Excelentíssimos senhores,
Há anos São Paulo carece de um centro físico, um lugar que represente, para seus habitantes, um ponto de congregação, um espaço destinado ao passeio público, ao encontro. Talvez seja por isso que a Avenida Paulista tenha se tornado, de certa forma, o nosso centro. Apesar de não privilegiar o passeio descompromissado e parecer mais um lugar de passagem, é lá que tomam palco os principais eventos da vida do paulistano. São passeatas, shows e celebrações em geral.
Por isso, domingo, dia 4 de dezembro, quando o Corinthians ganhou o título de campeão brasileiro, eu decidi ir, com mais dois amigos, festejar a vitória do meu clube na Avenida Paulista. Marcamos no Charme, barzinho na esquina do Parque Trianon, do lado oposto ao MASP.
Na faixa de pedestre ao lado do Charme e exatamente na frente de um grande prédio comercial, que abriga uma agência do Banco Bradesco, um grupo de corintianos – segundo meus cálculos toscos, aproximadamente uns 100 – festejava o pentacampeonato do clube. Eu, que ainda estava sozinho, imediatamente me juntei aos torcedores. Na hora em que o farol de pedestres abria, entrávamos na frente dos carros e comemorávamos pulando, gritando, hasteando bandeiras, entoando hinos e compartilhando nossa alegria com alguns motoristas e passageiros que, com seus carros parados, nos cumprimentavam.
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Fiquei quase meia hora sozinho, até que apareceu meu primeiro amigo que, curiosamente, se chama Vasco. Comemoramos juntos. Depois disso, chegou meu irmão e sua esposa, nos abraçamos e ele, que tinha de pegar um voo na manhã seguinte, logo foi embora.
Eu e o Vasco ficamos sozinhos durante algum tempo, junto com os outros corintianos. Tempo em que aconteceu uma das manifestações mais belas em homenagem ao doutor Sócrates. Assim que o semáforo ficou verde para pedestres, os torcedores ficaram em linha, de frente para os carros, de braço erguido e punho cerrado, gritando: “É Sócrates”. O sinal ficou vermelho para nós. Voltamos para calçada e encontramos nosso outro amigo, o Ricardo. Ele e um colega seu, que eu não conhecia, estavam emocionados, pois logo que chegaram viram a homenagem ao Sócrates.
A noite passou, o movimento aumentou na faixa de segurança. Alguns policiais chegaram e fizeram um cordão de isolamento, impedindo que os torcedores permanecessem na rua, quando o semáforo estava vermelho para os pedestres. Aqui, preciso fazer duas considerações. A primeira é que nenhum torcedor tentava invadir a pista nesse momento, muito pelo contrário. Existia uma preocupação comum em liberar a rua o mais rápido possível. A segunda, que me espantou, é que ALGUNS policiais tratavam os torcedores com extrema rispidez. Ouvi muitas pessoas sendo intimidadas: “Eu vou te arrebentar se você colocar o pé na rua”. “Arrebentar”. Esse era o tipo de palavra usada.
A tensão entre policiais e torcedores começou a aumentar, mas, nesse momento, uma bateria corintiana chegou e começou a tocar na frente do Charme. Com isso, todos foram celebrar na CALÇADA, junto à bateria. Os policias aproveitaram a deixa e também foram embora.
Uma hora, mais ou menos, se passou, até que os torcedores resolveram voltar a celebrar na faixa de pedestre. O movimento começou a aumentar muito, até o momento em que mais de 300 torcedores – segundo minha estimativa – celebravam na faixa.
A polícia voltou aos poucos. A partir daí a tensão aumentou sem parar. As “invasões” da pista começaram a se prolongar por muito tempo, impedindo o fluxo normal dos carros. Os policiais em contrapartida usaram de toda elegância para coibir os torcedores. “Eu vou te arrebentar”, “Vou te encher de porrada”, “Se você pisar aqui eu vou te espancar”, eram algumas das frases proferidas. Aqui vale uma ressalva. Tanto antes de os torcedores irem comemorar junto à bateria, quanto depois – quando o movimento aumentou, e retornamos para a faixa de pedestres – muitos motoristas paravam seus carros na tentativa de comemorar. Isso, inclusive, fez com que muitos deles também fossem repreendidos, com multas, pontapés e “batidinhas” na traseira de seus carros.
A situação foi se agravando até que um policial, curiosamente mais alto que os outros (acho que era algum tipo de comandante), chegou. Ele se postou no meio da rua e gritou para seus colegas: “Vamos acabar com essa merda, é pra encher esses filhos da puta de borrachada. Quem pisar na rua, com o farol aberto ou fechado, vai tomar porrada”.
Nesse momento, é bom dizer o seguinte: os “filhos da puta” a que ele se referia eram famílias, casais de namorados, crianças, amigos e, é claro, os ditos “maloqueiros”. Eu não sei em qual categoria me encaixo, mas imagino que, visto de longe, e acrescentando o preconceito básico que as pessoas têm em relação a torcedores (de todas as agremiações), eu poderia ser visto como um “maloqueiro”. Percepção que, acho, cairia por terra, ao saberem que eu estudo, trabalho e moro em um bairro de classe média alta. De qualquer jeito, isso é só para dizer que gostar de futebol não faz de você um marginal. TODOS nós, sem exceção, estávamos juntos, nos abraçando, celebrando, gritando e felizes por termos conquistado o Brasileirão.
Quando ouvi a frase do policial “grandão”, contei para meus amigos. Foi tiro e queda. Na hora em que o sinal ficou verde para pedestres e as pessoas tentaram entrar na pista, os policiais “desceram a borrachada”. O Ricardo, meu amigo, viu uma menina que, segundo ele, tinha “metade de sua altura”, ser perseguida por um policial de cassetete em punho, enquanto tentava atravessar a rua. As pessoas ficaram assustadíssimas e, algumas, perante o perigo, tentaram sugerir: “Bloqueie a avenida”. Inútil. As ameaças se intensificaram. “Você vai apanhar”, “Eu vou te quebrar”. O número de policiais, a essa altura dos acontecimentos, tinha quadriplicado. Havia motos, viaturas e unidades móveis. Deviam ser aproximadamente uns 100 policiais para 300 torcedores.
Em decorrência do confronto, a torcida DESISTIU de comemorar na faixa de pedestre. Todos se aglutinaram na calçada e continuaram as comemorações. Isso durou meia hora. Nesse momento, eu estava sentado olhando a festa de longe. Então, percebi um movimento estranho da polícia. Todos eles, munidos de fuzis de bala de borracha e cassetetes, começaram a fazer um cerco em volta dos torcedores que estavam na calçada.
Eu fiquei de fora do cerco, e o Ricardo e o Vasco, meus amigos, dentro. Resolvi filmar, com meu celular, o que iria acontecer. Foi aí que um policial agarrou o meu braço. Tive o seguinte diálogo com ele:
– Quem é você? – ele me perguntou.
– Sou um cidadão comum – respondi.
– Então, para de filmar essa porra, você não é imprensa.
– Eu não preciso ser imprensa para filmar.
– E o meu direito de imagem, seu filho da puta?
– O direito de imagem, senhor? O senhor pode tentar me processar depois, se eu publicar isso em algum lugar. Ou o senhor vai impedir todos os turistas da cidade de tirarem fotos?
– Você é um filho da puta, é melhor você parar de filmar ou eu vou te arrebentar.
Eu não conseguia mais ver o que estava acontecendo no cerco, porque a torcida, à medida que a polícia chegava perto, se deslocava para o lado. Quer dizer, estava sozinho, acuado em um canto escuro e, quando vi, já tinham TRÊS policiais a minha volta. Fiquei com muito medo do que pudesse acontecer comigo. O diálogo continuou:
– Pronto, parei de filmar, senhor. Posso ir agora?
– Me dá o seu documento – ele me pediu.
– Eu não. Não fiz nada de errado.
– Eu posso pedir o documento de quem eu quiser.
– Não, você não pode. Qual é o perigo que eu estou levando para a sociedade? Que tipo de ameaça eu sou? Estou apenas filmando.
– Me dá o documento logo, moleque.
– Você vai me devolver depois?
– Sim.
Cansado, assustado e triste pela festa ter tomado esse rumo, cedi. Entreguei meu documento. Ele anotou meu nome e meu R.G em um papel. Perguntei se eu seria fichado. Ele, mais calmo, disse que não. Que aquilo era um “controle pessoal”, “tipo um relatório para meu superior”. Agradeci, disse boa noite e fui encontrar meus amigos.
A essa altura, a torcida acuada já estava em frente ao prédio da FIESP. Ao passar pela Estação Trianon MASP, vi um torcedor sendo fortemente agredido. Acho, inclusive, que foi ele quem escreveu esse relato no blog Vi o Mundo.
Fiquei indeciso do que fazer. Não podia acreditar no que via. Parei por pouco mais de um minuto, enquanto tentava localizar meus amigos via celular. Pude ver alguns policiais fazendo cara feia ou comentando: “Isso vai dar merda”. Eles estavam, claramente, reprovando a ordem que estavam recebendo. A ordem, só para lembrar, era: “Descer a porrada”.
Não demorou muito para eu ser abordado por outro policial, que me disse que eu não podia ficar lá, que eu ia “tomar porrada” se permanecesse no local. Percebendo a intensidade da situação, saí de perto da estação. Logo depois, encontrei o Vasco e o Ricardo novamente. Eles me disseram que os policiais tinham pressionado a saída dos torcedores, usando da força. Os corintianos indagavam: “Mas nós só estamos comemorando”. Os policiais respondiam: “Vocês estão obstruindo o caminho e as pessoas precisam dormir”.
Esse foi o meu relato da noite. Agora, gostaria de fazer algumas considerações.
1. Na calçada oposta em que os torcedores comemoravam (pouco antes do ataque da polícia), havia uma aglomeração maior de pessoas que festejavam o Natal. Aquele prédio comercial faz uma decoração todo ano e, todo ano, fica praticamente impossível usar aquela calçada. Fora o barulho dos jingles de natal.
2. Toda torcida tem potencial para se tornar violenta, mas qualquer aglomeração de pessoas pode se tornar violenta. A questão é como administrar a exaltação das pessoas. Intimidando-as ou tentando protegê-las dos possíveis excessos que, quase sempre, são casos isolados?
3. Nos países europeus toda cidade tem um centro, um ponto de encontro, onde as pessoas podem festejar. Em Londres, por exemplo, isso acontece na Leicester Square ou na Trafalgar Square. Eu me pergunto onde os torcedores ingleses vão poder comemorar uma vitória da Seleção Inglesa em 2014? E como a PM vai reagir?
4. A polícia não sabe dialogar. Dizer que vai “arrebentar alguém”, só gera revolta e aumenta a tensão.
5. Todo cidadão é inocente, até que seja provado o contrário. Por que, então, eu fui abordado? No momento da abordagem, eu não participava nem das celebrações, apenas filmava o movimento da polícia.
6. Eu não sou uma pessoa violenta. Eu amo o meu time incondicionalmente, mas seria incapaz de agredir qualquer outra pessoa pelo Corinthians. Torcedor não é marginal.
7. A lógica dessa cidade, baseada em espaços privados, em detrimento de espaços públicos, marginaliza qualquer manifestação da população. Eu disse, no começo do texto, que a Avenida Paulista é, de certo modo, o nosso “centro”, nosso “ponto de encontro”. Os senhores já repararam que não existe um mísero banco nas calçadas da Paulista?
8. Isso não tem nada a ver com Corinthians, Palmeiras, São Paulo, Santos ou Portuguesa. Poderia ter acontecido com qualquer torcida.
9. É claro que alguns torcedores, em alguns momentos, principalmente na hora em que “invadíamos” a faixa de segurança, exageravam na comemoração. E queriam, de fato, fechar a Avenida a qualquer custo. No entanto, a reação da polícia é desproporcional de qualquer jeito.
10. Enquanto a polícia cercava os torcedores e os empurrava na direção da FIESP, o Ricardo me relatou: “Alguns torcedores ficaram muito bravos e queriam revidar. Segurei uns dois deles. Mas o pior é que, enquanto fazia isso, alguns policiais os chamavam para a briga de novo, com a frase: ‘Vou te arrebentar’.”
11. O problema não estava sendo causado apenas pelos pedestres, mas também pelos motoristas. Por isso, o Ricardo se indaga: “Dá para questionar até que ponto esse tipo de ordem praticada consegue atender a manifestações espontâneas, comuns a qualquer cidade. A quem os policiais estavam protegendo? O trânsito? Eles estavam evitando brigas ou as provocando? Qual o direito que eles têm de mandar todo mundo para casa?”
12. O trânsito não estava, de fato, sendo prejudicado, já que em um domingo à noite a quantidade de veículos era pequena.
Senhores, dito tudo isso, gostaria de concluir meu texto com uma sugestão. Façam o Estado ser respeitado e não temido. Respeito e apavoramento não são duas palavras que andam juntas. O Brasil está evoluindo socialmente. Aos olhos do mundo, somos uma das nações mais promissoras. Nos próximos anos, vamos abrigar uma Copa do Mundo e uma Olimpíada. Estamos evoluindo socialmente e os pobres estão ascendendo à classe média. Acompanhem a evolução do País.
Respeitosamente,
André de Oliveira, estudante de jornalismo e corintiano
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