De um press release chegado à redação: “Na sexta-feira (18 de dezembro), a Brushfire Records, selo do cantor havaiano Jack Johnson, celebra sua holiday party, em Los Angeles, Califórnia. Pelo segundo ano consecutivo, a We Party terá bar exclusivo da Sagatiba, que garantirá o clima da festa com o sabor de seu delicioso Sagamojo, mojito feito com Sagatiba, e o colorido das tradicionais caipirinhas brasileiras. Em sintonia com o meio ambiente, todos os drinques serão elaborados com frutas orgânicas e servidos em copos biodegradáveis”.
A bebida do Brasil repete o Brasil: tem mais prestígio social fora do que no próprio País. E, curiosamente, é igual ao presidente da República: tanto a cachaça quanto o Cara, cada vez mais solicitados no exterior, subindo passo a passo no ranking da admiração internacional, ainda buscam um upgrade junto ao relutante andar de cima de Pindorama, aquela gente que prefere se embebedar de destilado de milho do Kentucky ou de bordeaux genérico só porque tem pânico de usufruir o sabor de ser brasileiro. Cachaça, quem diria, é tabu. No Brasil.
Basta lembrar o episódio Larry Rohter, em 2004. O casto e abstêmio correspondente do New York Times no Rio de Janeiro, flertando com aquela oposição que bebe nas águas do veneno e do preconceito, escreveu uma contundente peça criticando o presidente por exagerar em seu apreço pela aguardente nativa. O bafafá provocou um mal-estar que quase acabou em ópera-bufa – o canhestro pedido de expulsão do jornalista, evitado à última hora pelo próprio Lula.
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Mas, hoje, com o suficiente distanciamento, o que fica do episódio é a impressão de que, se Lula fosse chegado a um champanhe Cristal Rosé, como os antigos czares da Santa Rússia, a elite até proporia, com mister Rohter à cabeceira, um festivo brinde ao bom gosto do seu primeiro mandatário. O simplório Rohter atacou também as meninas de Ipanema. De mais a mais, o próprio Lula já parece tão confortável com o tema maldito que, em recente premiação da revista ISTOÉ, disse, com direito a gargalhada geral, que político é igual a qualquer ser humano, “come, bebe e fala palavrão”.
A vergonha é, portanto, a cachaça (para uns tantos, um metalúrgico na presidência nunca deixará de ser, igualmente). Aliás, a própria palavra – cachaça – já vem emprenhada de escárnio e ojeriza, tem carga tão pejorativa que a AMPAQ, a pioneira entidade mineira criada em 1988 para zelar, com selo de qualidade, controle de origem e tudo o mais, pela boa reputação do produto artesanal, batizou-se de “Associação Mineira de Produtores de Aguardentes de Qualidade”. Até os melhores destiladores de cachaça, quem diria, já pagaram tributo à hipocrisia histórica.
(A absurda quantidade de sinônimos que o folclorista Luís da Câmara Cascudo arrola, mais de setecentos, pode significar, sim, às vezes, afeto, familiaridade com uma bebida tão popular, mas denuncia também uma batelada de eufemismos, disfarce de linguagem para, nas boas famílias, encobrir a execração.)
Porém, de uns dois ou três mandatos presidenciais para cá, aquele desprezado cobertor-de-pobre dos grotões da terra, a imprecada bagaceira dos vagabundos e malfeitores, o goró, a perigosa, a dengosa, a sinhazinha, a uca, a zuninga não é que acabou por ingressar na sala vip dos beberes e comeres do mundo da prosperidade? Do mesmo modo que Lula, seu informal porta-estandarte, virou – perdão – a cachaça da comunidade dos supermandatários, a aguardente do Brasil, devidamente acondicionada, claro, nos cânones e nas idiossincrasias do paladar internacional, conquista além-mar os bares, os lounges, os clubes, os restaurantes estrelados, surfando, é verdade, na onda dos coquetéis frutados e supercoloridos. Até o chef superstar Jamie Oliver já ensinou a fazer caipirinha – com leve toque de gengibre – em seu multinacional show de TV.
Exemplo: a Sagatiba. Antes de ser uma cachaça, é um case. Concebida pelo empresário Marcos de Moraes, que acabara de embolsar uma fortuna de nove dígitos num bem-sucedido negócio na área do ponto com, a cachaça Sagatiba escolheu lançamento tipo tapete vermelho sabem onde? No Principado de Mônaco. Bem a propósito de um produto de exportação que buscava, desde saída, cravar a imagem de luxuoso privilégio. Em maio de 2004, seguiu para o Principado o faustoso trem da alegria de celebridades brasileiras e a desocupada nobiliarquia monegasca serviu de anfitriã, com direito a escola de samba e desfile de mulatas sestrosas na rue Suffren-Reymond e no quai do Port Hercule.
De cara, o inebriado Moraes – dono de uma das mais caprichadas adegas de tintos do País – investiu 70 milhões de dólares em uma campanha publicitária pilotada pela badalada Saatchi&Saatchi, de Londres, e entre suas cartadas de marketing está aquele antológico momento em que cinco garrafas da Sagatiba – a versão envelhecida, não por acaso apelidada Preciosa, embalada em caixa de madeiras nobres brasileiras com design de Claudia Moreira Salles – foram disputar o martelo fino e chique daquela Christie’s onde se leiloam quadros e peças milionárias. As garrafas – distribuídas em um lote de vinhos e licores finos – foram arrematadas por 400 euros, cada uma.
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Em 2005, a partir de uma destilaria de Patos de Minas e a expertise de Gilles Merlet, mestre francês na alquimia do conhaque, Steve Luttmann, procedente da grife de luxo LVMH, e mais dois sócios do mercado financeiro decidiram aceitar o desafio de enfeitiçar o mercado americano com o que pretendiam que fosse o estado da arte da cachaçaria. Assim nasceu a Leblon, que só em 2007 ingressou – em doses diminutas – aqui no mercado local. Até então, a Leblon só circulava nas altas rodas dos Upper Seventies de Nova York ou nas pérgolas dos Hamptons.
Semelhante à experiência Sagatiba, a Maison Leblon – assim, com pedigree francês – pode dissimular um capricho pessoal, mas existe lógica nessa loucura, é o que o mercado internacional tem indicado (a cachaça já é, em consumo, o terceiro destilado do mundo, perdendo apenas para a vodca e o coreano shoju).
Tanto que as duas mais musculosas multinacionais das bebidas aguçaram o nariz em direção à aguardente brasileira e também lançaram suas marcas, de olho prioritariamente no mercado de exportação. Dificilmente alguém irá encontrar, mesmo em capitosos templos como o restaurante Mocotó, de São Paulo (leia na sequência), uma cachaça como a Janeiro, da Pernod Ricard, império etílico de origem francesa e proprietário de grifes como o Ballantine’s, o Chivas Regal e o champanhe Perrier Jouët. Mais fácil achar a Janeiro na Nikki Beach, em pleno verão de Saint-Tropez.
A Diageo, a número 1 do mercado mundial (leia-se Johnnie Walker, Absolut, Cîroc, etc.), adquiriu há um ano, a antiga Maria Fulô, de Nova Friburgo, Estado do Rio, e acaba de promover o extasiado relançamento de uma linha for export em que pontifica, top dos tops, a Fulô Ipê, com aromas de sândalo e ameixa – obra assinada pelo mestre cachaceiro Vicente Ribeiro.
O refinamento ainda é, contudo, um nicho – tanto fora quanto dentro do Brasil. As mesmas cinco marcas de aguardentes industriais que abarcam, só elas, 60% do mercado interno de 1,4 bilhão de litros/ano são aquelas que também suprem, em maior volume, a caipirinha gringa de cada dia. Não há quem não seja capaz de enumerar: Ypióca (de Maranguape, Ceará), a paulista Pirassununga 51, Tatuzinho, Três Fazendas, Velho Barreiro (essas três do grupo IRB, com sede em Piracicaba e Rio Claro).
É só o começo. A exportação tem crescido até 20% ao ano (como aconteceu de 2007 para 2008), mas o resultado não é de fazer ninguém entrar em transe: pouco mais de 16 milhões de dólares pelos 11 milhões de litros vendidos. Em resumo, o Brasil não chega a exportar nem 1% das cachaças que produz.
Alemanha, Portugal e, acreditem, o Paraguai encabeçam o rol dos compradores. A sistemática irrupção das cachaças premium e superpremium é que pode, se não aumentar o volume, pelo menos agregar valor à exportação.
Preferência nacional, a cachaça – e que se pronuncie de boca cheia o nome original, autêntico, verdadeiro – ainda luta para deixar as páginas de um folclore debochado e autodepreciativo capaz de botar na mesma prateleira aquelas brincadeiras tão típicas do Nordeste – marcas como Amansa Sogra, Consolo de Corno e Segura no Pau (que o sommelier Leandro Batista da Silva tem na conta de “um líquido, nunca uma cachaça”) – com finos, saborosos, complexos elixires como a Havana, relíquia curtida em bálsamo que ficou como souvenir do mestre dos mestres, Anísio Santiago. O patriarca de Salinas se foi, sete anos atrás, mas os puristas da purinha – em contraste com certos trastes industrializados – deviam cotidianamente brindar, nas novas gerações de mestres artesanais, o seu esfuziante legado.
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