Pierluigi Palaviccini tinha irmãos, amigos, emprego, casa, cachorro, carro e tudo mais. Tudo certo, mas não tinha mulher, dessas que duram. Nada de errado com ele. Apenas gostava de trocar de mulher, diferentemente de outros que não gostam de trocar de mulher.

Palaviccini tinha três vertentes marcantes. A primeira era a poesia, por onde passava sua vida. Boa, apesar de sempre soprada por leve depressão, que verdadeiramente nunca o prejudicou. Era apenas uma companheira. Em ocasiões declamava para os amigos, com grande seriedade, os poemas favoritos. Às vezes, quebrava o encanto com alguma brincadeira. Como a zombar da ilusão. Era seu jeito de ser. Assim, sua preferida, de Elliot, descambava para o nascer, copular e morrer, estes são os fatos. O que fazer? Ele próprio respondia: com nascer e morrer não há o que fazer. E então ria.

A segunda vertente, ligada a essa particular poesia, eram as mulheres, que o encantavam. Teve muitas, nunca concomitantes, que fruiu com gosto. Percorria bem a delicada trilha. Invariavelmente, após o desenlace, decorrido o luto, lá estava de novo o Palaviccini, então amigo. Havia por lá alguma arte.

A terceira vertente era a música, com a qual mantinha uma relação não culta, de desfrute. Às vezes levemente obsessiva. Era proverbial a viagem que fez com um amigo ao Acre, para pescar. Levou só duas músicas na caminhonete, cada qual em um CD. O Bolero, de Ravel, e Caravan, de Ellington e Tizol. Músicas para viagem, disse ele na partida. Nem haviam chegado à divisa de Minas quando ele mesmo atirou o Bolero pela janela, porque tinha clímax e viagem não é pra ter clímax. Viagem é viagem. Na longa jornada, quando não ouviam Caravan, o Palaviccini assobiava Caravan. Coisa de louco. O amigo incorporou para sempre Caravan, com o trompete de Arturo Sandoval e a Boston Pops Orchestra.

E assim seguiu o Palaviccini pela vida, apoiado nas mulheres que o encantavam, na poesia e na música, que o elevava. Seu coringa, na manga, era sempre Caravan, que trazia alento e vigor. Esperança nas horas difíceis. Nela encontrava a sensação da jornada segura, da companhia boa. Ele dizia que Caravan não precisava de nome. Esse fascínio naturalmente contaminava seus amigos. Tinha energia, o Palaviccini.

Foi nessa toada até os quarenta e muitos, quando encontrou a Malu. Sossegou o facho por cinco anos. Mas não tardou muito veio a tal notícia ruim. A que todos temem. O grande coice.

Valente, não fraquejou. Aceitou o destino, sem resmungo. Acertou tudo o que precisava ser acertado e fez um pedido único ao Paulão, o mais próximo. Generoso, queria poupar os amigos do que não pode ser entendido.

Paulão, trompetista, cumpriu tudo à risca. Não precisou de muito. Bastou a composição de Ellington e Tizol, a inspiração de Arturo Sandoval e a ajuda de alguns amigos. Luizão no baixo e Charles no bongô. A Malu, sem qualquer pergunta, também ajudou.

Ali no extenso gramado, com o céu azul outonal, delicadamente tocaram Caravan durante todo o enterro, enquanto a Malu soltava, pausadamente, balões que subiam ao céu. O primeiro preto e os outros todos brancos. Um após outro.

Assim foi o Palaviccini.

*Marcos Rodrigues é engenheiro civil , professor titular da Escola Politécnica da USP e dedica-se também à literatura


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