Brasília dos brasileiros

Economista, jornalista, doutor em História pela Sorbonne, o mineiro Ronaldo Costa Couto, de 67 anos, é um polivalente da política e da cultura brasileira. Secretário Estadual nos governos do Almirante Faria Lima (Rio de Janeiro) e Tancredo Neves (Minas Gerais), foi ministro do Interior, Casa Civil e Trabalho – durante o governo de José Sarney, de 1985 a 1989 -, e, em curto período, governador do Distrito Federal, em 1985. Deixou a política em segundo plano e se transformou em historiador, com os elogiados História Indiscreta da Ditadura e da Abertura e Matarazzo, ambos da Editora Planeta, e o hoje clássico Brasília Kubitschek de Oliveira, da Record, já na sexta edição. Sua estreia em Brasileiros é escrevendo exatamente sobre a Capital Federal e seus personagens. Confira:

Criar nova capital foi ideia longamente amadurecida pelo hábil, astuto, pragmático e decidido JK. De tramitação política quase impossível, já nasceu cercada de adversários e até de inimigos. Muitos não queriam a tal fora do Rio. Menos ainda nas entranhas do sertão goiano. Perda de poder e prestígio, interesses contrariados, transtornos, apego à tradição, medo de mudança. Hostilizavam, contestavam agressivamente.
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O projeto exigiu muito engenho e arte. Até sua inclusão no célebre Programa de Metas foi calculadamente deixada para a última hora. Entrou como meta-síntese, atropelando o planejamento geral do governo e assustando para sempre colaboradores da estatura do engenheiro Lucas Lopes e do economista Roberto Campos. Este se queixava de que tinham tudo pronto, quando “JK incluiu um coelho tirado da própria cartola: Brasília”.

Nem tanto. Era compromisso público de JK desde o seu primeiro comício da vitoriosa campanha, na pequenina Jataí, Goiás, em 4 abril de 1955. O jovem e simpático jataiense Toniquinho da Farmácia, arfante, lívido, coração na boca, perguntara à queima-roupa se, caso eleito, cumpriria o Art. 4o das Disposições Transitórias da Constituição, que mandava transferir a capital para Goiás.

Talentoso ator político, o diamantinense aparentou surpresa, pareceu hesitar alguns segundos, e respondeu com enérgica firmeza: “Cumprirei na íntegra a Constituição, e não vejo razão para ignorar esse dispositivo. Durante o meu quinquênio, farei a mudança da sede do governo e construirei a nova capital!”.

Seguiu-se trovoada de palmas e gritos eufóricos, cena repetida na maioria das centenas de comícios seguintes no Brasil afora e, principalmente, adentro. JK tinha fama de ser homem de palavra.

Mas a verdade verdadeira é que chegou a Jataí com a decisão já tomada. Conhecia de cor e salteado o comando constitucional citado pelo bom Toniquinho. Mudancista entusiasmado, ajudara a redigi-lo na Constituinte de 1946. Lutara para levar a capital para o Triângulo Mineiro. Perdeu por cinco votos para o Planalto Central dos goianos. Mais: sabia que dez dias depois, 522 km a nordeste dali, a Comissão de Localização da Nova Capital Federal, presidida pelo obstinado marechal José Pessoa, definiria o exato sítio da nova cidade.

Brasília, 21 de março de 2010, diálogo com o lépido, ladino e irrequieto coronel Affonso Heliodoro dos Santos, diamantinense de 93 anos, subchefe da Casa Civil de JK, seu assessor, confidente e anjo da guarda, guardião de sua memória, hoje presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal:

– Por que o governador JK visitou Goiânia no final de 1954?

– Estávamos em pré-campanha para a Presidência da República. Fomos visitar Goiás e o governador Juca
Ludovico. Ficamos lá quase uma semana. Assuntando, combinando coisas, conversando sobre a interiorização, a integração nacional, a transferência da capital para o Planalto, sonho de ouro do povo goiano.

– Ficaram o tempo todo em Goiânia?

– Não! Viajamos bastante pelo interior do Estado.

– A decisão de construir a nova capital já estava tomada?

– Sim. Era fundamental na estratégia eleitoral e na plataforma de governo dele. O Juscelino era apaixonado por esse projeto. Estudava muito o assunto. Não se conformava com o Brasil ainda com cara de colônia, atrelado ao litoral, desprezando a vastidão do interior e suas potencialidades.

– Resumindo, JK via Brasília como centro irradiador de civilização e desenvolvimento, indutor da ocupação territorial e da integração nacional. Como grande desafio brasileiro, símbolo e alavanca da inserção do país na modernidade. Da mudança do sentido e direção do desenvolvimento, incorporação do que chamava de “maior deserto fértil do mundo”. Até como a segunda descoberta do Brasil. É isso mesmo?

– Exatamente! E queria uma cidade bonita e diferente, monumental, que pudesse impressionar os estrangeiros e orgulhar o nosso povo.

– Por que escolheu a pequenina e distante Jataí?

– Queria anunciar o compromisso de construir e inaugurar a cidade em pleno Planalto Central. Foi tudo de caso pensado. O Juscelino ia fazer Brasília de qualquer jeito. Estava determinado, queria e precisava.

CHEIRO DE JK

Brasília, final de 1999. O escritor Carlos Heitor Cony fala sobre a vida e a obra de JK para auditório superlotado. As raízes, os sonhos, os feitos, a trajetória do menino de Diamantina que sonhou um Brasil desenvolvido e depois comandou seu crescimento acelerado e inserção na modernidade. Grande interesse, tudo muito correto e calmo.

De repente, Cony para, se cala, abre largo sorriso, levanta-se e aponta feliz para a porta de entrada: “Agora senti o cheiro de Juscelino!”. Todos se voltam e veem um garoto de 85 anos, muito serelepe, de terno e gravata, magrelo, nem alto nem baixo, que irradia alegria. Explode um trovão de palmas para o diamantinense Affonso Heliodoro, sombra, anjo da guarda, confidente, companheiro de unha e carne de JK. Meio encabulado, ele acena para o amigo Cony e se esconde mineiramente na primeira poltrona disponível.

Ainda Brasília, final de junho de 2005:- Mestre Affonso, quem é JK?- Um extraterrestre que veio do futuro. Ele acordou, mudou e alegrou o Brasil. Fez o brasileiro ter orgulho do país.– Onde está agora?- Voltou para o futuro. Ele é de lá, um contemporâneo do futuro. Trouxe o futuro para cá, modernizou o país. Só não acabou de dar jeito nele porque os idiotas de plantão não deixaram. Cassaram-lhe os direitos políticos, exilaram, perseguiram, magoaram.

Considerado irmão espiritual de JK, Heliodoro foi seu auxiliar direto desde o governo de Minas. O primeiro a despachar, sempre antes de sete da manhã, e o último a sair, tarde da noite. “Depois de prefeito e deputado, Juscelino elegeu-se governador de

Minas. Fui nomeado chefe da Casa Militar. E aí começa de fato nossa história: nunca mais me desliguei dele. Minha mulher se dizia viúva de marido vivo, porque a família quase não me via. Nesse período, convivi mais com a Márcia e a Maria Estela do que com meus próprios filhos.”

Assim trabalhou com Juscelino e para ele até o fim. E ainda trabalha, agora como guardião da memória, testemunha da vida e feitos, biógrafo. Esbelto, dinâmico, ímã de simpatia, memória impressionante, continua exageradamente ativo, mandando bala. Acompanha a vida nacional, mete o pau nas trapalhadas de todos os governos, pesquisa, escreve, viaja, faz conferências juscelínicas de comovente nacionalismo e fé no Brasil, dá entrevistas, mete-se em debates, distribui pitos e encara qualquer um por JK e pelo país. Foi secretário geral do Memorial JK, em Brasília, sonho que ajudou a acontecer.

Brasília, 31 de janeiro de 2010:
– Qual o segredo de tanta vitalidade e alegria aos 93 anos, mestre Heliodoro?- Durmo pouco, como pouco, trabalho muito, evito má companhia.Deve ser por tudo isso que o amigo do peito Tancredo Neves, poucos dias depois de eleito presidente da República, em 15 de janeiro de 1985, aos 74 anos, ligou para a casa dele, em Brasília:
Alôôô! Affonso, como estão suas pernas?
– Graças a Deus, muito bem, presidente.
Ótimo! O Brasil e eu vamos precisar de você.
– Estou pronto para o que der e vier, presidente. E muito orgulhoso e agradecido.

Tancredo adoeceu, não tomou posse, partiu em 21 de abril de 1985. O guerreiro Affonso Heliodoro nunca soube qual trincheira ocuparia.

LIVRO
O livro, um sucesso
O trecho acima foi reproduzido do livro Brasília Kubitschek de Oliveira, de Ronaldo Costa Couto. Publicado pela Editora Record, já está em sua sexta edição.

Gato escalado
Precisava mesmo! Exigência da governabilidade. Eleito, agiu para ver seu governo longe do Rio o mais depressa possível. Sensibilidade, argúcia, instinto político, lições e reflexos da recente tragédia do saudoso presidente Getúlio Vargas que, ameaçado por profunda crise político-militar, matou-a com a própria morte, suicidando-se com um tiro no peito, em 24 de agosto de 1954, no Palácio do Catete.

JK tinha mesmo de fugir da atmosfera de agitação e golpismo presentes no Rio. Realizar seu velho sonho de desgrudar o Brasil do litoral. Ali, estava temerariamente exposto. Qualquer espirro político mais forte de algum influente general, almirante ou brigadeiro criava situações melindrosas, perigosas. Os jogos ferozes de radicais da oposição e o julgamento e a sentença cotidianos da grande imprensa contrária, também. Até manifestações de rua de estudantes contra preços de comida ou passagem de bonde assustavam o Palácio do Catete.

O próprio JK era gato escaldado. Eleito com 36% dos votos, quase perdera o mandato na frustrada tentativa de golpe de novembro de 1955, a Novembrada. Eram grandes e muitas as feridas ainda abertas, ódios, ressentimentos. O sacrifício e o sangue de Vargas continuavam vivos na lembrança dos seguidores, aliados, adversários e inimigos.

Era preciso trocar não apenas o cenário, mas o palco principal. Mudar a agenda nacional. Incluir a capital no interior, tema vigoroso, capaz de deslocar o eixo da discussão política. Contribuir para exorcizar a tentação danada dos intervencionistas militares. Atrapalhar os jogos dos adversários políticos com a imprensa e os quartéis. Dar ao presidente maior liberdade e amplitude de movimentos. Governar com um pé no Rio e outro no Planalto Central. Lance de mestre no xadrez político e na guerra do desenvolvimento.

Fotos: Eduardo Hollanda
GUARDIÃO DA MEMÓRIA
Affonso Heliodoro foi sombra, anjo da guarda, confidente e companheiro de unha e carne de JK

 

Para JK, a oposição só não barrou o projeto de Brasília no Congresso, em 1956, por considerá-lo inexequível. Concluíram que seria seu túmulo político. Assim, a construção acelerada virou questão de honra e sobrevivência política. No começo, ninguém acreditava que ficasse pronta a tempo. Construir tudo no nada, em pleno sertão goiano, a 1.200 km do Rio, em menos de quatro anos. Parecia coisa de doido.

JK não tinha volta. Decidiu correr todos os riscos. Buscar recursos fora e dentro do País, inclusive inflacionários. Não se poupou. Fez 225 voos Rio-Brasília-Rio no biênio 1957-58. Quase dez por mês. Primeiro em um robusto e desconfortável Douglas DC-3, depois em um quadrimotor Viscount. Dormia tranquilamente a bordo. Só se acalmou no final de 1958, com a certeza de inaugurá-la em 21 de abril de 1960.

A construção foi uma epopeia. Obra feita de sonho, entusiasmo, improvisação, sacrifício, audácia e grandeza. Proeza que correu o mundo. O ateu Darcy Ribeiro, inicialmente contrário, entusiasmou-se: “Deus devia estar de muito bom humor quando reuniu JK, Israel Pinheiro, Niemeyer e Lucio Costa para fazer Brasília”.

Metrópole inchada
Aos 50 anos, é uma experiência vitoriosa. De altíssimo custo, mas de colossais benefícios econômico-sociais, geopolíticos e civilizatórios. Pela irradiação do desenvolvimento, pelo papel decisivo na integração nacional, na ocupação do interior, na conquista econômica do vastíssimo potencial do cerrado, no deslocamento dos grandes eixos migratórios, mitigando a pressão exagerada sobre áreas críticas, como Rio e São Paulo.

Como seria o Brasil sem Brasília e a interiorização? Ninguém sabe. Mas talvez mais pobre, mais problemático e desigual. No início dos anos JK, a população brasileira era da ordem de 60 milhões. Imagine-se os quase 200 milhões de hoje confinados em magra faixa litorânea, sobretudo em megalópoles assustadoras. Mas isso é história contrafatual, mero exercício de imaginação. Só sabemos o que é o Brasil com Brasília.

Planejada para 500 mil habitantes na virada do milênio, ela já ultrapassou 2,5 milhões. É um poderoso ímã de migrantes. Incluído seu entorno goiano, avança para 4 milhões. Metrópole inchada, precocemente hipertrofiada. Crescimento desordenado, vertiginoso, alarmante. Preocupa, espanta.

Por sua formação, tem hoje a cara de todos os “brasis”. É uma síntese do País. Até nos contrastes. Na grave e complexa problemática urbana, na desigualdade social. Seu coração, o originalíssimo Plano Piloto de Lucio Costa, é patrimônio cultural da humanidade. Seu tombamento dificultou sua desfiguração. Mas há poderosos e vultosos interesses em jogo.

É comum ouvir-se que a cidade é corrupta. Mas ela é apenas palco. Como São Paulo, Rio e centenas de outros menos comentados. Onde está o homem está o perigo.

Parece que o sonho e orgulho maior de JK vai sendo crescentemente compreendido. Daí a aceitar a capital e defendê-la, é apenas mais um pequeno passo. Afinal, ela é de todos os brasileiros. Brasilienses vindos do país inteiro, aprendemos a amá-la. Nossos filhos e seus filhos e netos, mais ainda.

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Comentários

Uma resposta para “Brasília dos brasileiros”

  1. Avatar de Angela Freire
    Angela Freire

    Parabéns Ronaldo pela sua trajetória de vida exemplar – Angela Freire -( Embratel Recife )

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