As primeiras comemorações dos cem anos de nascimento de Nelson Rodrigues, iniciadas em maio, dão pistas de que o jornalista, dramaturgo, romancista e cronista, nascido em 23 de agosto de 1912, em Recife, ainda vai suscitar, ao longo do ano, diversas homenagens e reflexões em torno de sua obra e vida. A Avenida Paulista, cenário mais do que adequado para reiterar a importância desse renovador do teatro brasileiro, que deu a ele urbanidade, dramas cosmopolitas e relevo psicológico, é palco de duas grandes celebrações: uma delas intitulada Nelson Rodrigues 100 Anos, no Centro Cultural FIESP, produzido em parceria com o SESI, e a outra, realizada no Instituto Itaú Cultural, que dedicará ao pernambucano, indissociavelmente carioca, a 13a edição da série de retrospectivas Ocupação, com abertura ao público em 21 de junho.
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Nelson Rodrigues 100 Anos tem proposta ambiciosa e curadoria de um notável especialista, o escritor Ruy Castro, autor da biografia O Anjo Pornográfico. O megaevento promoverá debates, leituras dramáticas e montagens inéditas de dois clássicos, entre as 17 peças escritas por Nelson, A Falecida, com Maria Luisa Mendonça como protagonista, e Boca de Ouro, com o ator Marco Ricca.
Coordenador artístico do projeto, Marco Antônio Braz que, em 1994, fundou a Círculo dos Comediantes (hoje, Círculo dos Canastrões), a primeira companhia teatral inteiramente dedicada à obra de Nelson, também dirige as montagens. Boca de Ouro estreia em 29 de junho e A Falecida, em 6 de julho.
O ciclo de mais de uma dezena de mesas-redondas, leituras dramáticas, exposições e oficinas de teledramaturgia, crônica esportiva, crônicas e contos, proposto pela FIESP e pelo SESI, terá intensa programação ao longo de sete meses e envolve célebres rodriguianos: atrizes, como Fernanda Montenegro, Lucélia Santos, Cleyde Yáconis e Betty Faria; e cineastas, como Nelson Pereira dos Santos e Neville D’Almeida. Nelson Rodrigues 100 Anos também percorrerá 19 cidades do interior de São Paulo, na rede de teatros do SESI, até 28 de novembro.
Na série Ocupação, do Itaú Cultural, notória por esmiuçar a trajetória de ícones culturais do País, como Hélio Oiticica, Rogério Sganzerla, Haroldo de Campos, Paulo Leminski, entre outros, a curadora do projeto sobre Nelson é Maria Lucia Rodrigues, filha do dramaturgo. Ela partiu de uma indagação que norteou toda a sua pesquisa: “Quais foram os processos que produziram esse gênio?”.
Em busca de uma ou mais respostas, ela propõe uma longa viagem que se inicia com a chegada dos primeiros Rodrigues a Recife, no século 17, judeus, ascendentes ou não de sua família e desemboca na segunda década do século 20, quando aos 13 anos, Nelson integrou a reportagem policial do jornal A Manhã, fundado pelo pai dele, o advogado Mario Leite Rodrigues. A experiência é narrada pelo próprio Nelson, em relato revelado por Maria Lucia: “Se bem me lembro, foi meu irmão Milton que me mandou para a reportagem policial. Ainda me vejo, na redação, com os meus 13 anos, nome na folha e ordenado de 300 mil réis, escrevendo a minha primeira nota. Não vou esquecer nunca, era uma notícia de atropelamento. Um rapaz, ao atravessar a Rua São Francisco Xavier, fora apanhado por um automóvel”.
Com cenografia assinada por Valdy Lopes Jr., Ocupação Nelson Rodrigues sugere uma espécie de “encontro íntimo” com o polêmico autor. Além de fotos, documentos históricos, entrevistas e depoimentos, Maria Lucia abriu o baú familiar e reuniu o máximo de memórias do pai para dar pistas que levem o público a chegar às suas próprias conclusões sobre esse multifacetado escritor.
O fio condutor da exposição são os depoimentos que versam sobre a infância, a vocação para gênio precoce e as sucessivas tragédias pessoais vividas por Nelson, como a morte do irmão Roberto, ilustrador do A Manhã equivocadamente assassinado na redação do jornal, no lugar de seu pai, por uma adúltera, que quis se vingar por ter sido delatada em uma reportagem policial. Jornalista combativo, que colecionava desafetos em Recife, Mario morreu deprimido dois meses depois do homicídio do filho. Nelson, em outra de suas memórias que agora vem à tona, confidenciou sobre esse trágico episódio familiar: “O meu teatro não seria como é, nem eu seria como sou, se eu não tivesse sofrido na carne e na alma, se não tivesse chorado até a última lágrima de paixão o assassinato de Roberto”.
Especialmente escrita para Eleonor Bruno (mãe da também atriz Nicette Bruno, com quem Nelson manteve um romance durante dois anos), a peça Doroteia teve sua primeira montagem realizada em 1949, no extinto Teatro Phoenix, no Rio de Janeiro, ocasião em que Eleonor foi dirigida por outra figura capital para o teatro brasileiro, o polonês Zbigniew Ziembinski. Nesses mais de 60 anos, Doroteia foi uma das peças menos encenadas de Nelson, mas carrega elementos rodriguianos de sobra. Narra o drama de uma ex-prostituta que, depois da morte do filho, abandona o ofício e volta ao seio familiar, passando a conviver com três primas viúvas, que veem em sua juventude e beleza uma assombrosa ameaça à moral, e exigem que ela se torne feia.
No Teatro Poeira (das atrizes Andréa Beltrão e Marieta Severo, também no Rio de Janeiro), uma nova versão de Doroteia, com a atriz Alinne Moraes como protagonista, fará parte das celebrações iniciais do centenário de Nelson Rodrigues na cidade carioca. Escolha inusitada como saída para integrar o universo masculino a uma obra essencialmente feminina, o diretor João Fonseca, do musical Tim Maia – Vale Tudo, optou por elencar os atores Gilberto Gawronski, Alexandre Pinheiro e Paulo Verlings, para interpretar as primas de Doroteia.
O espetáculo chega ao Teatro Raul Cortez, em São Paulo, no dia 27 de junho. Até agosto e ao longo de todo ano, outras homenagens, que envolvem novas montagens, lançamentos de livros, festivais e exposições, dedicados a reiterar a importância dessa figura central da cultura brasileira do século 20 estão programadas.
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