Meu avô vivia em Santa Cruz do Rio Pardo, à época uma cidade perigosíssima e de grande violência. Sempre manteve uma cova aberta em sua casa. Para uma emergência, dizia. Meu pai trouxe o costume para São Paulo. Em nossa casa, havia uma cova de terra preta fofa, ao lado da jabuticabeira. Eu nunca fiz perguntas.
Mais por uma questão afetiva, anos mais tarde decidi ter uma cova na minha casa também.
Eu contei isso para um amigo que morava na Vila Madalena, em uma dessas casas com terreno estreito e comprido, com galinheiro e jabuticabeira no fundo. Lembro que, na ocasião, também contei a ele que as jabuticabeiras não têm capacidade de retenção de água. Para que deem frutos, é preciso armazenar água para elas. Eu usava uma manilha de PVC espetada ao lado da minha jabuticabeira, tampada embaixo, deixando apenas um pequeno furinho. Enchendo de água uma vez por semana, o gotejamento mantinha o solo úmido.
Meu amigo gostou muito das duas ideias e, meses depois, me disse que as adaptou e integrou. Em vez de uma cova, fez um buraco cilíndrico de dois palmos de diâmetro por dois metros de profundidade, fechou com um tampo de concreto, com o tubo de PVC engastado, pingando água para a jabuticabeira. Achei a solução engenhosa e criativa, mas estranhei. Eu, sim, tinha razões, afetivas para manter uma cova em casa. Ele não.
Não deu outra, um dia o encontrei e ele perguntou se eu me lembrava de que a casa dele, por uma questão antiga de marcação no terreno, invadia meio metro do recuo mínimo do vizinho. Eu me lembrava daquilo. O vizinho aceitava numa boa, o problema era o fiscal da prefeitura que demandara que ele demolisse uma fatia da sua casa. Meio metro de ponta a ponta! Uma impossibilidade. Essa irregularidade permitiu que o canalha grudasse em sua jugular. Sugava quinhentas pilas por mês para não intimar a demolição. Ele, no princípio, não viu saída e aceitou a sinistra simbiose. Mas um dia resolveu acabar com aquilo. Primeiro, considerou os aspectos práticos. Depois, homem de princípios, analisou as questões morais. Nada de muito complexo, só o essencial. Tomou decisão.
Agendou a mordida para um sábado em que sua mulher e filhos estariam fora. No que o fiscal chegou, meu amigo perguntou se ele queria experimentar umas jabuticabas. O fiscal disse que sim e foram para o quintal. Meu amigo, sempre correto, perguntou se ele tinha filhos. Não. E mãe viva? Também não. No que o fiscal esticou o braço para pegar uma jabuticaba no alto, meu amigo abateu o bruto com violenta pazada na nuca. Imediatamente empurrou o corpo para o fundo do buraco. A tampa de concreto foi colocada de volta com a manilha cheia para o gotejamento. Não gastei cinco minutos!, disse ele com evidente orgulho.
Cacete!, exclamei.
O fiscal agora nutria seu terreno. Um avanço notável, afirmou. Mas a quebra de proteínas na putrefação liberava gases que borbulhavam no sistema de gotejamento e cheiravam mal. Sugeri que mudasse a manilha de lugar e concretasse o corpo no buraco. À moda da velha Chicago.
Foi o que ele fez.
Gosto de gente assim. Que não elucubra muito, tem referências morais, põe a mão na massa e resolve. É outra coisa.
*PhD pela Universidade de Cambridge, foi professor titular da USP. É autor dos livros Choro de Homem (Ateliê Editorial) e O Pai de Max Bauer (Ateliê Editorial/Editora Brasileiros).
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