Marmeleiros, imburanas e xiquexiques. Foi na caatinga nordestina que Luiza Gomes Pereira, cresceu, se casou, teve filhos. Do alto dos seus 5 anos, foi testemunha da revolução de 1930, na Paraíba. Viveu a política dos coronéis e ouviu com respeito e medo as histórias de cangaceiros. Ao longo dos anos, assistia a tudo com a distância imposta àqueles que do alfabeto aprenderam só o próprio nome. Construiu um futuro sem nunca ter sonhado com um. Cada desafio tinha o tamanho de um dia. Foram muitos, até se acostumar com pequizeiros e buritizais do cerrado.

1955 – O jingle anunciava a candidatura de Juscelino Kubitschek. No comício, em Jataí, Goiás, o mineiro tornava pública a intenção de construir Brasília. Àquela altura, Luiza já tinha cinco filhos, perdido dois e nem se deu conta da discussão. Rádio era artigo de luxo em Itaporanga, distante 406 km de João Pessoa, e o interesse pelas questões nacionais era mínimo: “Só queria saber dos filhos e só saía de casa para a reza”.
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1956 – O Congresso sanciona a lei para a construção de Brasília. É criada a Novacap, a Companhia Urbanizadora da Nova Capital, e o engenheiro Israel Pinheiro passa a ser o xerife do gigantesco canteiro de obras. Os primeiros candangos começam a chegar. Os operários vêm de Minas, Goiás, Bahia, Paraíba… Surge o primeiro alojamento e com ele o Núcleo Bandeirante, espaço do comércio, sem regras e sem impostos, ponto de referência de todos os que chegavam para tentar a sorte. Em Itaporanga, Luiza olha para a roça: o marido colhe algodão.

Fevereiro de 1959 – O ritmo das obras em Brasília se acelera. A população já soma 50 mil operários e dia após dia chegam mais pessoas. Até Luiza, em Itaporanga, já sabe: “Foi a madrinha Marinha quem avisou pra todo mundo que JK ia mudar a capital”.

Uma história que não virou notícia e ficou na memória dos pioneiros: no acampamento de uma das maiores construtoras, a Pacheco Fernandes, os trabalhadores protestam contra a comida. Era domingo de carnaval. Os homens da Guarda Especial de Brasília (GEB), chegam ao refeitório e atiram. A versão oficial registra um morto. A história, contada de geração em geração, fala em chacina. Pelo menos nove pessoas morreram e cerca de 50 ficaram feridas. Só um jornal, de oposição a Juscelino, foi ao canteiro de obras apurar o que aconteceu. Chacina ou não, nasce uma certeza: os candangos viviam sob a pressão da pressa.

Junho de 1959 – Francisco Pereira Cordão resolve enfrentar Brasília. Segue sozinho. Deixa para trás a mulher, Luiza, e cinco filhos. O mais novo, com 5 meses. “Valei-me, como senti medo… Chico não sabia ler. Não tinha dinheiro. Na hora em que ele pegou o pau de arara, que subiu no caminhão e se despediu de mim e dos meninos, falou: ‘Olha aqui, Luiza, eu só levo uma rapadura e um litro de farinha’. Eu chorei demais, corri no ‘seu’ Quincô e pedi 20 mil réis emprestados. Prometi: ‘No dia que Chico começar a mandar o dinheiro, eu pago’.”

Dezembro de 1959 – O marido volta à Itaporanga. Na mala, traz histórias e dinheiro. Conseguira o primeiro emprego como servente de obras no “28”. O prédio ganhou o apelido pelo número de andares, mas é conhecido mesmo pelo nome oficial: Congresso Nacional. “Chico voltou bonito, gordo, feliz… e queria que eu ficasse na Paraíba trabalhando na roça, pra ele voltar sozinho pra Brasília”. O marido fez a proposta e ouviu a resposta na hora: “Eu fico sozinha, nada! Com cinco filhos pra criar? Eu vou no teu pé, seja pra onde for”. Chico avisou: “Luiza, tu vai sofrer”.

Janeiro de 1960 – Deixaram para trás duas cabras, a casa de taipa e a roça de algodão. Começou a viagem. Chegaram a desistir no caminho. Pararam em Paulo Afonso. Quem sabe, Chico não conseguiria trabalho na recém-inaugurada usina hidrelétrica? Não deu certo. Uma semana depois, estavam de novo na estrada. No pau de arara, vinte pessoas dividiam o caminhão com um carregamento de fumo que cobria o chão e entupia os pulmões. Luiza e a filha mais velha, Maria do Socorro, com 10 anos, eram as únicas mulheres. O caçula vinha pendurado no peito. Foram 11 dias de viagem. Durante o dia, a poeira da estrada. À noite, o telhado de estrelas. Custou caro. Na chegada a Brasília, o caçula estava doente: “Cícero adoeceu na viagem. Acho que foi o cheiro do fumo. Não conseguia comer nada. Fomos direto para o hospital das Pederneiras (atual Hospital de Base). Foram 22 dias… mas meu filho não saiu…”. Meio século depois, minha avó ainda conta essa história com culpa, como se pudesse ter evitado. Também guarda um pouco de raiva: “Antes de chegar ao Núcleo Bandeirante, o motorista tirou o fumo da carroceria, jogou numa vala e cobriu com terra. Escondeu a carga proibida e entramos como se tivesse tudo certinho”.

Abril de 1960 – Faltava menos de um mês para a inauguração de Brasília. Era preciso arrumar a cidade para a festa e, nessa hora, operário não podia mais morar perto. O barraco da família ficava na Vila Amaury. Na hora do almoço, quando só havia mulheres e crianças, chegaram os caminhões. Tudo foi derrubado. Poucos dias depois, no lugar surgiria o Lago Paranoá. “Meu marido estava trabalhando nas obras, não soube de nada.” A família foi parar a uns 40 km de distância, num descampado que mais tarde seria batizado de Sobradinho, cidade satélite do Distrito Federal. “Meu marido só chegou 15 dias depois, onde eu estava com os meninos. Era sábado, ele tinha deixado o trabalho ao meio-dia. Foi chegar uma da madrugada… no escuro, todo rasgado, sujo… Não tinha estrada, só tinha mato. Quando chegou, quase morreu de chorar, pensava que tinha perdido a família.” Ao contrário de Brasília, as cidades satélites não nasceram de um plano, são resultado da urgência. Ceilândia, a maior de todas, é o grande símbolo. O nome nasceu de uma sigla: CEI – Centro de Erradicação de Invasões.

Contam que Sobradinho tem esse nome porque ali havia uma casinha de João de Barro feita em dois pavimentos. Depois de se estabelecer nesse lugar, minha família encontrou um pedaço de sossego. Luiza começou a trabalhar lavando roupa, depois como merendeira em escolas. Matriculou os filhos, 1o grau, 2o grau, faculdade. Em 1964, comprou os tijolos para construir a própria casa, onde mora até hoje. A maior memória da construção de Brasília está ali, na foto tirada em roupa de domingo, com tijolos ao fundo.

“Não sou mais paraibana. Virei brasiliense.”

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