Cardoso, el campeón del mundo

O jogo está encardido. O Celtic da Escócia e o Racing Club da Argentina estão no 0 a 0 na terceira e decisiva partida do Mundial Interclubes de 1967. O jogo se arrasta nervoso como as grandes decisões: poucos arremates a gol e muitos pontapés no meio do campo. A pressão é maior sobre La Academia. O ponteiro marca dez minutos da etapa final. O atacante Cárdenas recebe a bola a 30 metros da meta adversária. Patea, patea – chuta, chuta -, gritam os companheiros. É o que Cárdenas faz. Em linha reta, a bola alcança o ângulo direito, inalcançável para o arqueiro Fallon. Golaço. O mês de novembro recém-conta quatro dias e o Racing se torna o primeiro clube argentino campeão do mundo.

Um único brasileiro está em campo nesta noite. É João Rodrigo Cardoso, gaúcho de Uruguaiana que tentou ser feliz no Grêmio, mas fez carreira no futebol argentino, passando pelo Newell’s Old Boys e pelo Independiente. Conhecido pelo sobrenome, jogou uma das mais disputadas Libertadores da América para depois enfrentar o Celtic nas três partidas da conquista mundial.
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Quarenta anos depois, Cardoso manda avisar que não comparecerá à cervejinha cotidiana com os amigos, em um bairro da zona sul de Porto Alegre. Veste a gloriosa jaqueta alviceleste e retira as medalhas e quadros da gaveta, para receber jornalistas em seu apartamento, fato que surpreende os três filhos: com 69 anos, aposentado como fiel de armazém do Departamento Estadual de Portos, Rios e Canais (Deprec), Cardoso sempre foi arredio à imprensa. Do passado, pouco fala, a não ser quando lhe suplicam pelas histórias de quando estufava as redes nos estádios de futebol ao sul do continente.

Parece que as coisas mudaram desde que voltou à Argentina, em novembro último, para receber homenagens pela conquista. No ônibus de volta – porque tem medo de avião – talvez tenha se dado conta de que fez algo grande na vida: jogou futebol, sobretudo, e foi o único brasileiro a ter participado da maior glória do Racing Club de Avellaneda.
Sua epopéia pessoal começou nos campos enlameados de Uruguaiana, na fronteira do Brasil com a Argentina, onde nasceu, no Natal de 1939. Seus pais se chamavam Aristotelina e Aristóteles, um criador de ovelhas que se mudou para a cidade, onde administrou por décadas o Mercado Público Municipal. Às noites, João Cardoso cabulava as aulas do Colégio União para jogar futebol sob os postes de luz nas ruas da cidade. Recebia surras do pai pela falta de dedicação aos estudos, aos quais respondia: “Pode me bater, mas um dia eu vou jogar no Grêmio”.

E assim aconteceu. Aos 20 anos, quando saía do serviço militar, uma boa atuação numa olimpíada militar lhe rendeu seu primeiro contrato profissional com o Esporte Clube Uruguaiana. Jogou ali por pouco mais de três meses. Em setembro daquele ano, o Grêmio Futebol Porto-Alegrense foi à cidade realizar um amistoso contra o Uruguaiana. Cardoso correu, chutou, jogou bem: 13 dias depois, assinou com o time da capital, treinado pelo lendário Osvaldo Rolla, o Foguinho.

Podia ter tido melhor sorte com a camiseta tricolor. Era capaz de executar um “rush fulminante”, nas palavras do jornalista Walter Galvani. Tratava-se de “um tipo raro de avante, nestes tempos em que quase todos querem logo se ver livres da bola, temerosos das cargas dos adversários”, segundo o jornalista que, escrevendo na época, previa um problema para o treinador Foguinho: Cardoso era da mesma posição que Gessi e Juarez, dois atacantes que entrariam para a galeria dos maiores craques do Grêmio, pentacampeão gaúcho de 1956 a 1960 e que seria hepta de 1962 a 1968. “Foi o meu azar”, lembra Cardoso.

Nos três anos em que esteve no Grêmio, João Cardoso jogava mais nos aspirantes e raramente na equipe principal. Centroavante de ofício, precisava improvisar-se na ponta direita para garantir um lugar no time de cima. Seu hábitat era a grande área, mas a distância da camisa 9, sua preferida, foi a sina que o acompanhou até o fim da carreira.

O mercado ainda não determinava o calendário do futebol. Na falta de competições, os times faziam excursões pelo mundo. Cardoso conheceu quase toda a Europa defendendo o Grêmio, em horas intermináveis de pânico em aviões que pareciam se desmanchar no céu. Em uma das partidas, enfrentaram o Real Madrid, regido pelo húngaro Puskas. “Era baixinho, gordo, mas não conseguíamos pegá-lo nem com as mãos.” Conta Cardoso que, antes da partida, o treinador Foguinho foi falar com o zagueiro Pavilhão, usando um de seus bordões: “Não tem perigo, senhor Aírton. Este Puskas até eu consigo marcar”. No intervalo da partida, já com dois gols de Puskas, o zagueiro retrucou o treinador: “Seu Foguinho, o senhor não quer entrar em campo pra marcar o Puskas?”

Ao cabo da excursão, havia jogado bem e marcado 12 gols. “Na volta para o Brasil, pensei que viraria titular”, diz. Mas o Grêmio contratou Paulo Lumumba para a mesma posição e Cardoso adotou uma estratégia suicida, na tentativa de ser negociado para outro clube: “Fiquei brabo e não treinava. Quando me botavam pra treinar, chutava a bola pra longe, bagunçava o treino”.

Ao fim, foi para o Newell’s Old Boys, na segunda divisão argentina, trocado por um ponteiro direito, Ribeiro, a quem chamavam Tesourinha II, por sua semelhança com o craque do Internacional na década de 1940. Cardoso selou seu destino e foi jogar bola do outro lado do Rio Uruguai. “Eu não conhecia o futebol argentino, clubes na minha infância eram Santos, Palmeiras, porque em Uruguaiana só sintonizávamos as rádios do centro do País. Não fazia idéia de que time era o Newell’s.”

Era um tempo em que os brasileiros povoavam as canchas do país vizinho, embalados pelo bicampeonato brasileiro na Copa do Mundo. Só no Newell’s haviam outros sete brasileiros: Zuca, Cacique, Mourão, Cleo, Adroaldo, Ivo Diogo e Deraldo Conceição.

Jogou quatro temporadas no time de Rosário, subindo à primeira divisão em 1963 e se tornando um ídolo. Mesmo com o afeto pelo Grêmio e pela glória conquistada no Racing, o escudo na parede da sala revela o time do coração. “O Newell’s acreditou em mim, que era desconhecido na Argentina. Fui trocado, como se troca um cacho de banana”, diz.

O sucesso no Newell’s permitiu que Cardoso voltasse a Porto Alegre, depois de um ano e meio, para cumprir uma promessa: casar-se com Elaine, filha de um gerente de banco que não aceitava a idéia da garota gostar de um futebolista. Ainda no Grêmio, morava numa pensão ao lado da casa da futura namorada. Da janela, ela via Cardoso passar e não podia acreditar se tratar de um jogador do Grêmio. “Meu sonho era ter uma camiseta do time, mas meu pai proibia”, ela recorda. Conversaram pela primeira vez quando Elaine apostou uma Pepsi com uma amiga, tomou coragem e chamou o rapaz à sua janela: “É verdade que tu és o Cardoso do Grêmio?” Perdeu a aposta com a amiga, mas ganhou a promessa. “Um dia, vou casar contigo”, disse Cardoso.

Depois de quatro temporadas no Newells’s foi transferido para o Independiente, de Avellaneda, numa das maiores transações da época, que lhe rendeu de luvas, porém, apenas uma medalha, que guarda até hoje. Sua primeira partida pelo novo clube foi contra o Boca Juniors, na temida Bombonera, atopetada de torcedores xeneizes. Cardoso gosta de lembrar do 2 a 0 sobre o Boca, principalmente do momento em que recebeu a bola no meio do campo e chutou certeiro ao gol. Em outra jogada, correu até a linha de fundo, atrás de uma bola que parecia que iria sair, sob os gritos e xingamentos da torcida adversária. Alcançou-a e olhou para o meio do campo: um batalhão de jogadores do Boca corria em sua direção. Foi carregando a bola até a grande área e a alçou nos pés de Savoy: gol. Bombonera emudecida. Na arquibancada, um torcedor do Boca, de nome Roberto, primeiro argentino que acolhera Cardoso e que se tornaria seu compadre, lamentava: “Este desgraçado é meu amigo”.

No dia seguinte, foi entrevistado pela revista El Gráfico, sinal de grande prestígio. O jornalista queria saber se Cardoso sentia saudade das praias e do samba do Brasil. A resposta foi seca: “Nunca vi o mar e não escuto samba”. No final de semana, sairia na página central: “Não tem saudade, não tem palmeiras, não tem samba. Mas tem pique, desmarque e gol”.

Foi transferido no ano seguinte para o rival da cidade, o Racing Club, para disputar a Copa Libertadores de 1967. “Atravessou a rua” para vestir a camiseta azul-celeste que iria levá-lo ao topo do mundo. Com as luvas da transação, conseguiu comprar um apartamento em Porto Alegre.

O Racing foi campeão de uma das mais longas Libertadores da história, disputando 20 partidas e viajando para Bolívia, Colômbia, Chile, Uruguai e Peru. “Era uma loucura. Tu eras maltratado, xingado, apedrejado. No campo, te atiravam pedra, garrafa. A polícia, em vez de cuidar da gente, batia também”, lembra Cardoso. Em campo, a batalha era franca: “A falta era marcada somente em caso de fratura exposta ou nariz quebrado”, recorda, em tom de brincadeira. Delantero, marcou três gols na competição. Jogou ao lado de craques lendários como Alfio Basille, Juan Carlos Cárdenas, Norberto Raffo, Humberto Maschio e Roberto Perfumo. Mais uma vez longe da 9, jogava com a camisa 7, na ponta direita.

A final foi disputada em três partidas contra o Nacional do Uruguai. Depois de dois empates sem gols, em Montevidéu e Avellaneda, a decisão foi para um terceiro enfrentamento, no Estádio Nacional em Santiago do Chile. Cardoso marcou o primeiro gol da partida, aos 14 minutos do primeiro tempo, e o Racing venceu o Nacional por 2 a 1, conquistando sua primeira e única Libertadores. Dali, partiram para conquistar La Gloria Total.

Naquele tempo, o Mundial Interclubes era disputado com uma partida em cada país, com um terceiro jogo no caso de empate, em país neutro. Tomaram um avião até o Rio de Janeiro, depois até a Inglaterra, chegando a Glasgow, na Escócia, onde enfrentariam o Celtic, campeão da Europa e também estreante em mundiais. “Havia uma gana de os clubes argentinos ganharem o Mundial. Tínhamos apoio integral dos times, da imprensa. E o Racing era um time querido, muito técnico, com grandes jogadores”, diz Cardoso. Além disso, o rival Independiente havia sido derrotado em duas finais anteriores, o que revestia de mais gravidade o desafio do Racing Club.

Na primeira partida, o Racing sofreu uma derrota magra por 1 a 0. O jogo no campo do Racing terminou em 2 a 1 para os argentinos, com gols de Raffo e Cárdenas. Uma terceira partida se fazia necessária, e ela foi jogada no Estádio Centenário, de Montevidéu, terra do time que o Racing derrotara na final da Libertadores.

Mesmo jogando perto de casa, a atmosfera de guerra daquele jogo não sai da memória de Cardoso: “Eram 50 mil uruguaios torcendo para o Celtic. Quando entramos em campo, a torcida gritava ‘maricones, maricones’“. No intervalo, os jogadores do Racing se debatiam para encontrar maneiras de sair do 0 a 0. “Precisávamos chutar, de qualquer jeito, se não íamos jogar dez dias e não sairia gol”, conta Cardoso, que participou da jogada que resultou no gol ao receber de Martins na meia cancha e passar para Raffo. Este encontrou Cárdenas a quase 30 metros do gol adversário. “Ele queria continuar a jogada, porque estava longe do gol, mas nós gritávamos para chutar. Ele era destro e chutou com a canhota”, lembra. Um gol para entrar na história.

Depois da conquista do mundial, Cardoso ainda jogou mais dois anos no Racing e ainda ficou 40 dias no Náutico, de Pernambuco. Retornou à Argentina para encerrar a carreira no Newell’s Old Boys, aos 30 anos de idade, já com os filhos crescidos.

Em novembro passado, retornou para Avellaneda com a esposa, os filhos e os netos. O Racing Club comemorou os 40 anos do título mundial reunindo a maioria dos jogadores da época, rebatizando-os de La Gloria – agora é João de la Gloria Cardoso, para o divertimento da família e dos amigos. Há quatro décadas não encontrava nenhum dos companheiros da epopéia. “Reconheci todos e todos me reconheceram”, diz.

Foram ovacionados pela torcida do Racing antes de uma partida contra o Boca, no Cilindro de Avellaneda. Y alo ves, el equipo de José: os torcedores entoavam o velho cântico da década de 1960, referência ao glorioso esquadrão que conquistou o mundo sob o comando de Juan José Pizzuti, treinador até hoje reverenciado por ter transformado uma equipe de jogadores medianos na mais vitoriosa da história do Racing. No hotel, velhos torcedores do Racing vinham cumprimentar Juan Cardoso, para a surpresa dos netos. “Nunca pensei que o vô fosse tão famoso nesta cidade.”

Provavelmente, nem o próprio João Cardoso pensasse. “Sempre fui muito retraído. Não gostava de sair, nem dar entrevista. Eu tinha emoção de saber que estava jogando futebol, e que era um brasileiro disputando uma Libertadores, o campeonato do mundo”, diz, sentado na sala de casa, 40 anos depois de conquistar o mundo para o Racing.


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