Selo_TimLopes2013 Eles estão nas ruas, mas pouco se sabe sobre eles. A rede que os alimenta é organizada e difícil de romper. Um mundo paralelo, em que vítimas protegem agressores numa lógica perversa. As iniciativas de órgãos governamentais e do terceiro setor, que visam minimizar os impactos sobre os direitos básicos da infância, ainda derrapam diante da questão e, se por um lado a Copa do Mundo no Brasil é um estímulo para o País, por outro faz crescer a ameaça de que jovens em situação de vulnerabilidade fiquem mais expostos a esse tipo de violência. 

 Texto Fernanda Cirenza e Marcelo Pinheiro. Fotos José Leomar e Vólia Castelar. Colaborou Gonçalo Junior.  

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Castelão – o estádio em Fortaleza, uma das cidades-sede da copa, em registro de março deste ano, ainda em obras. Órgãos e entidades prometem vigilância reforçada na área

Entre os 64 anos que separam as amargas lembranças da primeira Copa do Mundo no Brasil, em 1950, quando perdemos o que poderia ter sido nosso primeiro caneco para os uruguaios, e a realização do evento que terá início em 12 de junho na Arena Corinthians, em São Paulo, mudanças significativas foram percebidas no País. Houve um aumento exponencial da população, que quadruplicou – saltamos de 51 milhões de habitantes para quase 200 milhões. Passamos por uma ditadura que durou 21 anos e, com a redemocratização, ascendemos em indicadores sociais. O Plano Real controlou a hiperinflação e programas de transferência de renda tiraram quase 40 milhões de brasileiros da linha da miséria. Também superamos a pecha de terceiro-mundistas e alcançamos um degrau importante na economia mundial, ocupando o sétimo posto entre as potências.

vermelho-aspa1Paradoxalmente, o mesmo Brasil que celebra tantas conquistas mantém, à revelia, índices alarmantes de violação aos direitos humanos. Da perspectiva desses 64 anos, o fenômeno foi acentuado pelo processo de migração de populações rurais para as metrópoles. Uma diáspora de dezenas de milhões de brasileiros, movida pela busca à “terra prometida”, inatingível para a maioria. O consequente processo de exclusão segregou cidadãos em bolsões de miséria.

Nesse cenário de negação de direitos basilares de cidadania, cresceram vários dos personagens desta reportagem, iniciada com um projeto de pauta da redação da Brasileiros, submetido à 7a edição do Prêmio Tim Lopes de Jornalismo Investigativo, tendo como tema o impacto de megaeventos sobre os direitos da infância e da adolescência. Criado depois da morte trágica do repórter gaúcho Tim Lopes, covardemente assassinado em junho de 2002 no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, enquanto trabalhava, o prêmio é uma iniciativa da ANDI, Childhood Brasil e UNICEF, com apoio da OIT, FENAJ e ABRAJI (*). O projeto sobre exploração sexual de meninos é um dos vencedores na categoria Especial da premiação – o outro ficou com a Agência Pública de Jornalismo Investigativo.

Nosso foco foi a cidade de Fortaleza, no Ceará, uma das 12 cidades-sede do Mundial e detentora, há tempos, do lamentável epíteto de capital brasileira do sexo. A segunda maior cidade do Nordeste – a primeira é Salvador – cresceu, em dez anos, 14,29% e alcançou a marca de cerca de 2,5 milhões de habitantes. É a quinta capital em capacidade de hospedagem, atrás apenas de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Belo Horizonte.

Juventude vulnerável - na periferia de fortaleza, travestis fazem ponto de maneira isolada. nos arredores do castelão, ficam em grupo
Juventude vulnerável – na periferia de Fortaleza, travestis fazem ponto de maneira isolada. Nos arredores do Castelão, ficam em grupo

Às vésperas do Mundial, o Brasil espera receber 600 mil visitantes estrangeiros. A expectativa é que gastem R$ 25 bilhões em viagens pelo País, o que poderá injetar algo em torno de R$ 110 bilhões na economia nacional. Na contramão, pouco tem sido investido na rede de proteção da infância, segundo os especialistas.

Em Fortaleza, encontramos um universo masculino complexo, meio clandestino, meio descarado, vivido por jovens que carregam histórias de vida semelhantes: incompreendidos pelas famílias, a maioria carente de recursos financeiros e emocionais, e rejeitados pela escola, encontraram nas ruas um estranho e perigoso acolhimento. No meio do caminho, descobrimos que o problema não é exclusivo da capital do Ceará, tampouco do Brasil.

*ANDI (Agência de Notícias dos Direitos da Infância); Childhood (organização internacional dedicada à promoção e defesa dos direitos da infância); UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância); OIT (Organização Internacional do Trabalho); FENAJ (Federação Nacional dos Jornalistas); ABRAJI (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo)

MENINOS NA PISTA 

vermelho-aspa2Jovens do sexo masculino com orientação diversa costumam enfrentar a dor e as consequências de um silêncio imposto por uma cultura machista e heteronormativa. Essa situação piora quando o assunto é a exploração sexual de crianças e adolescentes. Apontada como uma questão específica do sexo feminino, os meninos nessa condição têm menos apoio ainda. Dados do Disque 100, instrumento do governo federal ligado à Secretaria dos Direitos Humanos, indicam que, de um total de 252.470 casos registrados no ano passado, 31.895 são de violência sexual. No entanto, não há estatística que dê conta de quantas vítimas são do sexo masculino. 

A falta dessa informação, aparentemente inofensiva, é empecilho importante para a criação de ações específicas de gênero, segundo a socióloga Graça Gadelha, especialista em políticas públicas na área da infância e da juventude e consultora do prêmio Tim Lopes. Ela salienta que essa problemática começou a aparecer nas estatísticas recentemente, de uns cinco anos para cá. “Até então, meninos em situação de exploração sexual eram invisibilizados.” Além disso, ela afirma que não há interlocução entre as redes de proteção (saúde, educação, social), o que prejudica ainda mais o enfrentamento. Enquanto as meninas ainda formam a maioria, meninos se avolumam nas ruas.

Em meio às obras finais ao redor do Estádio Castelão, na região sudeste de Fortaleza, jovens exibem seus corpos imaturos a qualquer hora. “Ao meio-dia, eles fazem a ‘rapidinha’ do almoço”, diz a educadora Lidia Rodrigues, da Barraca da Amizade, ONG local que há mais de 20 anos atua em defesa de crianças e adolescentes e, desde 2009, mantém o Projeto Reviver, dedicado à redução de danos a menores de idade expostos à exploração sexual, sejam meninas, meninos ou travestis. “A expectativa com a Copa tem causado um grande impacto na cidade porque muitas famílias do interior vieram para cá com a esperança de melhorar de vida. Como nem sempre isso dá certo, muitos jovens estão em situação de vulnerabilidade. Registramos um aumento de 40% na movimentação no entorno do Castelão.”

Para Lídia, o modelo de desenvolvimento escolhido pelo País provoca essas distorções. “Temos mais emprego, mais renda, mas não é para todo mundo. Quem não tem qualificação, ensino médio ou técnico, fica à deriva. As atividades informais também não se encaixam nesse modelo. É preciso entender que muitos adolescentes tiveram outros direitos violados antes de serem explorados sexualmente. Eles não têm documentação, não foram à escola, não tiveram acesso à saúde. Nem sabem por onde começar a resolver questões básicas da vida.”

Com a proximidade do Mundial e o consequente fluxo de visitantes à cidade, entidades como a Barraca da Amizade, que atende 380 pessoas, fazem um prognóstico preocupante: a incidência de casos de violação contra a infância tende a crescer. Cecília Góis, do Cedeca Fortaleza (Centro de Defesa da Criança e do Adolescente), que monitora ações do governo, entre outras atividades, aponta um agravante: “Não existe no País uma política pública que atenda meninos vítimas de exploração sexual”.

Cecília diz que até quem presta atendimento falha por incompreensão e preconceito quando se depara com travestis, maiores ou menores de idade. “Abrigados, por exemplo, quase sempre precisam usar roupas masculinas, cortar o cabelo, se passar por héteros.” Outro entrave seria o mercado de trabalho. “Ninguém emprega travesti.” Além disso, de acordo com Cecília, houve um corte de 25% no orçamento para o enfrentamento da violação dos direitos da infância em Fortaleza. Realidade que, talvez, explique o silêncio da Rede Aquarela, entidade ligada à Secretaria Municipal de Cidadania e Direitos Humanos (SCDH), criada em 2005 para prestar apoio a crianças e adolescentes. A instituição enfrenta dias difíceis com uma redução do quadro de 80 para 15 agentes. Nossa reportagem não teve sucesso em falar com a Rede Aquarela nem com a SCDH que, por e-mail, afirmou que não se pronunciaria devido ao “tom negativo” de reportagens publicadas recentemente.

Em abril último, um comentário do jornalista dinamarquês Mikkel Keldorf Jensen, publicado no Facebook, mobilizou a rede com milhares de compartilhamentos. Sem provas, ele escreveu que havia desistido de cobrir o Mundial, depois de ter presenciado, em Fortaleza, “remoções, PMs nas comunidades, corrupção, projetos sociais fechando”. Escreveu ainda que crianças de rua seriam mortas “para deixar a cidade limpa para os gringos e a imprensa internacional”. Em nota, a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social afirmou não haver registro de mortes de crianças em situação de rua em Fortaleza.

Às escuras - no centro da cidade, não é raro encontrar rapazes dispostos a programas sexuais
Às escuras – no centro da cidade, não é raro encontrar rapazes dispostos a programas sexuais

Apesar de a advogada cearense Luana Marley ter considerado o tom do jornalista irresponsável, ela enxerga pontos positivos. “Ele denunciou as falhas nas políticas de promoção de defesa, o que é verdade, e organizações locais têm alertado sobre eventuais abusos não só quanto à exploração sexual, mas de remoções de famílias. No entanto, o texto é movido de preconceito, o que é ruim para a nossa imagem, ainda mais partindo de um estrangeiro.”
Um caso ocorrido em março passado gerou menor repercussão, mas nem por isso é menos chocante. Depois de serem enganados por um falso treinador de futebol, jovens cearenses entre 11 e 22 anos deixaram suas cidades para viver em São Paulo, com o sonho de se tornarem jogadores de um clube. Cada um teria desembolsado ao aliciador entre R$ 2 mil e R$ 2,5 mil. O crime foi descoberto depois de duas vítimas serem socorridas por vizinhos da casa onde estavam, em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. Eles declararam à polícia que foram mantidos presos sem comida nem camas. O suspeito foi preso, e os meninos voltaram para casa. O caso está registrado no 3o Distrito Policial de São Bernardo.

O tráfico de pessoas é tema da CPI da Câmara dos Deputados, e o Ministério Público de São Paulo investiga uma suposta rede criminosa que atuaria na cidade com ramificação no Norte do País (leia à página 113).
O estudo A Infância entra em Campo – Riscos e Oportunidades para Crianças e Adolescentes no Futebol, realizado pelo UNICEL e pela Secopa-BA (Secretaria Estadual para a Copa do Mundo), mostra que crianças e jovens, independentemente de gênero, que dão início à carreira como jogadores de futebol no Brasil têm no abuso e na exploração sexual o maior problema a ser enfrentado. De acordo com o levantamento, também estão expostos à discriminação racial e de gênero. Podem ainda ser afastados de suas famílias, o que, segundo o levantamento, baseado em pesquisas qualitativas com crianças, adolescentes, jogadores, familiares, técnicos e outros profissionais de grandes clubes de Salvador, facilita a ação de aliciadores.

vermelho-aspa3“Quanto mais pesquiso o abuso e a exploração sexual de jovens, mais me impressiono com as atitudes dos adultos. E me pergunto qual é o limite da compreensão. Uma história como a dos meninos do Ceará deveria nos inquietar profundamente, mas existe uma tolerância dos governos e da sociedade”, diz Dalila Figueiredo, presidente da Associação Brasileira da Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude (ASBRAD).

Dalila convive com histórias difíceis. “Desde a semana passada, atendo duas irmãs, gêmeas por sinal, que foram colocadas nas ruas pela própria mãe, que trata essa situação com a maior naturalidade. É muito complicado para esses adolescentes se reconhecerem como sujeitos de direito porque o problema começa em casa, na família. Também soube, outro dia, que um professor de uma escola pública oferecia notas boas aos alunos, desde que praticassem sexo com ele. São situações insanas.”

Outros dados que preocupam os especialistas dizem respeito aos Centros de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS), equipamentos públicos para o atendimento a vítimas desse tipo de violência. Dos 5.570 municípios, 30% possuem CREAS, e a demanda acaba seguindo para os conselhos tutelares, existentes na maioria das cidades brasileiras. Fortaleza tem seis, um para cada regional da cidade. Número deficitário, segundo um dos conselheiros da Regional IV, Aurélio Araújo.

“De acordo com resolução do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes), a cada 100 mil habitantes deve haver, no mínimo, um conselho tutelar. Somos quase três milhões de pessoas, portanto, deveríamos ter 30 conselhos.”

Apesar de considerar que os conselhos tutelares atuam com empenho máximo, Araújo apontou gargalos mais complexos: “Nosso maior problema é a falta de retaguarda. Temos enorme dificuldade em encontrar unidades de acolhimento. Muitas vezes, é preciso acionar a Justiça para garantir a defesa dessas crianças e adolescentes”.

A percepção do conselheiro é compartilhada por Adelino Neto, coordenador geral de Proteção à Infância do Ministério do Turismo. Para ele, ainda há muito a ser feito, especialmente no sentido de criar instituições de acolhimento e programas que ofereçam alternativas de formação profissional, mas o saldo de mais de dez anos – quando abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes passaram a ser combatidos com iniciativas públicas – tem sido positivo, embora haja carência de verbas mais generosas em âmbito nacional. “Essa é uma questão de política adequada. O trabalho é bem montado, mas com poucos recursos fica impossível fazer em campo tudo aquilo que a gente quer e precisa fazer. Não existem verbas suficientes para todos os programas, mas dentro de nossas limitações está sendo feito o melhor. Quando o problema passou a ser combatido, havia até bingo e leilão de virgens em pontos do País. Outro dado importante para reduzir o problema é a questão da renda familiar. Nas regiões atendidas pelo programa Bolsa Família, diminuiu a quantidade de crianças e adolescentes nas estradas. Havia meninos e meninas que faziam programas por R$ 3, R$ 5.”

Na rede - O jornalista dinamarquês que desistiu de investigar arbitrariedades em Fortaleza
Na rede – O jornalista dinamarquês que desistiu de investigar arbitrariedades em Fortaleza

Entre as ações pontuais do Ministério do Turismo para a Copa, Neto destacou duas campanhas, uma delas preventiva e a outra de ação direta. Lançado em outubro de 2013, o Manual do Multiplicador, coordenado por ele, aborda um histórico do combate à violência infantil, além de trazer orientações como procedimentos legais para o enfrentamento, a estruturação da rede de proteção e o fluxo de atendimento. Para otimizar o processo de formação dos multiplicadores, o Ministério fechou parceria com a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes e está ministrando cursos nas cidades-sede do Mundial para cerca de 200 mil filiados, que são orientados com o manual.
A outra ação é uma importante ferramenta de denúncia anônima: o aplicativo #ProtejaBrasil, que já está disponível gratuitamente para smartphones e tablets. Com o software desenvolvido pela Cedeca, em parceria com o UNICEF, é possível, por meio do GPS do aparelho, identificar endereço e telefone das entidades mais próximas de combate ao abuso e à exploração sexual. Neto também antecipou que, no início de junho, será distribuído um manual bilíngue, em português e inglês, para os profissionais de imprensa, locais e estrangeiros, que atuarão na cobertura do evento, contribuírem para multiplicar as ações de combate.

Por outro lado, a Secopa de Fortaleza, por meio de sua assessoria de imprensa, afirmou que a Prefeitura, em parceria com os governos estadual e federal, lançará, antes do início dos jogos, uma “ação sem precedentes”, coordenada pela Secretaria Municipal de Cidadania e Direitos Humanos. No entanto, não ofereceu maiores detalhes da ação. Hermann Hesse, assessor, disse apenas que se tornará referência e é, inclusive, um “projeto-piloto que será aplicado em todo o Brasil”. Vale lembrar que a Secretaria de Direitos Humanos do governo federal, ligada ao Ministério da Justiça, destinou R$ 8 milhões para que as cidades-sede desenvolvessem projetos de proteção à infância durante a Copa do Mundo.

UMA SAÍDA DE BUSCA

Agito - a uma quadra da orla da praia mulheres e travestis disputam espaço e clientes
Agito – a uma quadra da orla da praia mulheres e travestis disputam espaço e clientes

 

À noite, travestis se reúnem e aparentam alegria em esquinas próximas ao Castelão e em bairros do subúrbio da cidade. Sheila, nome fictício, diz para todo mundo ter 18 anos, mas, na verdade, acabou de fazer 16. Não é ela quem conta sua história, é Jacinta Rodrigues, educadora social da Barraca da Amizade: “Ela mente para a família. Diz que vai para a escola, só que está na pista fazendo programa. Está nessa há mais de seis meses. O que mais me aborrece é que ela tem um olhar triste, mesmo sorrindo. Quer mudar o corpo, mas nem tem estrutura física ainda para isso”.

Formada em Biologia, Jacinta foi por anos professora de xadrez em comunidades de baixa renda de Fortaleza. Aprendeu a jogar estimulada pelo filho, hoje com 20 anos, quando era criança. Há seis meses, no entanto, Jacinta está no Projeto Reviver, organizado pela Barraca da Amizade e financiado, desde 2002, pela Free a Girl Foundation, organização holandesa que apoia projetos voltados ao enfrentamento à violação da infância. Ela trabalha ao lado de Kiko Borges, ex-menino de rua, um dos fundadores da Barraca e hoje também educador, e Ivânnia Andrade, assistente social da entidade.

Duas vezes por semana, eles saem a campo na tentativa de criar vínculos com quem está na rua. A ideia é levantar informações sobre essas pessoas, independentemente de idade ou gênero, e a partir delas traçar o perfil do público e criar ações de atendimento, que vão desde emissão de documentos, encaminhamento a médicos e a cursos técnicos para interessados. Durante a abordagem, eles oferecem preservativos e lubrificantes na operação chamada “Busca Ativa”. 

A reportagem da Brasileiros saiu em companhia deles em uma quinta-feira de março, por volta das 18 horas, da sede da Barraca, no bairro Mondubin. Muitas das pessoas que estão à procura de clientes já são conhecidas de Jacinta, Kiko e Ivânnia, como as três travestis e uma jovem que se posicionam quase todos os dias ao lado de uma escola municipal. Receptivas, logo se exaltam ao saber que os repórteres são de São Paulo, segundo elas, a melhor cidade do País para quem precisa viver na pista. A mais velha das travestis tem 28 anos e está na rua desde os 11. Morou três anos em São Paulo, mas teve de fugir, às pressas, e voltar para Fortaleza porque diz ter sofrido uma tentativa de homicídio, depois de atrasar o pagamento de R$ 30 de diária à pessoa que havia intermediado sua vinda para a capital paulista. Atenta ao relato, sua colega de ponto, que falou ter 18 anos, mas aparenta menos, afirmou que esse tipo de coisa acontece em qualquer cidade e insistiu que seu sonho é viver em São Paulo. 

Equipe - o pessoal da barraca da amizade: lídia rodrigues, ivânnia andrade, Jacinta rodrigues e Kiko borges
Equipe – o pessoal da barraca da amizade: Lídia Rodrigues, Ivânnia Andrade, Jacinta Rodrigues e Kiko Borges

 A terceira interrompeu para dizer: “Vim parar na rua por necessidade”. E, em seguida, ela revelou que cuida de uma menina de 2 anos, abandonada pela mãe, que era vizinha de sua casa. Pretende adotar a criança como pai. Assim será mais fácil agilizar a documentação, acredita. A única mulher do grupo tem 25 anos e divide a rotina difícil no asfalto com contingências semelhantes. De seus seis filhos, os três mais novos são do mesmo pai, seu atual companheiro, que estava preso, mas poderia sair a qualquer momento. Mesmo à distância, o marido sabe que ela caiu na pista e, se ele a pegar naquele ponto com as amigas travestis, já avisou que vai matá-la. Por isso, ficou o tempo todo apreensiva, olhando de um lado para outro. 

Perto dali, há poucos metros do Hospital Sarah Kubitschek, referência de atendimento na rede pública de Fortaleza, uma cena de cortar o coração: encostada em um muro, Tieta é uma menina miúda que disse ter 19 anos, ser mãe e morar a poucos metros do ponto escuro da Avenida Perimetral onde esperava por clientes. O pessoal do Projeto Reviver a conheceu naquela noite. Tieta parecia sentir frio com seu vestido leve e humilde, e olhou pouco nos nossos olhos. Falou que estava ali apenas passando o tempo. Desconfiada, Jacinta tentou descobrir detalhes de seu filho. A menina contou que o primeiro morreu aos 7 meses e o segundo agora tem 1 ano, mas ainda não foi registrado. Jacinta explica que a Barraca pode ajudá-la a conseguir os documentos. Tieta agradeceu e ficou de passar por lá na semana seguinte. 

Em cada quadra da Perimetral, o grupo da Barraca encontra pessoas que aguardam clientes. “O fluxo de caminhões favorece a existência de pontos de exploração sexual em postos de gasolina e pequenos comércios”, afirma Kiko. O Bar da Tia é um desses pontos, uma espelunca que na frente funciona como botequim e atrás mantém quartos suspeitos. Por ali, se reúnem clientes, prostitutas, garotos de programa e travestis. “Esse lugar é um perigo, e a dona não se preocupa com a idade de quem o frequenta.” Kiko também diz que taxistas e hotéis ajudam a manter a exploração ativa. “Eles recebem dinheiro a cada programa que indicam.”

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Relatório da Barraca sobre os dados levantados pela equipe do Projeto Reviver mostra que, do público identificado em 2013, 55% era formado por pessoas do sexo feminino, grande parte adolescentes e jovens entre 15 e 26 anos. As do sexo masculino têm entre 14 e 26 anos. Sendo quase a metade, 42%, formada por travestis.
A Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente de Fortaleza, a única em todo o Ceará, registra uma média de sete boletins de ocorrência por dia. A unidade é chefiada pela delegada Ivana Timbó, seis escrivães e 12 inspetores. Por conta desse pessoal reduzido, segundo a titular da casa, muitos procedimentos ficam nos cartórios para serem instaurados. Ela explica que as ocorrências de abuso sexual (quando um adulto se envolve sexualmente com uma criança ou incapaz em busca de prazer) aumentaram porque “a sociedade mudou e não aceita mais esse tipo de crime”. Quanto à exploração sexual (quando crianças e jovens são aliciados por maiores de idade para encontros sexuais com o objetivo de obter ganho econômico), crime também combatido pela delegacia, Ivana explica que é mais difícil de ser tratado. “A pessoa explorada não se sente vítima. Tenho um caso de um adolescente violentado desde muito pequeno, que é apaixonado pelo ofensor.”

Nas ruas do subúrbio, o clima é tenso. Meninos e travestis se posicionam individualmente em pontos, mas assim que o carro se aproxima começa um movimento de motos. Kiko avisa que podem ser os chefes que controlam as diárias dos programas.

“Fortaleza não precisaria ter crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade”, diz Adriano Ribeiro, coordenador de projetos sociais da associação Pequeno Nazareno, na região central. “Mas eles se tornam adultos nas ruas. Falta vontade para erradicar o problema.” Há 20 anos, a Pequeno Nazareno presta atendimento apenas a crianças e jovens do sexo masculino, com filiais em Recife e Manaus.

Roupa como atrativo - travesti faz ponto na avenida perimetral, exibindo sua produção: pernas à mostra e botas de cano curto
Roupa como atrativo – travesti faz ponto na avenida perimetral, exibindo sua produção: pernas à mostra e botas de cano curto

Infelizmente, Fortaleza não é a única do País a enfrentar esse problema. Há quatro anos, a Childhood já alertava para a questão, ao apresentar um estudo feito com 300 operários homens em obras e grandes empreendimentos do Brasil (não apenas estádios de futebol). A maioria dos entrevistados, 97%, tinha presenciado prostituição nos arredores das construções. A exploração de crianças e adolescentes foi confirmada por 57% dos entrevistados. O mais chocante: 25% admitiram ter feito programa sexual com menores de idade uma ou mais vezes.

A defesa da infância não é apenas uma questão brasileira. A mesma Childhood preparou outro estudo sobre o aumento de casos de exploração de mulheres e crianças em cidades que abrigaram grandes eventos esportivos nos últimos anos. De acordo com o documento, durante a Copa da África do Sul, em 2010, foram registrados 40 mil casos de exploração infantil, um aumento de 63%, e 73 mil ocorrências de abusos contra mulheres (83% a mais) entre a chegada das delegações, os jogos e o término do evento. No Mundial da Alemanha, em 2006, os números não foram mais animadores: 20 mil casos contra crianças (28% a mais) e 51 mil contra mulheres (49%). Na Olimpíada da Grécia, em 2012, foram 33 mil casos contra crianças (87%) e 80 mil contra mulheres (78% de acréscimo).

À beira-mar - A praia de iracema, uma dos cartões-postais de fortaleza, foi revitalizada, mas ainda há focos de prostituição
À beira-mar – A praia de iracema, uma dos cartões-postais de fortaleza, foi revitalizada, mas ainda há focos de prostituição

A boa notícia é que, em fevereiro passado, o Senado aprovou um Projeto de Lei que torna hediondo o crime de exploração sexual de crianças e adolescentes. Se for aprovado pela Câmara dos Deputados, os condenados por esse tipo de crime não terão direito a indulto, não poderão pagar fiança e a pena terá de ser cumprida em regime fechado, com progressão mais lenta. Pelo Código Penal, a pena para crimes de exploração sexual estipula prisão de quatro a dez anos e multa. Atualmente, o estupro de vulnerável – ter relações sexuais ou praticar atos libidinosos contra menores de 14 anos – já é considerado crime hediondo e prevê punição de oito a 15 anos de prisão.

Dalila Figueiredo, da ASBRAD, conta que, no ano passado, perguntou a 500 adolescentes em liberdade assistida o que eles esperavam para este ano. As respostas foram surpreendentes: estar vivo, ter um amigo em que pudesse confiar, menos violência na família, dar uma casa para a mãe. “As pessoas pensam que, quem está em condição de vulnerabilidade sonha com coisas materiais, como um tênis da moda, um carro, uma moto. Mas não. Essas crianças precisam ser, com urgência, reconhecidas como sujeitos de direitos.”

UMA REDE PERIGOSA

Travestis buscam em São Paulo a realização de um sonho: ganhar corpo de mulher. O que muitas não sabem é que, não raro, entram em esquemas perigosos de aliciamento. Ministério Público investiga suposta rede que funcionaria na cidade, com ramificações no Estado do Pará

texto Gonçalo Jr. foto Pablo de Sousa

cartaoA aparência de Sheila K. pode até enganar quem passa rápido por ela. Mas bastam algumas palavras para perceber que ela é ainda muito jovem. Com o rosto maquiado, coxas à mostra e seios salientes, ela tem um jeito de falar diferente, que a revela um sotaque de outro lugar que não São Paulo. Sheila confirma que chegou há poucos meses à cidade, mas esconde de onde é. Pode ser do Pará, um dos Estados brasileiros que mais “exporta” travestis como ela. 

“A bola da vez é o Pará”, afirma Cesar Camargo, delegado titular da 1a Delegacia de Proteção à Pessoa do Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP). Ele afirma que, quase sempre, são os familiares que procuram a polícia, na tentativa de descobrir o paradeiro de parentes, em geral filhos ou netos. Ocorrências do tipo, acumuladas ao longo dos últimos três anos, são a base de uma denúncia que o Ministério Público de São Paulo deve entregar à Justiça no próximo mês de junho. À frente está a promotora Eliana Vendramini.

Serão apontadas como cabeça do esquema cinco pessoas, todas com passagens pela polícia, que teriam aliciado jovens do Pará. O documento lista 32 vítimas, cinco ainda menores de idade, em 2014. Um dos denunciados é a paraense Telma Rodrigues Nascimento, de 41 anos, que manteria pelo menos duas casas em São Paulo, para fins de exploração sexual.

“O comportamento opressivo dos denunciados garantia a relação de dependência física e econômica das vítimas”, diz a promotora. Telma é antiga conhecida da polícia. Já foi citada, em 2012, pela CPI do Tráfico de Pessoas da Câmara dos Deputados, como líder do esquema envolvendo jovens paraenses. Na ocasião, ela negou a acusação, mas operações da polícia a cercaram. Telma chegou a ser presa, depois foi solta e, no momento, está foragida. “Ela muda sempre de endereço, não para. Mas sabemos que continua trazendo adolescentes do Pará para São Paulo”, afirma o delegado Camargo.

Os relatos que constam da denúncia são, de fato, chocantes. Em um deles, uma travesti menor de 18 anos conta que foi levada a uma clínica médica para receber hormônios em um procedimento que, de acordo com ela, teria custado R$ 2 mil. Sua recuperação teria demorado mais de uma semana, mas, em seguida, foi obrigada a ir para as ruas fazer programas, no intuito de pagar a dívida que tinha com Telma. No depoimento, a jovem conta que apanhou diversas vezes e foi ameaçada de morte quando tentava deixar o esquema para voltar para Belém. Na capital paraense, outra travesti, também menor de idade, contou à polícia que Telma mantém aliciadores na cidades, que embarcariam de três a quatro adolescentes por semana com destino a São Paulo.

A promotora espera que essa denúncia seja apenas o começo de uma série de trabalhos para coibir crimes contra adolescentes vítimas de exploração sexual. 

 


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