Cenas da vida da diarista

– A avó paterna de Arlinda era índia. O avô a encontrou na mata, aprisionou-a e, depois de algum tempo, casou-se com ela. Já tinha morrido quando a neta nasceu. Mas toda a família sabia trançar cestos e cordas. Sua neta Ellen, de longos cabelos negros e olhos puxados, filha do primogênito, Beto, é chamada de “Indiazinha”.
– e se animou ao ficar sabendo do concurso numa rádio local. Não pôde se inscrever porque não havia a menor possibilidade de conseguir um par de sapatos. “Fiquei achando que eu poderia ter sido cantora”, diz.

– Como Arlinda, que aos 14 anos foi embora de sua terra em busca de uma vida melhor, seu filho Márcio juntou dinheiro e embarcou para a Europa, há três anos. Foi barrado no Aeroporto de Sacavém, em Lisboa, e devolvido ao Brasil. Entrou em depressão, e a mãe pediu um empréstimo e o ajudou a comprar outro bilhete aéreo. Márcio desembarcou na Bélgica e, depois de alguns meses, conseguiu emprego em um haras na Espanha. Vive hoje em Madri, como pintor de paredes. Paula, sua irmã mais nova, também emigrou para lá.

– Como o pai, a mãe e os 13 irmãos passavam necessidade, juntou dinheiro e embarcou para São Paulo com a tia. Trouxe a mala de papelão da família e um vestido. Chegou em junho, de chinelo de dedo, e descobriu que existia frio. Parou de tremer quando a nora da patroa lhe deu agasalhos.
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Aos 16 anos, começou a namorar o porteiro do prédio. A patroa avisou que, se casasse com ele, perderia o emprego. Ela preferiu casar. Aos 24 anos, era mãe de cinco crianças, que sustentava sozinha lavando roupa para fora. Alcoolizado, o marido se tornava muito violento. Morreu há um ano, esfaqueado numa briga.

– Beto, de 34 anos, presta serviços de informática à Prefeitura do Embu. Paulo, de 33, trabalha nos Correios. Débora, de 30 anos, teve cinco filhos. Perdeu um e entregou um dos meninos para a mãe criar.

– Uma patroa chamada dona Darcy, mulher de um coronel da PM, adiantou-lhe dinheiro para comprar uma casa de um só cômodo no Jardim Santo Eduardo, no município de Embu das Artes, nos arredores de São Paulo. A idéia era que, dona do próprio teto, ela pudesse mandar o marido embora, mas Arlinda ainda levou quase 30 anos para tomar essa decisão.

– Durante dois anos, foi funcionária da Petróleo Ipiranga, onde teve carteira assinada. Pediu demissão e fez um acordo com a empresa para conseguir o dinheiro necessário para colocar em sua casa piso, janelas e portas de verdade.

– Depois de anos tomando em média quatro ou cinco ônibus por dia, ela conhece muitos bairros e endereços, alguns dos quais, como Capão Redondo, seus patrões só viram em filmes. Aprendeu a ler decifrando, nos ônibus em movimento, palavras compridas como “Terminal Capelinha” e “Hospital das Clínicas”. Ainda assim, considera que não sabe ler.

– Além de Roberto Carlos, Arlinda adora Charles Chaplin. Tem na sala uma galeria de imagens dele. Pendurou também nas paredes fotos de flores, emolduradas com adesivos de borboletas, e móbiles feitos de contas, plumas e flores de pano, sobras da confecção de Thaís. Tinha um painel de fotos de índios recortadas de revistas. Jogou fora porque os filhos achavam ridículo.

– Os dois trabalhos que Arlinda gostaria de ter, caso tivesse estudado: “pintar quadros e ser decoradora”.


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