Desde que emigrara da Itália, o clã Coser vivia na Serra Gaúcha tirando seu sustento da terra. Por gerações, tudo o que era consumido no dia a dia se produzia ali mesmo. Mas, em 1977, ao deixar para trás a pequena Encantado, aos 14 anos, Arri Coser também se libertou do futuro nada promissor que o município de apenas 20 mil habitantes lhe acenava. “Mesmo para um piá do campo, a conta era fácil: meu avô, trabalhador rural, dividiu as poucas terras que tinha entre os oito filhos. E meu pai não conseguiu comprar mais terras. Seguindo a ordem natural das coisas, eu e meus irmãos não teríamos quase nada para dividir. E ainda havia os tios e primos, que não eram poucos. Para mim, estava claro que os mais novos, como eu, levariam a pior”, conta, rindo.

Junto ao irmão Jair, cinco anos mais velho, resolveu ganhar o mundo almejando o mesmo emprego de boa parte dos jovens que migravam dali: o de garçom de restaurantes. O que ele não sabia é que não conseguiria deixar para trás o DNA pampeiro da lida com bois, porcos e ovelhas, e que este acabaria guiando seu destino. Décadas depois, Coser – ou Ari, com um só “r”, como é chamado, já que poucos pronunciam a dupla consoante, fruto da falha do escrivão – é dono da que talvez seja a maior rede de churrascarias do planeta, a Fogo de Chão, um império que abrange 16 lojas apenas nos EUA – Washington D.C. e Los Angeles, ou melhor, Beverly Hills, inclusas – e mais seis unidades no Brasil. Parte dessa odisseia é repassada agora nas páginas do Fogo de Chão – Tradição Gaúcha para o Mundo (SMS Editora), obra comemorativa dos 30 anos de grelhas e assados da empresa.
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Apesar dos atuais dois mil colaboradores diretos e do faturamento anual de US$ 152 milhões (dígitos de 2009), não é difícil escrutinar em Arri traços do típico self-made-man simplório, que não se embriaga do próprio sucesso. Mas, mesmo se hoje o poder – deputados, senadores, presidentes e até realezas – vem literalmente comer chez lui, naquele agosto de 1977, no chacoalhar do ônibus rumo ao Rio de Janeiro, sobravam dúvidas na cabeça do adolescente. E lágrimas, também. Achar emprego nem foi difícil. Primeiro no Rio, depois em Niterói, na churrascaria Oásis, reduto de conterrâneos do interior do Rio Grande. Lavador de pratos, auxiliar de garçom, garçom, auxiliar de churrasqueiro e, enfim, churrasqueiro – ao longo de três anos, essa foi a escalada profissional dos irmãos Coser na Cidade Maravilhosa. Além de protetor, Jair era o tutor legal de Arri, ainda menor de idade. Época de muito trabalho, mas também de alguma diversão. “Não tive adolescência. Brinquei de trabalhar. Mas como tudo para mim era novidade, eu adorava. Sempre dava para ir ao cinema, à praia. E sair na noite carioca após o trabalho com meu irmão e os colegas mais velhos era o máximo”, recorda Arri, que, envolvido entre grelhas e espetos, abandonou os cadernos e não mais voltou aos bancos escolares. “Aprofundei-me na área que abracei. Conheço de contabilidade à genética e veterinária bovina para debater com PhD nessas áreas.”

Presente de craque
Três anos de disciplina espartana no trabalho renderam alguma poupança e muita autoconfiança. Hora de voltar para os pampas e andar com as próprias pernas. Coube a Arri, já com 18 anos, ir a Porto Alegre verificar as oportunidades de um negócio próprio. “Por conta da pouca idade, o dono de uma lanchonete riu quando disse que estava interessado nela”, relembra. Uma sondagem o levou até um ponto de boa estrutura, mas na descendente comercial. Chamava-se Fogo de Chão, churrascaria no bairro Cavalhada, próximo ao rio Guaíba. Decididos a passá-lo para frente, os donos só abriam a casa três noites por semana. “O local era bom e nosso interesse foi imediato. Era um típico galpão gaúcho, com paredes revestidas em couro e móveis rústicos. Mas, por mais que tivéssemos economizado, o dinheiro não dava.” O socorro veio com o patriarca Ângelo Coser, que inteirou o que faltava com a quantia que poupara ao longo de 50 anos.

Nome mantido, menu trocado pelo tradicional espeto corrido à gaúcha. Ainda que a juventude e a disposição ajudassem, o começo foi de duro aprendizado. Entrava um dinheirinho aqui, outro ali, dívidas eram quitadas, comida era elogiada. “Nesse aspecto, nossa idade passou a ajudar, já que os clientes mais velhos viraram nossos protetores, sempre dando dicas”, relembra Arri. Shows com artistas regionais, como Renato Borghetti, e uma agenda para convidar clientes que demoravam a voltar à casa ajudaram muito. Até que, com um ano no local, veio a sorte grande: foram procurados para hospedar uma grande festa. “Quase caímos de costas ao saber que a festa era a despedida do Falcão, que acabava de ser vendido pelo Internacional para a Roma, da Itália. Eu e meu irmão éramos torcedores colorados, e o Falcão era nosso maior ídolo. Sediar a festa dele seria uma honra.” Foi muito mais que isso: o evento gerou comentários na cidade toda, e o churrasco da casa virou referência em jornais, rádio e TV. Logo o Fogo de Chão se espalhou para mais dois endereços, um deles em Caxias do Sul.

“Viramos referência do bom churrasco. Quem vinha para Porto Alegre de outras cidades e estados passou a nos visitar. Conhecemos muita gente”, diz Arri. Artistas, políticos, esportistas, empresários e jornalistas viraram habitués. Um deles, o crítico de gastronomia Silvio Lancellotti, impressionado pelo serviço e qualidade dos produtos, assinou artigo na Folha de S.Paulo, sugerindo aos donos que migrassem para a Pauliceia. Sinergicamente, meses após o artigo, um amigo paulistano avisava os irmãos sobre um excelente ponto na cidade.

Próxima parada, Tio Sam
Graças a empréstimos bancários e à venda de dois dos três pontos gaúchos, a filial foi aberta, em 1986, em Moema, bem próxima ao aeroporto de Congonhas – a aposta foi no fenomenal fluxo diário de carros na via. Tudo muito rústico, gauchesco, mesas sem toalha, espeto corrido à mesa. Igualzinho a Porto Alegre. Deu certo de saída. “Se deixássemos aberto 24 horas, lotava o dia todo.” Inabalável, o endereço resistiria às intempéries dos planos Cruzado, Bresser, Collor, etc. “Antes do Collor, que rendeu um baque de um ano na frequência da casa, o congelamento de preços até ajudou. Mas, no momento seguinte, quando veio o desabastecimento, ficamos sem matéria-prima. O que até foi bom, já que nos forçou em direção às primeiras importações do Uruguai e da Argentina”, conta.

Em 1987, com a loja de Moema já ampliada, surgiu a de Santo Amaro – já sob o conceito de churrascaria gourmet e com glamour na comunicação visual, padrão adotado dali em diante. “Essa unidade foi fundamental. Aquela parte da cidade abriga empresários, muitos deles, estrangeiros. Foi deles que começamos a ouvir que deveríamos levar o Fogo de Chão para o exterior.” O novo endereço passou a atrair também o circo da Fórmula 1, o que o projetou ainda mais. Percebido o crescimento do negócio, as viagens ao exterior em busca de aprimoramento e novos produtos foram incluídas no menu dos irmãos Coser. A estrutura foi profissionalizada, e a estabilidade comercial da empresa convidava a novos voos. EUA? “De tanto os clientes americanos insistirem, começamos a visitar o país para verificar a possibilidade de um ponto.” Corria 1997 e, após três anos de preparos e estratégias, o Fogo de Chão abria as portas em Dallas, com a mesma estrutura do Brasil. Foi saudado pelo crítico Dotty Griffith (do periódico Dallas Morning News) como “the brazilian meat-eaters mecca” (a meca brasileira dos comedores de carne). A opção de escolher a famosa cidade do Texas para instalar o restaurante em detrimento da Big Apple explica-se pelo fato de os grandes players do mercado de carnes do país serem da terra de George Bush pai, que, aliás, é cliente da casa.

Say “pi-can-ya”
Devidamente treinados, 22 funcionários embarcaram com passagem só de ida para o Texas – a maioria ainda está por lá. Sem falar inglês, Jair foi destacado para gerir a empreitada – desde então, vem ao Brasil apenas duas vezes ao ano. Arri também não falava inglês – hoje, diz ter melhorado, mas ainda não é fluente. “No início, isso atrapalhou. O lado bom foi que, ao contrário do que muita gente pensa, fomos muito bem recebidos, graças ao valor que eles dão para quem vai para lá e gera empregos.” Os primeiros clientes foram as famílias dos funcionários norte-americanos. “Nos EUA, tivemos de ser didáticos sobre nosso conceito de rodízio, deixando claro que não é ‘all you can eat’, mas sim uma experiência gastronômica: o cliente degusta tudo e volta ou não ao que mais gostou. E cuidado com o bufê, não exagere, deixe espaço para a carne”, brinca.

Algumas adaptações gastronômicas foram necessárias, começando pela diminuição de sal e de gordura – esta uma marca da rede. Não há batatas fritas e o coração de galinha caiu fora, já que os ianques não gostaram. Cupim também não existe. “O boi de lá é red angus, que não tem essa parte.” De resto, tudo é igual – até os greatest hits: fraldinha, costela, picanha, carré de cordeiro, bife ancho, etc.

Dallas foi o primeiro passo. Depois vieram Miami, Chicago, Atlanta, Baltimore, Denver, Kansas City, Minneapolis, Philadelphia, Scottsdale, Indianápolis, Washington D.C. e Los Angeles. No Brasil, Belo Horizonte, Brasília, Salvador e mais uma unidade em São Paulo, na Avenida Bandeirantes. Neste ano, já está programada a inauguração de unidades em Las Vegas e Rio de Janeiro – será o primeiro Fogo de Chão na Cidade Maravilhosa. Atualmente, só nos EUA são cerca de 10 mil comensais por dia. “É uma operação bem complexa. Nossa sorte é ter um time muito bem ajustado. O trabalhador americano absorve os treinamentos mais rapidamente que o brasileiro, e isso ajuda.” Ao contemplar o passado, Arri jacta-se do que considera seus “xodós”. “Chicago, por ser a maior dos EUA; Brasília, por ser o centro do poder do País; D.C., por ser em um prédio do século XVIII entre Casa Branca e FBI; e Beverly Hills, pelo glamour.” Sobram histórias de clientes VIPs, do príncipe do Japão a Gisele Bündchen e Black Eyed Peas, de Bill Clinton a David Beckham, e senadores americanos. “Esse ramo é prazeroso, mas não é fácil, tem de gostar. Depois de tanto tempo, o prazer é ainda maior, porque o desafio é maior. Há mais gente a capacitar, mais detalhes a acertar, o público está mais exigente”, diz. E completa: “Hoje, a empresa tem vida própria e anda sozinha. Se eu ficar muito perto, atrapalho.”


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