Editada em dois volumes, Nos Trilhos do Progresso – A Ferrovia no Brasil Imperial Vista pela Fotografia e Ferrovia e Fotografia no Brasil da Primeira República, a obra de Pedro Karp Vasquez (Editora Metalivros) trata das estradas de ferro regionais construídas e operadas na Primeira República. Entre elas, Central do Brasil e Leopoldina, no Rio; Recife-Bahia, São Francisco, Great Western, Alagoas e Central da Bahia, no Nordeste; Tereza Cristina, Southern Brazil (de Rio Grande a Bagé), Cie. General de Chemins de Fer (Paraná), na região Sul; e a Madeira Mamoré, na Amazônia. Ao me debruçar sobre suas páginas, relembrei histórias e debates de um fascinante repertório com o qual tive o privilégio de conviver nos cerca de 30 anos que trabalhei com locomotivas, como engenheiro. Vou repartir alguns desses temas com os leitores da Brasileiros.
A construção da Madeira-Mamoré, a “Ferrovia do Diabo”, é assunto fascinante, que já inspirou muitos ensaios e obras de ficção. A idéia de uma ferrovia em plena selva amazônica foi esboçada pelo governo imperial, em 1870, com o ciclo da borracha, e só foi se tornar oficial já na República. No Tratado de Petrópolis, em 1903, o Barão do Rio Branco prometeu realizá-la, como compensação à Bolívia pela ocupação brasileira da região que constitui hoje o Acre. A estrada deveria dar à Bolívia acesso ao Atlântico.
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O grande interessado na obra a ser contratada era Percival Farquhar, empreiteiro americano que deu finalmente a partida na construção, não economizando recursos para implantar na selva amazônica toda a estrutura necessária – e, até, a desnecessária. Farquhar, que recebeu 33 milhões de dólares, dos quais 22 milhões fornecidos pelo governo brasileiro, transferiu para o local 25.000 operários das mais diversas nacionalidades, e criou desde benefícios essenciais para a construção da estrada, como oficinas e alojamentos para toda essa população, até requintes inteiramente dispensáveis naquela situação, como quadras de tênis e uma lavanderia a vapor!
Muitas centenas de operários morreram na construção, vitimados por acidentes e malária. Os trabalhos eram uma luta inglória contra as forças da natureza amazônica – chuvas torrenciais destruíam o que se construía durante a seca. Enquanto a obra se arrastava, o ciclo da borracha esgotava-se. Era visível que as condições do início da obra, com o dinheiro farto da borracha, estavam mudando, mas ela foi levada ao fim sem qualquer benefício para ninguém.
Quando a estrada finalmente ficou pronta, em 1912, o ciclo da borracha estava nos estertores e nem a Bolívia nem o Brasil tinham o que transportar. Aos construtores interessava apenas entregar a obra e escapar o quanto antes daquele inferno. Os presidentes brasileiro e boliviano – e, sequer, o sr. Percival Farquhar – não se dignaram a comparecer à inauguração. Restou para o País a ruína mais cara do mundo, uma vergonha que nem a lavanderia a vapor conseguiu lavar da memória.
É interessante lembrar que 70 anos depois da epopéia da construção da Madeira Mamoré , em Carajás, no extremo oposto da Bacia Amazônica, foi preciso construir uma estrada de ferro para escoar a produção de minas de hematita. A Vale do Rio Doce deu início à Estrada de Ferro Carajás e experimentou as mesmas dificuldades de toda construção na selva amazônica, mas, ao contrário da borracha, as jazidas de hematita não iriam se esgotar. Havia minério suficiente para torná-la rentável desde o início das operações, com trens que no início da operação carregavam 19.000 toneladas e hoje transportam 21.000, talvez a maior carga do mundo.
A tragédia da Madeira-Mamoré e os recordes de eficiência de uma ferrovia como a de Carajás chamam a atenção para o fato de que a sobrevivência das estradas de ferro está intimamente ligada aos produtos que elas transportam e à necessidade de ser projetadas dentro de uma logística regional. As estradas de ferro cumpriram bem o seu papel quando trouxeram um grande impulso à economia, atendendo à demanda de transporte de um determinado setor, como o café, a cana-de-açúcar e os minérios. O declínio da atividade trouxe consigo a decadência da respectiva ferrovia. As estatísticas da ferrovia de Carajás foram sempre crescentes porque ela está ligada a uma atividade rentável, a exportação de minério, mas também graças a uma visão administrativa que conhece os inconvenientes de se cuidar só da mina ou só da ferrovia (é uma ironia o fato de que o responsável por toda essa competência, o ex-presidente da Vale, Eliezer Batista, tenha sido demitido pelos militares).
No Brasil a era do trem começa no final do século XIX, com o transporte de uma das maiores riquezas do País, o café, uma história contada por muitos autores, mas nem por isso menos fascinante. Entre outros livros que tive oportunidade de ler sobre o assunto, chamou-me a atenção Café, Ferro e Argila, do arquiteto Fábio Cyrino. Conta, através da arquitetura, a história da grande estrada de ferro que foi a São Paulo Railway Company Ltd.
Sua criação resultou do crescimento muito rápido da cafeicultura no Estado de São Paulo, que demandava transporte eficiente de grande quantidade de café para Santos. Os produtores paulistas tiveram a ferrovia que precisavam e a São Paulo Railway Co. transportou, por algumas décadas, um volume de carga que justificava sua existência.
Como mostra o belo livro de Cyrino, os ingleses reproduziram aqui a arquitetura que desenvolveram na Inglaterra. Quem já passou pela Estação da Luz, em São Paulo, ou visitou as instalações da estrada em Paranapiacaba, ou visitou as oficinas de Jundiaí, percebe em cada prédio o toque inglês.
As ferrovias e seus construtores deixaram nas regiões por onde passaram outros sinais marcantes, além da arquitetura. Alguns deles em nosso idioma. Um dos mais pitorescos é a palavra “bigoana”, que no interior de São Paulo significava uma pedra muito grande, que, para ser removida inteira, necessita do uso de explosivos. Vem, é claro, de big one. No Rio, os trilhos dos trens estabeleceram uma importante divisão geográfica entre os subúrbios – os da Central e os da Leopoldina, referência às estradas de ferro do Rio de Janeiro, ao longo das quais eles se desenvolveram. Sobreviveu por muito tempo uma série de termos tirados da nomenclatura das locomotivas a vapor, como se verifica na descrição de uma briga feita por um malandro carioca: “Levou uma na caixa de fumaça e ficou sem a grade da fornalha”- que pode ser traduzido por “levou um soco na cara e quebrou os dentes da frente”.
A São Paulo Railway Company foi a matriz da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, que manteve por muitas décadas os padrões de excelência implantados pelos ingleses. Tive a oportunidade de verificá-los, de 1959 a 1963, como engenheiro da Cia. Técnica de Motores, encarregado de assistir as oficinas das estradas que usavam as locomotivas EMD, vendidas pela companhia. Minha rotina de visitas levava-me a Bauru, onde chegava de avião, vindo do Rio, seguia de ônibus ou de limusine para Araraquara e, finalmente, para Jundiaí, no bom trem da Paulista. O trem que saía de Colômbia, no oeste do Estado, chegava à estação de Araraquara às 2h47, segundo o cartão de horários. Nessa hora, se o trem não estivesse na estação, estava visível, a, no máximo, cem metros do ponto de parada. Com a mesma precisão eu chegava a Jundiaí dentro do horário e cumpria o ritual de minhas visitas às oficinas mais limpas que encontrei em meu trabalho com estradas de ferro em quatro continentes. O mestre geral, que me acompanhava, chamava-se Martinho. Para entrar com ele nas oficinas, eu tirava meu paletó e Martinho punha o seu, pois era norma da estrada que ele tinha orgulho de respeitar.
Por algum tempo, ainda, a Cia. Paulista de Estradas de Ferro conseguiu manter o padrão de qualidade que herdou da São Paulo Railway, apesar do franco declínio do volume de carga transportada. A decadência culminou com a centralização das estradas do Estado de São Paulo, representada pela criação da Ferrovia Paulista S/A (Fepasa), num esforço equivocado, que propunha salvar várias ferrovias com uma administração centralizada, quando o que faltava, na verdade, era carga a transportar, por falta de uma política de transporte ligada aos centros de produção. A Central do Brasil, a Cia. Paulista, a Sorocabana, a Mogiana, a Leopoldina e muitas outras tiveram suas existências ameaçadas por providências semelhantes.
Nos últimos anos, as estradas privatizadas já demonstraram que estão no caminho certo, tendo encarado os programas a partir de seus centros produtores, transporte ferroviário, estocagem, etc.
O caso das estradas de ferro que operam trens de passageiros é diferente. O transporte de passageiros atende uma necessidade ligada à vida de regiões, de cidades e até a condições de planejamento econômico nacional, e é sem dúvida menos atraente do ponto de vista de remuneração, pois exige um veículo mais caro, uma operação mais cara para uma carga mais leve, o que torna o custo de transporte muito mais elevado. Na Europa, onde o transporte de passageiros foi sempre muito eficiente, é, com raras exceções, uma atividade mantida por governos, que se dão por satisfeitos em operar sem prejuízo ou com um mínimo de lucro.
Parece ser este o caso das estradas de ferro SNCF na França, Deutsche Bundesbahn na Alemanha, Renfe na Espanha, British Rails na Inglaterra. Nos Estados Unidos, onde as ferrovias são entidades privadas, o transporte de carga manteve-se como atividade lucrativa, mas o de passageiros chegou próximo da extinção, utilizando subterfúgios para que o governo federal contornasse a proibição de subsidiar atividades privadas, como o frete pago para transporte para os Correios e com a criação da Amtrack (vem de American Track, algo como Trilhos Americanos), uma firma de transporte de passageiros que utiliza concessões para usarem os trilhos de ferrovias que se veem felizes de se livrarem da parte podre do negócio sem prejudicar uma atividade de interesse nacional.
Os trens de passageiros tiveram um surto de progresso no mundo todo, no século passado, a partir da implantação de trens de alta velocidade como o japonês Shinkansen e o francês TGV (sigla para train de grande vitesse, ou trem de alta velocidade). Embora no Japão os abalos sísmicos frequentes tenham impedido a fixação de trilhos que sustentassem velocidades superiores a 200 quilômetros por hora, os fundamentos da nova era, lançados ali, resultaram em trens que operam a 300 quilômetros por hora.
Quando, no ano passado, o TGV 150 bateu seu próprio recorde de velocidade, alcançando 574,8 km/h, tinha a bordo como convidados especiais, Sérgio Cabral, governador do Rio de Janeiro, e Julio Lopes, seu secretário dos Transportes. Existem bons motivos para se acreditar que os próximos capítulos dessa história, no Brasil, serão emocionantes.
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