitantes do Timor Leste, ex-colônia portuguesa, ocupado durante quase 25 anos pelos indonésios, queriam a independência. O que aconteceu depois que os timorenses votaram pelo sim, foi a destruição de metade da ilha no outro lado do mundo. Margarete Sobral Kiefl trabalhava no departamento de recursos humanos, e tinha ajudado a recrutar 5.000 funcionários locais. Margarete foi uma das últimas a deixar a sede da ONU naquele setembro. Na bolsa agarrada ao corpo, no caminhão militar indonésio que a escoltou para o avião que a levaria para a Austrália, levava o drive de computador com os nomes de todos os timorenses e um vídeo com imagens da violência no Timor. “Para você ter uma idéia, no primeiro dia, ficamos cinco horas incomunicáveis. Sem telefone, sem computador, nada. Os timorenses desesperados tentavam entrar na sede da ONU achando que só ali estariam seguros. Lembro de mães tentando passar os filhos pelo arame farpado, nós arrancamos as portas das salas e as usamos como escorrega para que as crianças não se machucassem.” De um dia para outro, a sede da ONU equipada para abrigar no máximo 300 pessoas tinha 3.000. Não havia água, comida para tanta gente. “Acho que você só passa a se conhecer e conhecer os outros quando enfrenta uma situação limite. É curioso, eu que lido com recursos humanos, percebi que quem eu achava que era corajoso tinha a reação inversa e quem eu achava que não teria forças para agüentar algo assim me surpreendia. Você não tem como acessar como as pessoas reagem ao medo, ao perigo, se choram… até passar por isso. E isso não desmerece ninguém. Lembro que fiquei surpreendida com a minha calma. E quando já estava prestes a ser retirada, com capacete e colete à prova de bala, alguém do departamento de informação pública me pediu para levar um vídeo para entregar aos jornalistas estrangeiros na Austrália. Eu não hesitei e tenho muito orgulho de ter levado as imagens e contribuído para que o mundo soubesse o que estava acontecendo no Timor.”
A primeira missão de paz da carioca Margarete fora dois anos antes quando trabalhara em Angola. “Eu estava lá quando o avião, com o representante especial do secretário-geral da ONU e todo o seu gabinete, 11 pessoas no total contando a tripulação, caiu. Até hoje não se sabe o que provocou a queda. Ficou claro para mim que estas missões não têm nada a ver com Indiana Jones como imaginamos, não têm nada de glamoroso. Foi muito difícil ligar para as famílias e dizer que o filho, o marido ou o pai estava morto. Nesta hora, você tem de esquecer o que sente para pensar nos outros.” Nos últimos anos, Margarete trabalhou em Nova York, Roma, Viena até ocupar o cargo que tem hoje na sede da ONU, onde chefia o recrutamento de pessoas do mundo inteiro para as 32 missões de paz e políticas das Nações Unidas. “Eu sempre quis trabalhar nas Nações Unidas. Quando tinha 19 anos vim para Nova York como estudante de intercâmbio. Lembro de ter entrado na ONU e ter dito para mim mesma: ‘um dia ainda vou trabalhar aqui’. Sempre quis trabalhar para uma organização multilateral em que o objetivo não fosse só ganhar dinheiro, que você pudesse ver o resultado, que fosse maior do que o seu próprio mundo, do que suas quatro paredes. É por essa razão que continuo aqui.”
Antônio da Silva
O brasileiro responsável pela memória da ONU
Oitocentas mil fotografias, 55 mil horas de filmes e vídeos, 70 mil horas de áudio …
O arquivo da ONU contém os momentos que marcaram os últimos 63 anos dos eventos mundiais. E o responsável por ele é um brasileiro de Brasília. “Tudo foi por acaso, eu nunca pensei em sair do meu país. Já era bibliotecário, tinha um bom emprego mas vivia fazendo concurso. Até que um dia fiz o da ONU e dois anos depois fui chamado. Quando o telegrama chegou – imagina, ainda era a época do telegrama -, minha mãe me ligou, eu pedi para ela, que não sabia inglês, ler e quando ela me disse United Nations, eu não podia acreditar.” São 17 anos de ONU. A experiência mais marcante? O trabalho em Kosovo, onde Antônio viveu dois anos e meio. “Você tem a chance de trabalhar diretamente com os problemas que a ONU tem a missão de resolver. Você vive a realidade das pessoas que passaram ou ainda passam por situações de conflito que nem podia imaginar vivendo em Brasília. Terrenos ainda minados, cidades completamente destruídas, bombas. O trabalho é muito gratificante. Eu deixei amigos em Kosovo.” Para Antônio, ser brasileiro ajuda nestas horas. “Em Kosovo, o futebol e as novelas brasileiras eram sucesso. Você dizia que era brasileiro e as pessoas imediatamente sorriam.
É este ethos brasileiro que faz todo mundo se abrir…” De volta a Nova York, Antônio coordena uma equipe de 15 profissionais e oito voluntários que tentam preservar sons e imagens de um mundo em transformação. Mas é a convivência com gente de 192 países que fascina este brasileiro. “Eu adoro meu país, mas minha visão do mundo nestas quase duas décadas mudou muito, fiquei menos nacionalista. Aprendi a lidar com pessoas de todos os lugares, a me adaptar a situações nem sempre agradáveis e a viver num mundo multilateral e multicultural. Soa piegas, eu sei, mas você vira uma espécie de cidadão do mundo.”
Luiz Carlos da Costa
De uma sela de cavalo ao cargo mais alto ocupado por um funcionário de carreira brasileiro na ONU
Quando o jovem Luiz Carlos da Costa cruzava os corredores do prédio da ONU em Nova York como mensageiro, mal podia imaginar que mais de 30 anos depois seria o responsável por uma das negociações mais fascinantes e delicadas da diplomacia internacional. Em 2006, quando a Nigéria decidiu unilateralmente
deportar o ex-presidente da Libéria, Charles Taylor, procurado por crimes de guerra e contra a humanidade, o brasileiro Luiz Carlos da Costa que comandava interinamente a Missão da ONU na Libéria (da Costa era o vice-representante da ONU para o país, mas o chefe estava em Nova York) teve apenas três horas para organizar uma operação que exigia extrema habilidade política. Um dos mais temidos senhores de guerra africano, acusado de assassinato, violência sexual e uso de crianças como soldados, que já tinha tido a cabeça a prêmio por dois milhões de dólares, Charles Taylor tinha de ser enviado imediatamente para o tribunal especial da ONU em Serra Leoa. “Foi essencial a confiança que o então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, depositou em nós. Charles ficou apenas 37 minutos na Libéria e foi imediatamente mandado para a corte em Serra Leoa. Mas do que mais me orgulho foi ter ajudado a estabelecer um estado de direito na Libéria (a criação de instituições que garantissem as liberdades civis fundamentais, os direitos humanos, a proteção jurídica) e ter convencido a comunidade internacional a colocar o país nos trilhos do desenvolvimento”, afirma.
Quando em 1969, o jovem Luiz entrou pela primeira vez na ONU, estava à procura de um trabalho temporário que lhe permitisse ganhar dinheiro para comprar uma sela de cavalo, já que a paixão de juventude era o hipismo. Começou como mensageiro por três meses. Foi escolhido como o melhor mensageiro e ganhou um emprego. “Uma vez eu fui entregar documentos no 38º andar, a secretária não estava e o secretário-geral U Thant abriu a porta e começou a conversar comigo; quase me despediram por causa disso”, lembra, rindo. “Eu sempre me interessei pelos processos políticos e imagina eu, um jovem em busca de uma aventura, de repente tendo acesso a todas aquelas reuniões no Conselho de Segurança e Assembléia Geral. Hoje, Luiz Carlos da Costa é o vice-representante especial do secretário-geral da ONU no Haiti. “Quando cheguei aqui me disseram ‘ainda bem que você chegou pois estamos lost in translation’(referência ao filme de Sofia Coppola, traduzido no Brasil como Encontros e desencontros). Nestes últimos 19 meses conseguimos virar a página da segurança, temos uma coordenação mais afinada entre os componentes militar, policial e civil da missão.” O fato de a missão militar ter um comandante brasileiro desde que começou e um grande contingente brasileiro também ajuda. De todos os postos por onde passou, Luiz lembra com entusiasmo a época em que foi o responsável por toda a parte de logística das missões de paz. Ele criou uma espécie de kit-missão de paz, com um número mínimo de carros, geradores, computadores, o mínimo necessário para montar uma missão da noite para o dia.
“Temos dois, para uma missão pequena e outra de médio porte.” Hoje as tropas e os civis podem se deslocar imediatamente. Com 39 anos de carreira na ONU e depois da trágica morte de Sérgio Vieira de Mello, Luiz Carlos da Costa é hoje o funcionário de carreira brasileiro mais antigo e mais graduado na hierarquia das Nações Unidas. Na entrevista por telefone entre Nova York e o Haiti, Luiz lembrou do dia 19 de agosto de 2003, dia do atentado que matou Vieira de Mello, quando ficou durante 45 minutos numa ligação direta com Bagdá. “Aos 23 minutos mais ou menos perdemos o contato com a voz do Sérgio” – silêncio também no Haiti. Minutos depois, Luiz Carlos da Costa, que teve a chance de trabalhar com Sérgio em várias missões, retoma a entrevista, com a voz embargada: “Foi muito difícil” – e chora.
Maria Luiza Viotti
A primeira embaixadora do Brasil na ONU
“Sérgio Vieira de Mello representava os valores da ONU. Mesmo não sendo diplomata de carreira personificava o que achamos que é a marca da nossa diplomacia: aproximar posições distantes, encontrar soluções onde não parece haver ambiente para isso”, acredita Maria Luiza Viotti, a primeira mulher a representar o Brasil na ONU. A embaixadora faz parte de um grupo pequeno, são 21 mulheres entre os 192 embaixadores. Mas um grupo nem um pouco silencioso. “Criamos o hábito de nos reunir com freqüência.
Outro dia almoçamos com o secretário-geral Ban Ki Moon. Ele brincou dizendo que em geral nos almoços de trabalho tem tempo de comer pelo menos a salada.” O que não aconteceu, já que o menu principal foi a discussão dos principais temas em debate na ONU. Aliás, discussões em que o Brasil está sempre presente ou é referência: aquecimento global, mudanças climáticas, energia, uso de biocombustíveis… Maria Luiza acredita que cada vez mais dentro da ONU há a percepção qualitativamente melhor em relação ao Brasil. “Você leu o artigo da Condollezza Rice na Foreign Affairs“?, indaga a embaixadora, quando pergunto se o Brasil tem o apoio americano para uma possível vaga como membro permanente do Conselho de Segurança. Apesar de nunca ter apoiado oficialmente ou abertamente, a secretária de Estado dos EUA cita o Brasil e a Índia como países com quem os americanos estão estabelecendo laços cada vez mais fortes e no fim do mesmo parágrafo diz que o presidente Bush já demonstrou seu apoio à expansão do Conselho. Se o que vai acontecer no Conselho de Segurança ainda é uma grande questão, o Brasil já lidera outras batalhas nos bastidores da ONU. Acaba de se tornar a primeira nação em desenvolvimento a coordenar uma estratégia de consolidação de paz em outro país, no caso, a Guiné Bissau.
Sobre o uso dos biocombustíveis na ONU, teve publicamente o apoio do economista americano Jeffrey Sachs. “Quando o representante de um país nos apóia, é visto como posição política, mas quando alguém como o Sachs reforça o que acabamos de dizer, agrega ainda mais credibilidade. Muitos embaixadores vieram falar comigo depois. Somos também uma referência, pois nossa matriz energética é uma das mais limpas do mundo. No Haiti, desde 2004 o comando das tropas de paz está sempre nas mãos de um militar brasileiro, a pedido das Nações Unidas.” Antes de voltar à missão do Brasil junto à ONU, Maria Luiza estava em Brasília onde chefiou o departamento de organismos internacionais e o de direitos humanos, mas sabe que o seu primeiro posto como embaixadora requer mais. “É sem dúvida o cargo mais desafiante da minha carreira. Não só porque é a primeira vez que eu chefio uma missão como embaixadora, mas também porque é um cargo de muita responsabilidade, com características muito específicas que envolvem todos os grandes temas internacionais e o relacionamento com outros 191 países.”
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