Cabeça argentina

Numa noite do final de inverno de 2009, fui dormir e ao acordar tinha virado personagem de um plágio de história de Franz Kafka. Não fui transformado em barata, entenda-se. O que me ocorreu foi menos dramático: uma nova cabeça crescera em meu rosto.

Ali, do lado direito, à altura da narina, mas separada dela por uns dois centímetros, estava o calombo. Quando olhei o volume pela primeira vez, achei que era uma espinha. Com a ponta do dedo médio, pressionei a bichinha. Nada! Não doía. Deixei barato. Aquilo sumiria em alguns dias.

Mas, para espanto geral, o fenômeno, como o Ronaldo, aumentou de tamanho com o tempo. Em dois meses estava com o porte de uma ervilha. Dali para o grão de bico foi apenas uma questão de mais 90 dias. Notei nos olhos das pessoas certa preocupação. Minha sogra, que sempre pensa no pior, diagnosticou pereba ruim. Exigiu corte e biópsia. Mas meu cunhado, médico que mora na Virgínia – cuja especialidade está no extremo oposto do rosto – declarou que a intumescência era apenas um cisto. Acreditei nele, claro.

Os meses foram passando e a novidade perdeu o interesse de meus familiares. Virei, mal comparado, uma espécie de Robert Redford, em quem cresceram três dessas pelotas no rosto e ninguém deu um único pio. Claro que ele é um pouco mais bonito que eu, reconheço, mas mesmo assim, o sujeito tem uma trinca de bolas de bilhar na faccia e continua arrumando emprego em Hollywood.

Um amigo me sugeriu que pintasse de preto o calombo. Justificou: “Vai ficar perfeito para sua imitação do Robert De Niro”. Não é para me gabar, mas faço sucesso com minha cópia das caretas do consagrado astro nova-iorquino. Porém, francamente, não quero passar o resto de meus dias como um personificador de celebridade.

Foi mais ou menos nessa época que comecei a notar: a segunda cabeça que me nascera começava a apresentar traços fisionômicos. Aos poucos, dava para notar dois olhinhos, um pequeno nariz e uma boquinha, queixo, papo e tudo. Uma figurinha careca, com expressão própria. Diziam que eu estava louco: obcecado com o pelote. E não era para estar? O cara ganha uma segunda cara e fica tranquilo? Aquilo era coisa de gente circense.

E foi com o circo na cabeça que me ocorreram ideias de lucro fácil. Vai que a coisinha começasse a falar! Impossível? Ora, e é possível o crescimento de nova cabeça no rosto de um cristão. Imagine só se a carinha desandasse a tagarelar em alemão. Nesse caso, planejei: eu a levaria para Frankfurt. Para uma escola, onde – ouvi dizer – eles são tarados para debater filosofia. Já me via sendo tratado como professor – ou, pelo menos, assistente do pequeno notável que me saía do semblante. Era uma oportunidade de muita grana fácil, prestígio, mulheres…

Foi em meio a esses planos que um colega veio estragar a jogada. Sabe como é: sempre tem um desmancha prazeres. “E se a cabecinha começar a falar em argentino?”, perguntou o ranheta. “Aí, você terá de dar um tiro na cara”, sentenciou.

Ora, não sou tão radical quanto meu colega. Primeiro, porque tenho enormes simpatias pelos nossos vizinhos do Sul. Eu os acho, de modo geral, muito engraçados, refinados, cultos, jogam um bolão, e ainda fizeram uma das capitais mais lindas do planeta. Mas, de fato, ficar ouvindo la carita dizendo: “Chê, boludo! Petacular! Ruconaranra”, e pedindo papas fritas e bife de tira, depois de um tempo seria mesmo desagradável. Além disso, ter um irmão siamês argentino desafia a natureza. O Universo não é tão estranho assim. E ainda tem aquela história que não me agrada nem um pouco: a de DAR UM TIRO NA CARA!

Era melhor encontrar outro modo para acabar com aquela palhaçada. Fui ao Dr. Merkenstein, dermatologista e cirurgião plástico de renome, e homem que entende tudo de Argentina. Estava até de malas prontas para outra temporada em Buenos Aires, onde aperfeiçoaria seus passos de tango. O homem conhece mesmo o riscado platino. E comprovou isso num piscar de olhos. Olhou a carinha, pegou um alfinetão, localizou o papo e furou. A coisa toda murchou por completo. Desapareceu!

Hoje, estou de rosto limpo. Sou um novo homem. Único. Mas, em alguns momentos, me bate a solidão, uma certa melancolia portenha, sabe? Como se estivessem tocando um tango triste, longe, muito longe…


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