Debruçado sobre o parapeito da varanda, no 20º andar de um edifício no bairro de Moema, região nobre de São Paulo, Elias Tergilene, 41 anos, aponta para o horizonte. Ao fundo, um conglomerado de casas humildes traz um pouco de cor ao branco e cinza de prédios e residências que predominam na paisagem. “Há muito potencial perdido por falta de oportunidade nas favelas e comunidades pobres do Brasil”, diz o proprietário do sofisticado apartamento.
Ao contrário dos demais condôminos, Elias não faz cara feia quando se depara com o contraste social que rouba parte da vista de seu flat. Nascido na cidade de Carlos Chagas, no Vale do Mucuri, nordeste de Minas Gerais, ele entende a dura realidade de quem está do lado de lá. O sucesso financeiro do dono da rede de shoppings populares UAI, com quatro unidades em Belo Horizonte e duas em Manaus, não veio de berço. Criado pelos avós paternos, Elias aprendeu desde cedo a lidar com a pobreza e a necessidade de criar alternativas para superar a falta de dinheiro.
Com a avó, uma “negra de temperamento forte”, ele descobriu a importância de identificar oportunidades mesmo nos ambientes mais desfavoráveis. “Minha avó vendia comida para caixeiro viajante. Os mascates eram todos pobres e vendiam o almoço para comprar a janta. Minha avó, muito esperta, estava lá para vender a janta. Ela sabia que ninguém ia dormir de barriga vazia e tinha as panelas preparadas fosse a hora que fosse.” Do avô, um libanês analfabeto, Elias ouviu a lição que serviu de estopim para seu comportamento empreendedor. “Um dia, ele virou para mim e falou: ‘Se você pegar todas as desgraças do mundo e colocar de um lado da balança e depois pegar a falta de dinheiro e colocar do outro, a falta de dinheiro ainda vai pesar mais. Sem dinheiro, você vai perder respeito, saúde, dignidade e alegria. O homem sem dinheiro perde tudo. Ganha dinheiro, meu filho’.”
Os conselhos e exemplos observados em casa germinaram na cabeça de Elias. Os primeiros frutos vieram quando, ainda adolescente, ele se mudou para Betim, na região metropolitana de Belo Horizonte. Determinado a colocar em prática os ensinamentos repetidos, quase como mantras, pelos avós, o jovem decidiu que era hora de começar a ganhar dinheiro. Após pensar muito, encontrou o negócio ideal: vender esterco para adubar hortas da cidade. “Naquele tempo, não havia fertilizantes. Como quase todo mundo em Betim tinha horta, pensei que o caminho era esse.”
O jovem, então, recolhia placas de esterco abandonadas pelos pastos. Em casa, batia o material e o ensacava. Depois, colocava na carroça e saía para vender de porta em porta. O negócio deu certo e, algum tempo depois, ele trocava os cavalos e a pequena charrete por uma caminhonete Chevrolet Brasil usada. “Com esse carro, passei a viajar para Belo Horizonte. Lá, os clientes me pagavam três vezes mais do que eu ganhava em Betim”, ele lembra.
Mas além de vendedor de esterco, Elias foi carreteiro, dono de boteco, serralheiro e proprietário de uma fábrica de móveis. O ingresso no setor de shopping popular aconteceu há seis anos, quando aproveitou o bom momento do varejo nacional, o crescimento do consumo doméstico e, principalmente, a experiência pessoal. “Eu vim da pobreza e sei que pobre come, bebe, veste e faz tudo. Você só precisa tornar o produto mais acessível”, explica.
Após rodar Belo Horizonte à procura de shopping centers fechados ou inacabados, ele encontrou seu primeiro imóvel próximo ao terminal rodoviário. “Havia garotas de programa, mendigos e traficantes por todos os lados. Ninguém queria o prédio e, por isso, estava barato.” O shopping popular atraiu dezenas de vendedores ambulantes ávidos por trocar os juros de até 30% ao mês, cobrados por agiotas, e a perseguição da polícia por pequenas lojas com endereço fixo. Ao mesmo tempo, encantou marcas de varejo tradicional, que visualizaram a chance de entrar em contato direto com a emergente camada de consumidores. “Enquanto todos viam os pontos negativos do lugar, enxerguei a maior concentração de pessoas por metro quadrado da cidade. Comércio popular é volume.”
Agora, o mineiro que venceu a pobreza e se autodefine como “o empresário que faz shopping center para a classe G, de gente”, se prepara para novo desafio. Elias quer construir o primeiro shopping popular dentro de uma comunidade carioca, mais precisamente no Complexo do Alemão, na zona norte, que conta, desde 2012, com quatro UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) – a primeira foi instalada em maio de 2012, depois de um ano e meio de ocupação por tropas do Exército.
Para essa empreitada, Elias se associou a Celso Athayde, ex-presidente da Central Única das Favelas. Juntos, eles criaram a FHolding, empresa responsável pelo projeto do Favela Shopping. “Conheci Elias em uma palestra e pedi a ele ideias de como revigorar o comércio no Alemão. Com a chegada das UPPs, o volume de dinheiro gerado pelo tráfico de drogas diminuiu e impactou na receita dos bares, mercearias, salões de cabeleireiros… Após visitar algumas favelas comigo, Elias surgiu com o plano de fazer o shopping”, conta Athayde.
Tem tudo
O projeto é pioneiro no Brasil e tem peculiaridades. O objetivo não é só viabilizar o antigo desejo do varejo de subir o morro e estar próximo a um mercado consumidor crescente. Mas também oferecer aos moradores a opção de profissionalizar seus negócios e gerar emprego na comunidade. “Uma das exigências do Athayde é que o shopping não seja apenas mais uma iniciativa para explorar a comunidade”, afirma Elias. De acordo com o Censo de 2010, quase 1,4 milhão de pessoas vivem em favelas no Rio de Janeiro. O número representa 22% da população total da cidade. Apenas no Morro do Alemão, são cerca de 70 mil moradores.
“A favela já é um shopping a céu aberto. O que queremos fazer é dar melhores condições a esses comerciantes e ajudar a mudar a matriz econômica do morro”, explica Athayde. Segundo ele, toda mão de obra a ser usada no shopping deverá ser do próprio bairro. “A favela hoje é cheia de empregadas domésticas, pedreiros e vigilantes. Em um shopping center, preciso basicamente de limpeza, manutenção e segurança. Ao invés de tomar dois ou três ônibus e mais um trem para chegar ao trabalho, o morador vai trabalhar perto de casa e para comunidade que ele conhece”, acrescenta.
Outra iniciativa é o conceito da franquia social. A ideia é que empresas que trabalham com o modelo de franquias subsidiem lojas a comerciantes do Alemão. “Tenho conversado com muitas marcas e explicado para elas a mídia espontânea que isso vai gerar, além da entrada delas num mercado quase impenetrável”, conta Elias.
Em fevereiro, ele se reuniu com o presidente da Associação Brasileira de Lojistas de Shopping, Nabil Sahyoun. Durante visita ao Complexo do Alemão, Nabil conheceu o projeto e garantiu o apoio da Alshop. “A humanização das favelas e a busca por um comércio mais qualificado vão oferecer à população o que há de mais importante no mundo do shopping”, diz Nabil. De acordo com Elias, marcas como Chilli Beans, Camisaria Colombo, Barred’s, Burger King e Casas Bahia já demonstraram interesse no empreendimento.
O projeto do Favela Shopping conta com 500 lojas, salas de cinema e praça de alimentação. As salas de cinema, com promessa de ingressos a partir de R$ 5, serão multifuncionais e oferecerão treinamento e capacitação na parte da manhã. As lojas devem ter entre 15 m2 e 30 m2 de área, menos de um terço do tamanho observado em shoppings convencionais. A praça de alimentação contará com um palco móvel para abrigar shows de samba e funk.
“Queremos que lojistas e visitantes se sintam à vontade. Se o vendedor quiser contratar alguém para gritar que ele está vendendo calça jeans por R$ 29,90, ele pode. O importante é vender e ser feliz”, diz Elias. A expectativa é que sejam criados seis mil empregos diretos, entre vendedores e funcionários do shopping. O valor do investimento é estimado em R$ 20 milhões.
De acordo com Athayde, o governo do Rio de Janeiro tem sido um parceiro presente. “Estamos conversando com o vice-governador do Rio (Luiz Fernando de Souza, conhecido como Pezão) e ele está disposto a nos ajudar a conseguir o terreno no Alemão.” O que ainda impede o Favela Shopping de deixar para trás o título de projeto é um impasse em relação ao local onde vai funcionar. O plano atual contempla o empreendimento em um galpão abandonado com 15 mil m2, que fica perto da entrada da Favela da Grota. O problema é que o galpão tem 15 anos de IPTU atrasado e o dono do espaço desapareceu após decretar falência.
“Queremos que o governo do Rio desaproprie o terreno e nos ceda o uso dele. Ou, então, que faça uma licitação. O que não pode é aquele espaço continuar parado. Não é bom para a favela, nem para ninguém”, explica Celso. Ele e Elias acionaram o Ministério Público para encontrar formas legais de obter o direito de uso da área e esperam que o imbróglio desapareça até o final de maio.
Enquanto aguarda orientação da Procuradoria do Rio, Elias mantém encontros com governos de outros estados e cidades. A intenção é que o Favela Shopping no Morro do Alemão sirva de projeto-piloto e depois se multiplique pelo País.
“Tenho fé que logo poderemos iniciar a reforma do galpão e realizar esse sonho. Se tudo der certo, neste final de ano, as crianças do Alemão vão ver o Papai Noel descendo de helicóptero, e não a Polícia Militar”, afirma Elias.
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