Ciclista até na contramão

Luiza Sigulem
Renata e sua Caloi de alumínio com quadro que depois gerou a Caloi Mobilité by ela própria, lançada em 2011

Por anos, até a década de 1970, um comercial instigou o sonho de consumo da garotada, ao recomendar que se escrevesse um bilhetinho com um pedido especial: “Não esqueça a minha Caloi”. Não foi assim, porém, que a jornalista e fotógrafa Renata Falzoni teve a sua primeira bicicleta, aos 4 anos. Seu pai era amigo de Bruno Caloi, dono da mais antiga e conhecida marca desse veículo de duas rodas do País. Era um modelo simples, aro 16, azul, com duas rodinhas, para a criança não cair. No ano seguinte, recebeu uma maior e sem as tais rodinhas. Não conseguiu dormir à noite de tão ansiosa. Incrédulo, o pai viu pela janela a filha sair pedalando “de primeira”. “Só me dei conta de que estava me equilibrando ao virar a esquina. Mas, a essa altura, já estava voando.” Naquele 2 de setembro de 1958, ainda diminuía-se a velocidade e freava-se pelo pedal. Única mulher no meio de quatro irmãos, a superproteção dos rapazes e do pai impediu que, por muito tempo, Renata pudesse sair sozinha de bicicleta. Temiam por sua segurança. “Isso me tornou safa.” Os irmãos chamavam uns aos outros em código, pela ordem de nascimento: Mano 1, Mana R, Mano 3 e Mano 4. E assim é até hoje. Aos 9 anos, a família se mudou para o bairro do Morumbi, que era quase uma cidade do interior, e ela ganhou asas com a molecada da vizinhança. “Virei mecânica. Sabia tirar pneu, ‘fazer a força’, colar o remendo, fazia tudo.”

À noite no pedal

Foi em 1988 que a bicicleta entrou definitivamente na vida de Renata. Virou bandeira de luta por uma vida melhor na maior cidade brasileira, atormentada pelos congestionamentos caóticos, resultado de uma política pública voltada para carros. Naquele ano, Renata criou o Night Bikers, primeiro grupo a realizar passeios noturnos de bicicleta. A imprensa adorou a ideia e as muitas reportagens fizeram com que o grupo crescesse, e a proposta se espalhasse para outras cidades. Só que, até o assunto mobilidade se tornar urgência de política pública, a pedalada foi longa.

Valeu a pena. Nessa militância, Renata está cada vez menos só. Acompanhada de 15 nomes do ciclismo e dos movimentos de mobilidade em vários estados, ela acaba de lançar o site Bike é Legal (www.bikeelegal.com), em parceria com os canais ESPN e patrocínio do Banco Itaú. O início do projeto coincide com o mês da mobilidade no País, setembro. Renata o define como um portal de ciclismo e mobilidade sustentável, com conteúdos atualizados diariamente. Entre os principais temas, está a bicicleta no transporte, no esporte, no lazer e na lei, além da mobilidade nas cidades do Brasil e do mundo. “É um brinquedo saudável e um veículo que pode ser integrado com outras modalidades. Uma alternativa para o caos no trânsito e, principalmente, uma ferramenta de inclusão social.”

Nesse contexto, ressalta, o cidadão que anda a pé, de transporte público, cadeiras de rodas, bicicleta, triciclo, skate, patins e patinete é excluído de seus direitos e deveres. “Para quem aprendeu a pedalar quando criança, a bicicleta também é um instrumento que lhe conecta com a infância e resgata as alegrias e outros sentimentos da vida de cada um. O ciclista consegue observar a cidade sob outros ângulos, diferente do motorizado”, insiste.

Para Renata, costumes e políticas públicas de outros países podem servir de referência — muitas vezes é desgastante para quem pedala ter de justificar o uso da bicicleta na cidade. Ela literalmente defende que, se necessário, deve-se andar na contramão, quando a causa é justa e beneficia a população. Ela não se vê sozinha nessa subversão. Por isso, o conteúdo Advocacy é um dos principais focos do Bike é Legal. Nele, o internauta encontra dados para se municiar de argumentos legais em favor da bicicleta, além de trocar experiências sobre outras realidades.

Mobilidade urbana é um movimento internacional sem volta: trata de uma necessidade, que prega um sistema integrado, barato e eficiente. Nesse contexto, a bicicleta faz bem à saúde e diminui o ruído nas cidades. E mais: “O grande efeito colateral para o ciclista é que ele se torna um pensador, politiza-se, observa mais de perto a cidade e seus problemas, suas necessidades.” Ela sabe o que diz. Pedalou em 27 países.

A maioria dos motoristas, acredita, quer respeitar as bicicletas e conviver com elas. O exemplo mais gritante da desigualdade, que prioriza o carro particular e os pedestres em São Paulo, diz Renata, é a Avenida Paulista, por onde passam diariamente 60 mil carros e 1,2 milhão de pessoas. “A classe média exige o direito de andar de carro e criou um problema de congestionamento que não tem solução. O poder público precisa parar de focar só no automóvel.”

Renata estudou Arquitetura na Universidade Mackenzie. Como morava no Morumbi, adotou o carro, presente do Mano 1, para se locomover. Adorava correr e, assim, ganhou o apelido de Renata Fittipaldi, em referência ao primeiro campeão mundial brasileiro de F1, Emerson Fittipaldi. Era o ano de 1972, quando São Paulo, mesmo menor, já tinha problemas de trânsito.

Depois de passar um ano nos Estados Unidos, em 1976 foi viver na Vila Madalena, bairro da boêmia paulistana. “Aí, entendi o que era liberdade.” Nessa época, saiu de São Paulo e caiu no mundo, só de carona e de bicicleta. Na volta, os 6 km entre a rua Maria Antonia e a Vila Madalena lhe consumiam 40 minutos e muita paciência de carro. Passou o veículo para o Mano 4 e resgatou a bicicleta. “Na faculdade, nem havia lugar para estacionar bicicletas.” A futura arquiteta ainda experimentou uma moto, uma potente XL 250, mas o destino estava reservado. Sobre duas rodas, só mesmo de bicicleta.


Comentários

Uma resposta para “Ciclista até na contramão”

  1. Avatar de Claudio Lobato
    Claudio Lobato

    Adorei. Jornalista e ciclista tb aqui em Belém/PA. Tomaremos conta das ruas em todas as cidades do mundo. Tenho fé no pedal.

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