“Eu acho que a madame subiu no morro erraaado…”, vociferava o negão enorme, de voz soturna, sorriso proporcional aos seus 1,90 m de altura, deixando arrepiada a dondoca que podia ser vivida por Jacqueline Myrna, Carmen Verônica, Lilian Fernandes, a gostosa de plantão. O bordão pertencia a um quadro de um programa muito popular na televisão no início dos anos 1960 e era estrelado por Monsueto, astro cuja popularidade rivalizava com Ronald Golias e Walter D’Ávila. Sambista, compositor, pintor, cantor, ator de cinema, o negão era boa gente. Um baita negão, como repete o título do mais recente CD de Virgínia Rosa, a graciosa cantora paulistana que convocou nada menos que 11 produtores, um por faixa, no que considera um modesto apanhado para fazer justiça à obra de Monsueto Campos de Menezes, o “Comandante”, como era conhecido. Ela orgulha-se de ter contado com a participação de Martinho da Vila, que conheceu o negão, em “Eu Quero Essa Mulher Assim Mesmo”, parceria com José Batista e produzida por Skowa.
Essa é uma das músicas que provocaram a redescoberta de Monsueto em 1972, gravada por Caetano Veloso no disco Araçá Azul. No mesmo ano, Milton Nascimento e Alaíde Costa cantariam “Me Deixa em Paz”, música que Monsueto compôs com Ayrton Amorim, no álbum duplo Clube da Esquina (aqui produzida por Che e Paulo Cunha), e Caetano lançaria o disco Transa, gravado em Londres e que incluía “Mora na Filosofia”, feita com Arnaldo Passos (em Baita Negão, produzida por Celso Fonseca). Infelizmente Monsueto morreria no ano seguinte aos 49 anos, mas sendo cada vez mais respeitado e lembrado, caso de Marisa Monte que gravou em seu disco Mais, de 1992, “Lamento de Lavadeira”, parceria do “Comandante” com Nilo Chagas e J. Vieira Filho (aqui produzida por Swami Jr.), além da própria Virgínia, que vez por outra interpretava alguma pérola do negão.
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Brejeira como só ela, Virgínia foi uma das vocalistas da Banda Isca de Polícia, de Itamar Assumpção, ao lado de Suzana Salles e Vânia Bastos, mas, ao contrário das colegas, não veio da Universidade de São Paulo (USP) – assim como o próprio líder do grupo. A cantora, bisneta de índios, filha de mineiros de Nova Lima e nascida no bairro paulistano da Casa Verde, chegou à vanguarda por acaso, depois de ter aulas de música com o guitarrista de Itamar, Luiz Rondó, escolhido por meio de um anúncio de jornal. E não parou. Depois da dissolução da banda, Virgínia passou a investir mais a sério em sua carreira, com o total apoio dos pais, já falecidos, que viviam na primeira fileira dos seus shows. Cantou com Tetê Espíndola o sucesso “Escrito nas Estrelas” (Arnaldo Black e Carlos Rennó), apresentou-se com José Miguel Wisnik e até 1992 integrou a Banda Mexe-Com-Tudo, onde entrou indicada por Ná Ozzetti (do Grupo Rumo). Com esse grupo, que durante quase uma década alegrou os domingos do paulistano Bar Avenida, em Pinheiros, e inspirou outras formações como a Banda Gloria, Virgínia excursionou pela Europa e travou contato com a nata musical brasileira que, a exemplo de músicos estrangeiros de passagem por São Paulo, comparecia às domingueiras para ver de perto feras como Toninho Carrasqueira, Adriano Busko, Tião Carvalho, Toninho Ferragutti e Swami Jr.
Swami produziria Batuque (1997 – Movieplay) disco de estréia da cantora, que foi seguido por A Voz do Coração (2001 – Lua Discos), produzido por Dino Barione, e Samba a Dois (2006 – Eldorado), por Tomas Roth. Dona de uma voz ao mesmo tempo forte e aveludada, comparada por Wisnik a “Billie Holiday e Clementina”, é de uma versatilidade tal que pôde se dar ao luxo de desenvolver uma carreira paralela à de intérprete de música contemporânea. Alterna suas apresentações com o que chama de linha de projetos que incluem as obras de Clara Nunes (gravado em DVD, aguardando patrocínio), Chico Buarque (Palavra de Mulher), Noel Rosa, Carmen Miranda (Pequenas Notáveis, ao lado de Lucinha Lins e Célia) e Dolores Duran, além de apresentações especiais, como no projeto Palavra de Paulista, realizado no teatro Cosipa, em que interpretou Paulo Vanzolini, e em A Voz do Coração, quando cantou com a Orquestra Jazz Sinfônica, no início de setembro no Memorial da América Latina, em São Paulo.
Baita Negão, que conta ainda com faixas produzidas por Jair Oliveira (“A Fonte Secou”, parceria com Marcelo e Raul Moreno), Dino Barione (“Despejo da Saudade”, com José Batista), Douglas Alonso (“Sambamba”), Quinteto em Branco e Preto (“Mané João”, com José Batista), Quinteto da Paraíba (“Morfeu/Nó Molhado”, parcerias com José Batista) e Geraldo Flach (“Faz Escuro Mas Eu Canto”, composição com o poeta Thiago de Melo), guarda uma surpresa para o final. Um pot-pourri de cinco músicas do “Comandante”: “Aula de Samba Francês”, “Retrato de Cabral”, “Maria Baiana”, “Não Tenho Nada Com Isso” e “Ziriguidum”, arranjado por Nailor “Proveta” Azevedo à frente de sua Banda Mantiqueira, feito para dançar até cair. É o encontro entre o baita negão e uma intérprete primorosa.
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