O cenário é um só: uma sala escura e uma cadeira. Nele, pessoas comuns contam uma história particular, um pequeno relato afetivo. Em seguida, cada uma canta uma música que marcou sua vida. Com pouquíssimos recursos e uma proposta arriscada, o documentarista Eduardo Coutinho faz de As Canções, em cartaz nos cinemas, um grande filme sobre o amor. “A voz humana é um dos instrumentos mais belos e eu confiei nela. Se havia essa relação de confiança, não tinha necessidade de um excesso de imagens.”

Só voz, nenhum instrumento. “Tudo acontece dessa forma e é fogo cantar afinadamente sem acompanhamento. No filme, algumas pessoas não têm voz boa, mas mesmo assim a gente se emociona porque os cantos estão relacionados com passagens da vida delas. A beleza está nessa relação entre canção e essas passagens reveladas”, diz Coutinho. O filme, realmente, comove. São 18 histórias de gente anônima e 19 músicas de autores conhecidos, como Adelino Moreira, Chico Buarque, Tom Jobim, Noel Rosa, Roberto e Erasmo.
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Vencedor do prêmio de melhor documentário no Festival do Rio, As Canções, 12o filme do documentarista, mostra como cada pessoa carrega uma história, às vezes triste, às vezes feliz. Mas o que também impressiona é a sinceridade dos depoimentos. “Por mais detalhadas que tenham sido as entrevistas prévias, sempre há espaço para a revelação inesperada, o improviso, a surpresa. Aí está o barato da coisa e, creio, a força dos meus documentários. Geralmente, o que consigo extrair do essencial dessas entrevistas vem do acaso”, diz o ducumentarista.

Ele seria, então, autor do cinema da palavra? “Isso é com base na crença da palavra enquanto ação. A canção é a palavra em seu máximo, poesia é a palavra em seu máximo. Então, nesse sentido, meu cinema é da palavra.”

Há 50 anos
A trajetória do maior documentarista brasileiro começou em 1961, quando filmava para o Centro Popular de Cultura (CPC), da União Nacional dos Estudantes (UNE). Participava de filmes ficcionais como assistente de direção e roteirista. Foi, então, que Coutinho passou a viajar para o Nordeste, para montar peças com temáticas políticas e intuito de conscientizar colonos. Em uma delas, em Sapé, agreste paraibano, ele entrou em contato com a história das Ligas Camponesas e do assassinato do colono João Pedro Teixeira.

Aproveitando os equipamentos e a câmera que usava para documentar as montagens das peças para a UNE, Coutinho decidiu entrevistar Elisabeth Teixeira, viúva do colono. Ela acabou mostrando a casa, os filhos e a vida sem o marido. Nasciam ali as primeiras cenas de Cabra Marcado para Morrer. Pela primeira vez, uma equipe e seu diretor – no caso o próprio documentarista – apareciam no filme. Coutinho chegou a fazer duas semanas de filmagens, até o golpe militar de 1964. Parte da equipe foi presa sob alegação de comunismo e o restante se dispersou, interrompendo a realização do filme por quase 20 anos.

Coutinho também trabalhou com Leon Hirszman e Eduardo Escorel, chegando a dirigir um episódio (O Pacto) do longa-metragem ABC do Amor, em 1966. Depois, em 1975, foi para o Globo Repórter e lá mergulhou no documentário. Quando deixou a Globo, em 1984, decidiu finalizar Cabra Marcado para Morrer, dessa vez como documentário.

O filme, lançado naquele ano, ganhou vários prêmios e tornou-se obra estudada, respeitada e reverenciada na academia e entre críticos. Mas, infelizmente, não foi capaz de tornar Coutinho mais conhecido. Por cerca de 15 anos, ele viveu quase no anonimato, sobrevivendo com trabalhos para a televisão e a realização de filmes de média-metragem e vídeos – Santa Marta: Duas Semanas no Morro (1987) e Boca do Lixo (1992).

Teve uma volta ao mundo dos longas com O Fio da Memória, sobre a abolição da escravatura, iniciado em 1988, centenário da abolição, e concluído em 1991. Mas o filme passou despercebido do público, tendo apenas uma razoável exibição em canais a cabo, fora e dentro do Brasil.

Materialistas mágicos


Dos 12 filmes (excetuando os médias-metragens, curtas e trabalhos para a TV) assinados por Coutinho, nove foram feitos nos últimos 12 anos. Como explicar essa distribuição concentrada de trabalhos de 1999 para cá? O primeiro deles, Santo Forte, sobre a importância da fé e da religião na vida das pessoas, tirou definitivamente Coutinho do anonimato. “Esse filme foi decisivo para a minha carreira. Eu estava meio jogado e fiz um documentário que nada prometia, mas acabou tendo repercussão.”

Se não tivesse feito Santo Forte, estaria aposentado? “Que otimismo. Eu não estaria aposentado. Estaria, com certeza, morto.” O curioso é que Coutinho só acredita nos “materialistas mágicos”. Ele explica: “São aquelas pessoas que não acreditam em nada, mas acreditam na magia e vivem falando em Deus. Quando acontece uma coisa boa comigo, falo: ‘Deus existe’ (risos).” E esse Deus apareceria na forma do documentário.

Com esse trabalho, Coutinho não só se salvou de uma morte prematura, segundo o próprio, mas inaugurou no documentário brasileiro a sobreposição da palavra sobre a imagem. É como se a palavra ganhasse o destaque de nobreza e reinasse absoluta sobre as imagens. Depois de Santo Forte, a palavra não precisava mais de uma imagem para ilustrá-la. Ela, em si, já possuía os elementos para acionar a imaginação. Mais ou menos como na leitura de um livro, que vai ganhando imagens de acordo com as palavras.

Invenção e realidade
Nos documentários de Coutinho há uma multiplicidade de temas evocados: uma comunidade carioca, Babilônia (2000); moradores de Copacabana, Edifício Master (2002); as graves no ABC paulista no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, Peões (2004); a ida aos rincões do Brasil profundo para falar sobre velhice, memória e morte, O Fim e o Princípio (2005). Mas ele é capaz de subverter a ordem das coisas e colocar atores em um documentário, como acontece em Jogo de Cena (2007), em que ficção e realidade se fundem, criando outros significados.

Moscou, documentário que Coutinho realizou com o grupo mineiro Galpão, também segue entre o real e o imaginário, ao filmar os bastidores dos ensaios da companhia para a montagem da peça As Três Irmãs, do escritor russo Anton Tchekhov (1860-1904). A ideia era compreender o processo criativo dos atores, a relação entre atores e personagens.

Só que Coutinho não é um sujeito de uma única fórmula. Em Um Dia na Vida, o diretor filmou durante 24 horas toda a programação das tevês abertas no Brasil, para mostrar o quanto é insana e sem qualidade a maioria dos programas. O filme foi exibido apenas uma noite em um cinema de São Paulo – Coutinho não tinha como adquirir e pagar os direitos dessas imagens. Mesmo percorrendo temas e lugares distintos, é por meio das histórias contadas pelos personagens que os documentários de Coutinho se centram. Ou seja, dando voz aos personagens sem tipificá-los. “Todo mundo quer ser escutado.”


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