Campeões do bom humor

Façamos vista e ouvido grossos aos erros gramaticais e às trombadas na concordância abrigados na página ao lado. O sempre atento leitor de Brasileiros perceberá logo que, ao menos neste início de reportagem, o cuidado com a língua, estandarte que a revista não abre mão de carregar, pode ser deixado de lado por alguns momentos. A estrofe é o grito de guerra dos atletas paraolímpicos brasileiros. Com 228 medalhas (83 ouros, 68 pratas e 77 bronzes, mais do que o dobro do total do segundo colocado, o Canadá), eles levaram o País a um inédito primeiro lugar em Jogos Parapan-Americanos, no Rio 2007.

A letra é uma adaptação de um grito de guerra da Independente, a principal torcida organizada do São Paulo. Torcedor fanático do time, o nadador Marcelo Collet, um paulistano de 27 anos, radicado desde os 11 em Salvador (BA), é o autor da versão. No Parapan, bastava uma oportunidade e os atletas soltavam a voz. Com orgulho!
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Ditas por alguém sem limitações físicas a uma pessoa com deficiência, as frases de Collet, dependendo da situação, poderiam soar desconfortáveis, constrangedoras, até grotescas. Mas entre eles – e entre muitos acessos de riso de todo mundo -, o efeito nos ginásios, piscinas e estádios cariocas foi outro.

Era a expressão de uma capacidade surpreendente, admirável, de superar um dos problemas mais duros que podem ser enfrentados por um ser humano. Fazer dessa conquista, maior do que qualquer quebra de recorde ou medalha, o próprio sentido de vida. Vencer no esporte e, como se tudo isso fosse pouco, ainda cultivar um bom humor suficiente para rir, ironizar, produzir piadas e episódios hilários a partir da própria condição. O que à primeira vista não teria qualquer chance de escapar do carimbo do politicamente incorreto tornou-se uma manifestação de algo, podemos dizer assim, poeticamente correto.

É verdadeira a tese de que só conhece a dor quem tem o espinho no pé. E também a de que, grande ou pequeno, todo problema só é relativo quando enfrentado pelo outro. Se as vítimas somos nós, ele é sempre absoluto. De qualquer forma, ver o talento adicional desses atletas para espantar a melancolia chega a ser comovente para quem tem tudo no corpo, aparentemente funcionando. A situação adquire um valor ainda maior quando se constata que, na quase totalidade dos casos, o caminho para a nova vida foi achado com esforço próprio.

Entre os fatos mais engraçados vistos no Parapan está, por exemplo, a brincadeira feita por um nadador americano com um canadense. Solícito, o primeiro ofereceu uma garrafa de isotônico ao colega sedento. Tudo estaria de acordo com o espírito olímpico se o americano, que não tem uma das mãos, não arremessasse o recipiente para o amigo, que não tem nenhuma delas. Houve também muita festa com os atletas das cadeiras de rodas, os cadeirantes, a cada vez que se executava o Hino Nacional.

Aos primeiros acordes, os mais animados pediam aos colegas que se levantassem para reverenciar a Pátria. “Vocês não foram educados? Fiquem de pé!”, gritavam. Nem os portadores de paralisia cerebral escaparam. Alguns deles, em função da deficiência, sofrem espasmos e apresentam tremores pelo corpo. Era a senha: “Por que vocês beberam demais ontem? Não sabiam que hoje era dia de competição? Assim não dá…”, disparavam os colegas.

Na liderança de grande parte dessas traquinagens quase sempre estava o nadador Collet, o autor do grito de guerra. Um fato curioso envolve sua criação. A primeira letra, lançada às vésperas do Mundial de Natação de 2006, disputado em Durban, África do Sul, era Vai lá / vai lá / vai lá de coração / vamu sem braço / vamu sem perna / vamu ser campeão. Por reivindicação dos deficientes visuais, que se sentiram excluídos dos versos, o nadador alterou a letra para o Parapan. Substituiu vai lá de coração por com os olhos do coração.

Collet perdeu o movimento e a sensibilidade da parte inferior da perna esquerda ao ser atropelado com sua bicicleta de corrida em Salvador, em junho de 1998. Na época, fazia parte da Seleção Brasileira Júnior de Triatlo. Seu plano era disputar as Olimpíadas de Atenas 2004. Após o trauma inicial, começou o longo caminho da reabilitação. Durante o processo, tinha um objetivo em mente: “Queria voltar a praticar esporte de alto rendimento e reconquistar tudo o que havia deixado para trás”. Mesmo recuperado, percebeu que as seqüelas do acidente o impediriam de prosseguir na antiga modalidade.

Daí para a natação paraolímpica foi uma braçada. Casado com Tatiana, uma produtora de TV, e pai da pequena Iara, de 5 meses, Collet definitivamente não pertence ao imenso time dos que fazem da reclamação uma modalidade. Seu esporte é outro. “Quero viver a vida com intensidade. A deficiência está na cabeça das pessoas. Na minha, ela passa longe”, diz ele, que, ao lado de Daniel Dias, Jourdan Lutkus e André Brasil, conquistou no Rio 2007 a medalha de ouro no revezamento 4 x 100 m medley masculino, na categoria 34P, para atletas com deficiência motora.

O nadador busca agora a classificação para Pequim 2008, que ocorrerá logo após o final dos jogos convencionais. Fora das piscinas, ele pretende produzir um documentário sobre os Jogos. Talento não lhe falta. Ao lado de quatro amigos do curso de Cinema da Faculdade de Tecnologia e Ciências de Salvador, ele dirigiu e produziu Lili Bolero. O filme levou o prêmio de melhor documentário universitário no Gramado Cine Vídeo, mostra que ocorre paralelamente ao famoso festival de cinema. Collet afirma que o choque inicial da deficiência foi superado. Daí o desprendimento e a naturalidade para brincar com algo capaz de produzir incômodo.

Show de simpatia
A postura de Roseane Ferreira dos Santos, a Rosinha, é igualmente capaz de fazer qualquer um repensar a gravidade de seus problemas. Ouro no arremesso de peso e no lançamento de disco, com dois recordes mundiais, em Sydney 2000, e tricampeã de disco no Rio 2007, Rosinha é uma figura adorada e conhecida no ambiente paraolímpico. O show de simpatia e o humor desconcertante dessa pernambucana de 35 anos, o sexto dos sete filhos de uma vendedora de tapioca da Várzea, bairro pobre do Recife, explodem logo no início do telefonema para marcar a entrevista: “Desculpe, moço. Demorei a atender. É que eu estava me vestindo, tinha achado só um pé do meu sapato e estava procurando o outro…”. A gargalhada potente vem em seguida. Rosinha não tem a perna esquerda. Tinha 18 anos e voltava da escola quando um caminhão dirigido por um bêbado subiu na calçada e espremeu sua perna contra um muro. Amputação. “Me tranquei em casa. Não tinha vontade de fazer nada, nada, nada”, lembra. “Hoje eu sei, o médico me ensinou: o nome daquilo é depressão.”

Foram dois anos e meio naquele ritmo – melhor seria dizer naquela falta de ritmo. Até que uma tia, chamada Cessa, foi passar férias em sua casa. Nos primeiros dias, longas conversas com a sobrinha. Como a moça insistia em não cruzar a porta da sala para fora, tia Cessa colocou cadeiras na calçada. Decidiu passar ali praticamente todo o tempo. Entrava apenas para comer, tomar banho e dormir. Era a maneira de forçar a sobrinha a sair, caso ela quisesse travar novos papos. Um, dois, três dias, uma semana. Até que Rosinha saiu. Primeiro reencontrou os primos. Depois, os amigos. Depois o prazer de viver. Não voltou mais. “Tia Cessa iniciou todo esse caminho que me devolveu a vida”, diz Rosinha no único momento da conversa em que abandona as risadas.

A euforia logo está de volta com a lembrança das brincadeiras que correm soltas entre os atletas. “Essa mesmo do sapato, que fiz com você, eu adoro mandar nas competições”, conta ela. “Antes do Pan, enlouqueci os árbitros num campeonato dizendo que não achava o segundo pé do sapato. E não é que eles ficaram procurando!”, recorda, às gargalhadas. Há outras peças impagáveis.

“Nos refeitórios, durante as competições, a gente costuma roubar carne, salada ou doce das bandejas dos deficientes visuais. Os caras ficam procurando e não entendem nada. “Ué, cadê meu bife? Ih, onde está minha salada? Eu coloquei aqui…”, imita Rosinha. “Claro que a gente devolve ou pega a comida novamente. Alguns já nem caem mais na história.”

Outra delas, marcada por um humor ácido, costuma ser feita quando alguém passa na frente de uma TV ligada num ambiente que abrigue pelo menos um deficiente visual. Sempre tem um para dizer: “Ei, não vê que está atrapalhando Fulano de ver a TV?”. Muitas vezes, conta Rosinha, o próprio deficiente visual dispara: “Saia da frente. Está pensando que eu sou cego?”.

Ao contrário do que se possa imaginar, ninguém leva as brincadeiras na maldade. “Elas viraram nossas marcas. É a forma de mostrarmos que somos alegres e estamos equilibrados”, explica a atleta. “Feitas com carinho, não há ofensa”, completa.

Recorde mundial
Outro sinônimo de carisma no meio, o mato-grossense Lucas Prado, 22 anos, medalha de ouro nos 100, 200 e 400 metros rasos no Rio 2007, com recorde mundial nas duas primeiras e parapan-americano na última, assina embaixo.

“Passamos por processos semelhantes e nos entendemos muito bem. Os parâmetros são nossos. Não pode haver – e não há – maldade entre nós”, destaca. Aos 17 anos, Prado teve descolamento simultâneo das duas retinas. Passou por seis cirurgias, mas continuou sem enxergar. “Caí na bebida, perdi tudo, até a mulher que eu gostava. O esporte me recuperou. Posso dizer que, de fato, eu conheci a cara e a coroa da moeda.” O humor foi preservado.

O velocista ri quando se lembra dos amigos amputados que escondem próteses na areia da praia e colocam os outros para procurar. Seu e-mail? “ceguinhoprado@…” Em tempo: a mulher “que ele gostava” voltou. Estão juntos e felizes. O primeiro filho, uma menina, deverá vir depois dos Jogos de Pequim 2008, para os quais Prado, por causa dos belíssimos resultados no Rio, já está classificado. Seu nome é Janaína. Janaína Veloz.

Deixar traumas e cicatrizes causados pela deficiência em segundo plano está entre os objetivos do grupo coordenado por Dietmar Samulski, doutor em Psicologia do Esporte pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e chefe da equipe de profissionais que acompanhou os atletas brasileiros no Parapan do Rio.

Entre os especialistas do time está a psicóloga e professora de Educação Física Dalila Galano Ayala, 33 anos, que analisou o comportamento de halterofilistas e da alegre turma da natação. Foi dela a sugestão para Collet criar o grito de guerra que virou marca da delegação. “A música tornou-se um instrumento de união e
de identificação para os nossos atletas”, avalia.

No início, Dalila também se impressionou com a forma debochada com que os atletas lidavam com a deficiência, mas não precisou de muito tempo para compreender a razão. “Não existe negação do fato. O que ocorre é que eles venceram os tabus e traumas na relação com a deficiência. E, por isso, superaram a dor. Com um jeito leve de encarar e de vencer obstáculos, eles contribuem para que se dê um novo significado à condição do deficiente no Brasil.”

Dalila diz que há uma certa cautela para que as piadas e brincadeiras não extrapolem e, com isso, provoquem rachaduras na estrutura. Quando isso ocorre, fato raro segundo ela, técnicos e dirigentes entram no circuito para aconselhar e orientar aqueles que estão afrouxando as rédeas do bom senso.

Na busca da superação de limites, a psicóloga, a exemplo de alguns técnicos de futebol, também faz uso de filmes e vídeos capazes de motivar os grupos. Na maioria dos casos, o protagonista sofre como um pobre-diabo, mas acaba sempre, ou quase sempre, vencendo. As experiências dos personagens desta reportagem poderiam inspirar roteiros semelhantes. Uma delas é a do paraibano Damião Ramos, 32 anos, zagueiro e capitão da Seleção Brasileira de Futebol de Cinco, modalidade para deficientes visuais.

Nascido em Campina Grande, ele passou a infância e a adolescência em Cabaceiras, no sertão de seu estado natal, cidade famosa por sua Festa do Bode e por ter se tornado uma importante locação para os cineastas brasileiros. Sua história tinha tudo para ter um final infeliz. Ele foi vítima de um disparo acidental feito por um amigo que brincava com uma espingarda de chumbo calibre 32. O projétil atingiu seus olhos, produzindo danos irreversíveis nas córneas e o descolamento das duas retinas.

Damião tornou-se amargo – um cabra acabrunhado, como se diz na sua região. Mas a visita de um time de deficientes visuais a uma cidade vizinha mudou seu rumo. Na infância, Damião, apaixonado pelo Flamengo, passava horas atrás de uma bola nos campos de terra esburacados do Cariri.

O futebol para cegos era a oportunidade de virar o jogo. E assim foi. O atleta paraibano, a exemplo do que reza o ditado popular, é o típico sujeito que perde o amigo, mas nunca a piada. Vive azucrinando colegas da seleção, que conquistou o ouro nas Paraolímpiadas de Atenas 2004 e nos Jogos Parapan-Americanos Rio 2007.

Esconder as chaves dos parceiros de equipe é um de seus passatempos prediletos. Diverte-se também desamarrando cadarços dos tênis de suas vítimas. Para isso, espera o momento do treinamento em que são feitos os alongamentos. Por vezes, inventa de encher de nós os lençóis de quem tem o azar de dividir o quarto com ele nos hotéis e concentrações. Casado com Jeanne, 24 anos, que conheceu depois de ter ficado cego, e pai de Juan Pablo, de 1 ano e 2 meses, ele se diz um homem feliz. Garante não sentir falta de nada do que tinha antes de ser envolvido pela escuridão. Ou de quase nada.

Perguntado sobre o que gostaria de ver se lhe fosse dada a chance de enxergar por apenas um instante, fez um breve silêncio. E desconcertou o repórter. “Gostaria de olhar para o rosto do meu filho.” Dessa vez ele falou sério. “Mas só dessa vez”, avisa, soltando uma gostosa gargalhada.


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