Circo na estrada

Acordei ouvindo barulho de tralha arrastada e o vozerio dos homens que vararam a noite desarmando o circo e carregando as carretas. O trailer balançava um pouco, parecia ter alguém em cima arrumando os bagageiros, e ao sair do quarto de “hóspede” (camarim nas noites de espetáculo), percebi que os inúmeros bibelôs, retratos e toalhinhas de crochê que eu vira na sala na noite anterior não estavam mais lá. Só a TV 29 polegadas embutida na estante de madeira permanecia no lugar.

Na copa-cozinha, os bailarinos Brisa Pinho, 24 anos, e Mateus de Oliveira Lisboa, 18 anos, o “Foguinho”, ajeitam os objetos mais frágeis para suportar o balanço da viagem. Ambos decidiram seguir com o Circo Estoril depois de assistirem ao espetáculo em Muriaé, no norte de Minas Gerais, há quase um ano, mas não se conheciam antes de trabalhar juntos na “casa dos avós” – como é chamado o trailer de 15 metros de comprimento de Roberto e Luzdalma Portugal. O serviço doméstico prestado aos donos do circo engorda o pequeno salário de bailarinos – quase sempre a função exercida nos circos por aqueles que não nasceram “embaixo da lona” nem fizeram escola de circo. A grande maioria do elenco do Estoril é de famílias circenses há gerações, que iniciam as crianças nas artes tradicionais do picadeiro aos quatro ou cinco anos de idade.
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Escovo os dentes no banheirinho incrivelmente organizado, embora atulhado de potes de cosméticos e produtos de higiene. Minha anfitriã, a mineira Luzdalma, 45 anos, é vaidosa como o são todas as mulheres do circo e conhece bem a arte de manter um lar aconchegante em constante movimento. Há 28 anos ela deixou a casa dos pais em Araguari (MG) e foi viver nas tendas – os trailers vieram depois – da família do marido, circense há quatro gerações. Os filhos, Luciano, 27 anos, Daniela, 22 anos, e Tiago, 20 anos, nasceram em Estados diferentes e foram criados em trânsito desde bebezinhos. “Só me convenceram a ir para a casa da minha mãe no primeiro filho; os outros levei da maternidade para o trailer”, costuma dizer Luzdalma.

Brisa me oferece café e avisa em tom de brincadeira: “Hoje você vai ver muita gente mal-humorada. É bom mudar, mas duas vezes em menos de uma semana…”, comenta, enquanto empacota copos, toalhas e muitos brinquedos – o xodó da casa é o netinho Lucas, de um ano e meio, filho de Daniela e de Luais Pallácios Robatini – também de família tradicional circense, e como muitas delas, de origem cigana.

O termômetro da copa marca 38 graus quando saio para fumar um cigarro na “varanda”, antes decorada com mesinhas de vime, tapetes e espreguiçadeira, agora apenas uma chapa de ferro coberta por um toldo. O terreno do Parque de Exposições de Pedro Leo-poldo (MG) parece nu sem a lona de 42 metros de diâmetro recolhida por cerca de 30 homens – mais da metade trabalhadores contratados por R$ 3,50 a hora para ajudar na desmontagem do circo. Quatro das 17 carretas – que além da lona levam a frente do circo, bilheteria, luminoso, os mastros de metal, o palco, a estrutura de madeira da arquibancada, frisas e camarotes – já tinham partido para a próxima parada: o bairro da Pampulha, em Belo Horizonte, a 50 quilômetros dali. As carretas menores ainda estavam sendo carregadas com as cadeiras, o Globo da Morte, trapézios, rede, cama-elástica, toda a incrível parafernália do circo.

Dentro dos 36 trailers que formam a “aldeia” de cerca de cem “habitantes” o abre-fecha de malas segue o ritmo da “casa das avós”. É impressionante a quantidade de coisas que carregam essas famílias em constante mudança, de eletrodomésticos a roupas que dividem os armarinhos do trailer com fantasias e adereços confeccionados pelos próprios artistas. Levam banheirinha e bicicleta para as crianças, não dispensam nem o cachorro e o papagaio.

Os trailers e as carretas dos animais do picadeiro – Xande, o urso, Rani, a elefanta, os camelos Califa, Layla e o filhote Muriel, lhamas e cavalos – viajariam mais tarde para prolongar a tranqüilidade dos bichos embaixo da lona que lhes serve de moradia e garantir mais um dia de aula para as crianças na mesma escola – a cada cidade que passam as mães matriculam os meninos, amparadas em uma lei promulgada por Getúlio Vargas que obriga a rede pública a aceitar os filhos de circenses em qualquer período do ano. No último mês, as duas dezenas de crianças em idade escolar do Circo Estoril mudaram de escola três vezes. Antes de Pedro Leopoldo, foram duas semanas em Sete Lagoas (a uns 40 quilômetros), e agora a intenção é ficar duas ou três semanas em
Belo Horizonte.

“Cão que caminha acha osso”
(provérbio cigano)

“O circo não pode parar, se parar não sustenta toda essa gente”, diz Luzdalma, que se tornou responsável pelas finanças depois que o marido Roberto decidiu montar sua própria lona – a família Portugal tem mais três circos administrados pelos irmãos de Roberto – e fundou o Estoril há nove anos. Além dos donos do circo, há outros Portugal morando no Estoril: o irmão mais velho de Roberto, Chuca, palhaço há 50 anos, casado com Fátima, vendedora de churros; o filho deles, José Roberto, 32 anos, o domador de Xande, o urso, além de motoqueiro no Globo da Morte; a sobrinha Andréa, que faz números aéreos e é casada com Luciano Avanzi, também de família tradicional circense e malabarista dos bons, e mãe de Lucianinho, oito anos, que já se apresenta no trapézio. Os familiares recebem o pagamento por semana como os outros artistas do circo. Os cachês variam de R$ 70 – para bailarinos – a R$ 500 para os palhaços e trapezistas. Os filhos de Luzdalma – Luciano, Tiago e Daniela – também trabalham no circo: Luciano é o diretor artístico, o treinador da elefanta Rani – na família há mais de 20 anos -, faz números com animais no picadeiro e é um dos pilotos do Globo da Morte, como o caçula Tiago e o primo José Roberto. Daniela, a mãe de Lucas, apresenta-se com a elefanta Rani e faz as coreografias dos bailados. O marido, Luais, é malabarista, palhaço e trapezista. Faz um número imperdível de bêbado na cama-elástica.

Os parentes de Luzdalma foram incorporados ao Estoril depois que ela e o marido se tornaram cabeças do negócio. O pai, Nivaldo Pereira, trabalha na bilheteria e faz a propaganda do circo na cidade com um megafone no carro. É lá também que o ex-motorista de ônibus dorme; acha complicado viver em trailer. Os irmãos, Margarete e Nivaldo Jr., são os secretários, responsáveis por encontrar os terrenos nos destinos seguintes, obter as licenças necessárias para o funcionamento do circo e negociar a instalação de água e luz, às vezes paga antecipadamente por estimativa, outras vezes por tempo marcado com relógio. São também eles que checam a praça para saber se há atrações concorrentes e fazem a política de boa vizinhança: nem todas as prefeituras recebem bem os circos, ainda vistos como possíveis focos de confusão nas cidades do interior mineiro e do sul do Brasil onde costumam se instalar.

A praça de Pedro Leopoldo não decepcionou, eu mesma presenciara o espetáculo lotado na noite de despedida. Mas com 70 mil habitantes a cidade é pequena demais para um circo de 2 mil lugares – só entrou na rota por estar no final dos 400 quilômetros da estrada entre Montes Claros a Belo Horizonte. Luzdalma havia aceitado o convite para participar de um festival de circo, depois de desistir de se instalar em Montes Claros, assustada com as chuvas que castigaram o norte mineiro no verão.

Mesmo com as lonas modernas, impermeáveis e à prova de fogo, a chuva é o pesadelo do circo: enlameia o terreno, confina as pessoas nos trailers, reduz o público e assusta quem vive quase ao relento. Ao primeiro raio, as mulheres correm para a imagem de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do circo, e não por acaso a santa eleita para a devoção dos ciganos católicos no Brasil. Embora os Portugal não se considerem descendentes de ciganos, os gorbetos – como são chamados os ciganos circenses – são a alma do circo tradicional brasileiro e o Estoril está povoado de Guinner – como a jovem Vânia, que, como sua tia-avó, se pendura pelos cabelos a dez metros de altura -; Evans, como a menina Estéfani, de 17 anos, exímia trapezista como os pais, os tios, os avós; ou Robatini, como Luais, o marido de Daniela Portugal e pai de Lucas. Os domadores de ursos como Xande aprendem a arte com os ciganos Ursari e foi o irmão de seu Roberto, Luís, dono do Circo Portugal, que o adestrou. O circo chegou ao Brasil com os ciganos europeus, alguns com nomes insuspeitos como Orfei.

“”Não se pode ir reto quando a estrada é curva”
(provérbio cigano)

Os trailers nem chegaram ao terreno da Pampulha prometido ao Estoril pela organização do I Festival do Circo Tradicional Mineiro. A administração regional da Pampulha não autorizou sua instalação, temendo por reclamações dos moradores das mansões vizinhas, à beira da lagoa verde da capital mineira. Pelo celular, Luciano orientou as famílias a ficarem onde estavam. Logo seriam avisadas de seu próximo destino.

Alugar outro terreno às pressas em uma boa localização, essencial para as temporadas em grandes cidades, era caro e arriscado: sem a divulgação que o festival teria na imprensa ficaria difícil atrair o público. A solução foi montar outra temporada curta em Vespasiano, cidade-dormitório como Pedro Leopoldo, enquanto buscavam uma praça melhor. Os R$ 1.200 por uma semana do aluguel do terreno de 7 mil metros quadrados (o mínimo para um circo de 2 mil lugares) foram entregues em dinheiro, as autorizações obtidas, e as carretas e trailers pegaram a estrada outra vez. Apesar do calor insuportável e da falta de banho (a água e a luz só seriam ligadas no dia seguinte), o trabalho de montagem do circo começou na mesma tarde de terça-feira. Para montar o circo são necessários dois ou três dias de trabalho e a estréia é sempre na sexta-feira. Sento ao lado de seu Roberto que não tira o olho do bobcat – um tratorzinho carregadeira importado por US$ 70 mil que “faz o trabalho de 30 homens”, ele diz. A cada vez que o barulho muda, seu Roberto grita: “Olha aí, não força o motor”. É mesmo impressionante como aquela maquininha carrega os mastros de 13 metros de altura que depois sustentarão a lona. Conforme o trabalho progride, ele relaxa e conversamos sobre as dificuldades da vida no circo.

“O circo é uma empresa como qualquer outra: que paga os impostos, os salários, o aluguel, e depende da venda do produto – o espetáculo – pra sobreviver. E como você viu, tem que lidar com imprevistos o tempo todo, está sempre no risco”, diz. “Antigamente era ainda mais difícil, os circos eram de tecido de algodão, molhavam com a chuva – eu mesmo passei por um incêndio em que perdemos muito. Hoje a gente tem facilidades, como o bobcat, o trailer confortável, a televisão a cabo, celular, internet, mas também pena para administrar o circo, há mais exigências, problemas trabalhistas, os circos internacionais inflacionam os cachês, é duro conquistar o público que fica em casa vendo televisão”, comenta.

Pergunto se valeu a pena dedicar sua vida e a de sua família ao circo: “Nunca dá pra saber como teria sido diferente, mas a vida no circo não é bem uma escolha. A gente aprende a viver assim e não sabe viver de outra maneira, preso na cidade, em escritório, apartamento. Nós temos um apartamento em Uberaba, uma chácara onde criamos os animais, e estamos sempre na estrada”, conta.

O bobcat agora está içando a lona para o alto do mastro e seu Roberto acena para o filho Luciano, que participa do trabalho. “É melhor abrir a lona amanhã”, diz. Três meninas chegam ofegantes com a notícia: uma das colegas bailarinas, Ornella, fugiu durante a mudança. “Parece que ela arrumou um namorado e decidiu ir embora sem cumprir os 15 dias”, diz uma delas. Seu Roberto ergue as sobrancelhas e pede às garotas que procurem saber se está tudo bem com a fujona. Depois comenta baixinho: “O mais difícil mesmo, como em qualquer lugar, é lidar com as pessoas”.

Patrões e empregados
Não consegui saber quanto os Portugal ganham com o circo. Seu Roberto diz que eles não fazem balanço, vivem conforme o caixa de cada praça: às vezes bem, às vezes apertado. Pelo que pude ver, pagam os artistas em dia, alimentam bem os animais, cuidam dos equipamentos, tem carros e caminhonetes novos, e Luzdalma se diverte comprando quinquilharias importadas sempre que o circo está próximo a uma cidade grande. “Fina”, ela brinca, mostrando para a mulherada o salto das galochas importadas que comprou em Belo Horizonte. Mas falar de dinheiro não é hábito da família, talvez pela proximidade nem sempre pacífica entre patrões e empregados.

Conversa com o mestre
Mestre: José Wilson (acima) formou uma nova geração, como a do circo Zani (ao lado)


Minha viagem ao Circo Estoril surgiu de uma entrevista com uma figura central do circo brasileiro, o trapezista José Wilson Moura, fundador do Circo Escola Picadeiro, que durante os anos 1980/1990 formou muitos artistas do chamado “circo novo” brasileiro, como Domingos Montagner e Fernando Sampaio, do Circo Zanni, e Hugo Possolo, dos Parlapatões. Dezesseis ex-alunos da Picadeiro foram contratados pelo Cirque du Soleil. Há dois anos, o terreno que a escola ocupava em uma área nobre da cidade, foi retomado pela Prefeitura de São Paulo, mas Zé Wilson, como é conhecido esse alagoano forte de 58 anos, continua sendo o mestre de velhos e novos discípulos: faz a direção circense do Roda Brasil, o circo dos Parlapatões, e da Companhia Pia Fraus de bonecos, cria números para o Circo Zanni, dentre eles o cômico “Bailarinas”, que se tornou nacionalmente famoso depois que a dupla Fernando-Domingos venceu uma competição de palhaços no programa do Faustão, da TV Globo, e segue dando aulas sob a lona de seu circo-escola O Picadeiro Aéreo para 150 alunos, instalada em Osasco.
Conversamos na varanda do trailer estacionado no terreno de 5 mil metros quadrados no início da Marginal do Pinheiros. Na área alugada por R$1.200 vivem 22 pessoas em seis trailers de famílias e uma carreta dos solteiros. “Nasci no circo, não consigo viver em casa normal”, diz o neto de circense, membro de uma famosa família de trapezistas – os Irmãos Moura – hoje com cinco trupes trabalhando em circos do Brasil e do exterior.
Falamos do bom momento do circo, dos elogiados espetáculos do Circo Zanni e do Roda Brasil, dos caríssimos e ainda assim disputados ingressos do canadense Cirque du Soleil – “não deixa de valorizar o circo”, ele diz -, do surgimento de grupos brasileiros de estética circense, que fazem sucesso
junto à molecada urbana como o Jogando no Quintal e o Teatro Mágico, do aumento do interesse da molecada pelas escolas de circo.
“E o circo novo?”, pergunto, usando a expressão utilizada correntemente para definir os grupos circenses que vieram do teatro.
“Falar em circo novo pra gente como eu que vive essa história desde o tempo do circo-teatro é um absurdo. Quando eu era criança, no Nordeste, o circo do meu tio J. Mariano apresentava o espetáculo dividido em duas partes: atrações e teatro. Mas a base do circo está no tradicional: os grandes números é que fazem um grande espetáculo. Tudo bem pegar esses números e modernizar. É isso que fizemos no Roda Brasil, é o que o Zanni está fazendo. Muitas vezes até retomamos tradições esquecidas, que aí o pessoal acha que é novidade. Claro que hoje precisamos trazer uma linguagem mais atual, unir tecnologia à pesquisa da tradição circense, os governos apoiando, como o governo do Canadá apóia o Cirque du Soleil, que tem excelentes artistas, bem pagos, exatamente como queremos aqui”, diz Zé Wilson.
Ele continua: “O circo é uma força muito grande, transforma as pessoas, balançar no trapézio, se pintar de palhaço, muda o modo de ver o mundo. Tanto é que agora os Parlapatões e o Zanni trocaram o teatro pela lona, sacaram que a proximidade com o público é completamente diferente. Mas quem mantém o circo vivo são os tradicionais, que vivem de bilheteria, volta e meia montando e desmontando circo, pegando estrada com animais na carreta, criando os filhos no trailer, isso que você devia ver”, sugeriu.
Foram quatro telefonemas até Zé Wilson descobrir que o Circo Estoril estava em Minas, mudando de cidade, e aceitava me receber. No dia seguinte eu iniciava a semana no circo.

O acampamento do circo lembra uma aldeia, mas tem um que de fazenda colonial, com o trailer dos avós e seus satélites (os trailers dos filhos e irmãos de Luzdalma e o barracão da cozinha) fazendo o papel de casa-grande e os trailers dos artistas e capatazes representando a colônia dos lavradores. A senzala, felizmente, não existe, embora a carreta dos bailarinos – destinada aos artistas e trabalhadores braçais sem família – esteja longe de ser minimamente confortável.
Na “casa-grande” não falta água nem luz no dia de mudança. Enquanto aguarda a ligação, Luzdalma negocia com um vizinho o empréstimo da água – generosamente pago depois – e o gerador garante luz no trailer. Os galões de água e os sacos de frutas trazidos nas caminhonetes da família são para refrescar os animais. Os outros “moradores” têm que encontrar recursos próprios para resolver seus problemas. Passeando pela “colônia”, as reclamações das mulheres são inevitáveis: as crianças estão sujas, não há luz para cozinhar, o trailer sem ar-condicionado é um forno. Os empregados mais jovens também não gostam de ser desviados do trabalho para atender aos problemas de dona Luzdalma: consertar eletrodomésticos, limpar o barro em volta do trailer, carregar badulaques.

Precariedade nos contratos verbais e na remuneração também traz insatisfação, embora seja igual em todos os circos brasileiros, com exceção dos grupos que vieram do teatro, que são cooperativados. Soa estranho discutir estabilidade na empresa sobre rodas, mas os circos internacionais, como o Cirque du Soleil, fazem contratos com os artistas, ainda que temporários, hospedam-nos em hotéis confortáveis, responsabilizam-se pela educação das crianças.

Com a TV a cabo de imagem perfeita ligada na sala, converso com a dona do Estoril sobre o tema delicado. Ela reage emocionalmente às críticas de privilégio na “casa-grande”. Conta que criou os filhos em constante mudança desde os 18 anos “com as mesmas dificuldades que todas as mulheres do circo”, e que seus filhos também não passaram do ensino fundamental. Diz que se vira sozinha para arrumar água o vizinho e que cada um deve cuidar dos seus já que ela, além de fazer isso, preocupa-se com as meninas principalmente com as sozinhas (ela é madrinha de crisma de quase todas). Também diz que os artistas estão acostumados a viver na estrada e têm como resolver seus problemas. “Eles são livres, vão para onde quiserem a hora que quiserem”, insiste.

Já em relação às queixas trabalhistas, a postura é diferente. Ela concorda que é preciso modernizar as relações com os contratados, definir direitos e obrigações. A questão é: “Não temos como oferecer o que os circos internacionais oferecem, o dinheiro no circo oscila demais, pagamos o que todos os grandes circos nacionais pagam ou até melhor. Agora mesmo vamos perder a Estéfani, uma trapezista bonita e talentosa, que foi contratada pelo Ringling Bros, o maior circo dos Estados Unidos. Isso está acontecendo em todos os circos”, diz.

“Sorte é sorte” (dito popular)

Na sexta-feira da estréia o circo está pronto. A lona armada ocupa 2,5 mil metros quadrados, sem contar com o “cirquinho”, a lona menor que tem os carrinhos de refrigerante, churros, cachorro-quente, pipoca. O palco, no fundo do picadeiro, está montado, e a arquibancada de madeira em diversos níveis tem cadeiras para sentar. Na frente, as frisas e camarotes recobertos de veludo.

Agora, o acampamento dos trailers perdeu o ar de “fazenda” para ganhar ares de gigantesco camarim. Os artistas dão os últimos retoques nas fantasias, as moças arrumam os cabelos. Na varanda de um trailer, a malabarista, trapezista e bailarina Cristina Avanzi faz as unhas das irmãs Vânia e Vanessa Guinner, que à noite apresentarão números de força capilar e deslocamento corporal – contorcionismo, em linguagem popular.

O machismo da “ciganada”, como diz Cristina, é o assunto. As moças se queixam que são vigiadas demais, não apenas pelo pai, mas pelos homens das outras famílias. “No circo todo mundo se conhece, todos os nossos amigos são do circo, não se pode fazer nada sem despertar comentários maldosos”, diz Vânia, 24 anos. Elas me contam que a maioria das moças casa cedo, quase sempre com rapazes de famílias circenses – os namoros com “meninos da cidade” não são bem vistos. “Quando o cara do circo namora a menina da cidade, traz para o circo. Já as mulheres vão morar com os maridos, por isso que fica difícil casar com gente de fora”, explica Vanessa, de 20 anos, jogando uma pá de cal na imagem de boemia e liberdade associada à vida sob a lona.

As moças também desmentem um mito muito repetido: o da infância maravilhosa, cheia de brincadeiras excitantes. “Não que eu não gostasse de viver no circo, sempre me diverti muito, mas quando comecei o treinamento de força capilar, com seis anos, morria de dor de cabeça. Foram anos para me acostumar”, diz Vânia que até hoje confia apenas no pai para amarrar os cabelos que a sustentarão durante as acrobacias aéreas. “Também tinha essa coisa de ficar mudando de escola, todo mundo fazendo pergunta, a professora às vezes achando que a gente não presta porque vem do circo”, conta.

Vanessa e Vânia se despedem de unhas feitas para se arrumar para a “passeata” – na verdade uma “carreata” em que artistas e animais se exibem pela cidade para divulgar a estréia do espetáculo. Das portinhas dos trailers empoeirados surgem artistas de plumas e paetês -, nem consigo reconhecer algumas pessoas que conheci de shorts, lavando roupa, correndo atrás dos filhos. Cristina Avanzi volta metida em um biquíni brilhante, exibindo o corpo surpreendentemente jovem para os declarados 42 anos. “Sou atleta”, responde, quando elogio a boa forma. Ela traz o filho e os sobrinhos fantasiados para o desfile que logo se juntam à criançada em polvorosa – os menores choramingam: não têm permissão de sair, é perigoso para eles.

Cacás e Ronaldinhos
Inovação: Possolo, dos Parlapatões (acima e ao lado) e um dos númros da 2ª Palhaçaria Paulista, em São Paulo


Hugo Possolo era estudante de comunicação social e história na Universidade de São Paulo (USP) quando se matriculou no Circo Escola Picadeiro. Aprendeu o trapézio, apesar do medo de altura, mas se apaixonou mesmo pela figura do palhaço. Teve sorte, brinca: “Com 45 anos, é melhor ser palhaço, o único artista do circo que envelhece como o vinho”.
Com amigos da Picadeiro, Possolo fundou a companhia Parlapatões, Patifes & Paspalhões, em 1991 – voltada para intervenções e apresentações circenses nas ruas e teatros. Muitas vezes premiados, os Parlapatões, agora com uma lona itinerante, não têm dificuldades de sobrevivência, mas Possolo sabe perfeitamente que esta não é a realidade do circo brasileiro. Coordenador nacional do Circo, o órgão de fomento da Funarte, em 2004 e 2005, ele resume da seguinte maneira a situação do setor: “A verba do Ministério da Cultura é pequena e a do circo, minúscula. A situação melhorou bastante nos últimos anos, com a multiplicação de editais municipais, federais e estaduais, mas falta fazer muito mais. Pelo número dos circos que se inscrevem nos editais públicos, somando todos os lugares que cada um deles comporta, o circo tem potencialmente 20 vezes mais público que o cinema brasileiro. Mas para isso precisamos de bons espetáculos, daí a importância de investir nas escolas de formação, como a Escola Nacional do Circo, no Rio de Janeiro, essencial para o futuro da atividade. Na França há mais de 80 escolas de circo de nível superior”.
Pergunto como ele vê o circo tradicional brasileiro. Ele brinca: “Tradicional mesmo ou o Beto Carrero?”, diz, referindo-se ao maior empresário brasileiro de circo atualmente, mas que veio da área de rodeios. E emenda: “É preciso atuar com muito carinho e muito cuidado no caso de circos de estrutura familiar. Não só em relação ao pequeno circo que depende do subsídio do Estado, mas dando atenção também a
esse circo que se sustenta heroicamente e precisa de outro tipo de apoio. Por que o Cirque du Soleil conseguiu R$ 10 milhões de patrocínio com
incentivo fiscal do governo brasileiro cobrando os ingressos a 300, 400 reais? Quem patrocina o circo brasileiro?” E continua: “O Estado tem que estimular a transformação desse circo tradicional, favorecer a reciclagem empresarial e estética desses empresários familiares que muitas vezes ainda estão com a cabeça nos anos 1950, 1960. É patrimônio cultural. Além disso, sem donos de circo fortes, vamos perder nossos Cacás e Ronaldinhos da lona para os canadenses, americanos e europeus, porque qualidade técnica e artística nós temos. Os olheiros do Cirque du Soleil ficaram tão empolgados com nosso espetáculo que no final subiram no palco e convocaram todos os nossos artistas para fazer audição no dia seguinte. Imagine o desespero”, conta Possolo, com uma ponta de malícia. O elenco, garante, preferiu ficar com o Roda Brasil.

Nas calçadas, a população de Vespasiano festeja as carretas que ocupam a rua toda levando os artistas. As velhinhas sorriem, os homens se empolgam com as moças bonitas de roupas sumárias, as crianças gritam apontando a elefanta Rani ladeada de bailarinos negros vestindo sungas com motivos africanos. Pelo megafone, seu Nivaldo anuncia a estréia do Circo do Estoril “vindo diretamente de Portugal” sobre o fundo sonoro das marchinhas tradicionais. E solta o “agá”, como eles dizem: Rani é “a maior elefanta do Brasil”, o Globo da Morte, com seus brasileiríssimos motoqueiros, é uma “atração vinda diretamente de Las Vegas”.

Voltamos animados com o entusiasmo das ruas, a estréia prometia. Às 18 horas, duas horas antes da sessão, seu Nivaldo se postou na bilheteria enquanto os artistas se recolhiam para os últimos retoques. Mas nem Nossa Senhora Aparecida conseguiu evitar o desastre. O temporal desabou.

As cortinas abriram com menos de 500 lugares ocupados, mas o espetáculo foi apresentado com todo o esplendor. Durante uma hora e meia de encantamento, foram apresentadas 17 atrações tradicionais de trapézio, malabarismo, contorcionismo, equilibrismo além de esquetes dos palhaços e coreografias à Broadway, com luz e figurinos caprichados. Não faltou a emoção do salto triplo no trapézio, as graças da desajeitada Rani ao lado da delicada Daniela, o urso Xande no escorregador. Polako, um argentino casado com uma mineira, apresentou um comovente número acrobático da pequena família estrelado por Davi, de oito anos. Ao final do espetáculo, todas as crianças entraram fantasiadas no picadeiro para se despedir.

“É para que depois elas não tenham medo de se apresentar, para acostumar com o picadeiro”, sussurra Luzdalma, lembrando dos filhos pequenos. Seu Roberto tem recordações ainda mais antigas: com dois anos já se apresentava em números acrobáticos com os irmãos mais velhos. Um deles morreu jovem, de uma queda no picadeiro, mas o número continuou. “O circo é esse híbrido de esporte e arte, exige disciplina para superar os limites, e coragem para enfrentar o risco”, havia me dito o mestre Zé Wilson, antes da partida.

No Estoril, ninguém parece decepcionado com a casa vazia na estréia. Os jovens montam nas caminhonetes para comemorar na cidade – o celular dos rapazes não pára de tocar. Os bailarinos se juntam em outra turma, querem ir dançar em uma casa gay de Belo Horizonte. Dentro do circo, alguns empregados recolhem os equipamentos, limpam o chão. Escuto mais uma vez alguém cantar o hit da dupla sertaneja de Vitor e Léo que me acompanhou durante toda a semana: “Que vida boa ou ou ou/Que vida boa/ Sapo caiu na lagoa/Sou eu no caminho do meu sertão”.

Conversa com o mestre
Minha viagem ao Circo Estoril surgiu de uma entrevista com uma figura central do circo brasileiro, o trapezista José Wilson Moura, fundador do Circo Escola Picadeiro, que durante os anos 1980/1990 formou muitos artistas do chamado “circo novo” brasileiro, como Domingos Montagner e Fernando Sampaio, do Circo Zanni, e Hugo Possolo, dos Parlapatões. Dezesseis ex-alunos da Picadeiro foram contratados pelo Cirque du Soleil. Há dois anos, o terreno que a escola ocupava em uma área nobre da cidade, foi retomado pela Prefeitura de São Paulo, mas Zé Wilson, como é conhecido esse alagoano forte de 58 anos, continua sendo o mestre de velhos e novos discípulos: faz a direção circense do Roda Brasil, o circo dos Parlapatões, e da Companhia Pia Fraus de bonecos, cria números para o Circo Zanni, dentre eles o cômico “Bailarinas”, que se tornou nacionalmente famoso depois que a dupla Fernando-Domingos venceu uma competição de palhaços no programa do Faustão, da TV Globo, e segue dando aulas sob a lona de seu circo-escola O Picadeiro Aéreo para 150 alunos, instalada em Osasco.
Conversamos na varanda do trailer estacionado no terreno de 5 mil metros quadrados no início da Marginal do Pinheiros. Na área alugada por R$1.200 vivem 22 pessoas em seis trailers de famílias e uma carreta dos solteiros. “Nasci no circo, não consigo viver em casa normal”, diz o neto de circense, membro de uma famosa família de trapezistas – os Irmãos Moura – hoje com cinco trupes trabalhando em circos do Brasil e do exterior.
Falamos do bom momento do circo, dos elogiados espetáculos do Circo Zanni e do Roda Brasil, dos caríssimos e ainda assim disputados ingressos do canadense Cirque du Soleil – “não deixa de valorizar o circo”, ele diz -, do surgimento de grupos brasileiros de estética circense, que fazem sucesso junto à molecada urbana como o Jogando no Quintal e o Teatro Mágico, do aumento do interesse da molecada pelas escolas de circo.
“E o circo novo?”, pergunto, usando a expressão utilizada correntemente para definir os grupos circenses que vieram do teatro.
“Falar em circo novo pra gente como eu que vive essa história desde o tempo do circo-teatro é um absurdo. Quando eu era criança, no Nordeste, o circo do meu tio J. Mariano apresentava o espetáculo dividido em duas partes: atrações e teatro. Mas a base do circo está no tradicional: os grandes números é que fazem um grande espetáculo. Tudo bem pegar esses números e modernizar. É isso que fizemos no Roda Brasil, é o que o Zanni está fazendo. Muitas vezes até retomamos tradições esquecidas, que aí o pessoal acha que é novidade. Claro que hoje precisamos trazer uma linguagem mais atual, unir tecnologia à pesquisa da tradição circense, os governos apoiando, como o governo do Canadá apóia o Cirque du Soleil, que tem excelentes artistas, bem pagos, exatamente como queremos aqui”, diz Zé Wilson.
Ele continua: “O circo é uma força muito grande, transforma as pessoas, balançar no trapézio, se pintar de palhaço, muda o modo de ver o mundo. Tanto é que agora os Parlapatões e o Zanni trocaram o teatro pela lona, sacaram que a proximidade com o público é completamente diferente. Mas quem mantém o circo vivo são os tradicionais, que vivem de bilheteria, volta e meia montando e desmontando circo, pegando estrada com animais na carreta, criando os filhos no trailer, isso que você devia ver”, sugeriu.
Foram quatro telefonemas até Zé Wilson descobrir que o Circo Estoril estava em Minas, mudando de cidade, e aceitava me receber. No dia seguinte eu iniciava a semana no circo.

Cacás e Ronaldinhos
Hugo Possolo era estudante de comunicação social e história na Universidade de São Paulo (USP) quando se matriculou no Circo Escola Picadeiro. Aprendeu o trapézio, apesar do medo de altura, mas se apaixonou mesmo pela figura do palhaço. Teve sorte, brinca: “Com 45 anos, é melhor ser palhaço, o único artista do circo que envelhece como o vinho”.
Com amigos da Picadeiro, Possolo fundou a companhia Parlapatões, Patifes & Paspalhões, em 1991 – voltada para intervenções e apresentações circenses nas ruas e teatros. Muitas vezes premiados, os Parlapatões, agora com uma lona itinerante, não têm dificuldades de sobrevivência, mas Possolo sabe perfeitamente que esta não é a realidade do circo brasileiro. Coordenador nacional do Circo, o órgão de fomento da Funarte, em 2004 e 2005, ele resume da seguinte maneira a situação do setor: “A verba do Ministério da Cultura é pequena e a do circo, minúscula. A situação melhorou bastante nos últimos anos, com a multiplicação de editais municipais, federais e estaduais, mas falta fazer muito mais. Pelo número dos circos que se inscrevem nos editais públicos, somando todos os lugares que cada um deles comporta, o circo tem potencialmente 20 vezes mais público que o cinema brasileiro. Mas para isso precisamos de bons espetáculos, daí a importância de investir nas escolas de formação, como a Escola Nacional do Circo, no Rio de Janeiro, essencial para o futuro da atividade. Na França há mais de 80 escolas de circo de nível superior”.
Pergunto como ele vê o circo tradicional brasileiro. Ele brinca: “Tradicional mesmo ou o Beto Carrero?”, diz, referindo-se ao maior empresário brasileiro de circo atualmente, mas que veio da área de rodeios. E emenda: “É preciso atuar com muito carinho e muito cuidado no caso de circos de estrutura familiar. Não só em relação ao pequeno circo que depende do subsídio do Estado, mas dando atenção também a esse circo que se sustenta heroicamente e precisa de outro tipo de apoio. Por que o Cirque du Soleil conseguiu R$ 10 milhões de patrocínio com incentivo fiscal do governo brasileiro cobrando os ingressos a 300, 400 reais? Quem patrocina o circo brasileiro?” E continua: “O Estado tem que estimular a transformação desse circo tradicional, favorecer a reciclagem empresarial e estética desses empresários familiares que muitas vezes ainda estão com a cabeça nos anos 1950, 1960. É patrimônio cultural. Além disso, sem donos de circo fortes, vamos perder nossos Cacás e Ronaldinhos da lona para os canadenses, americanos e europeus, porque qualidade técnica e artística nós temos. Os olheiros do Cirque du Soleil ficaram tão empolgados com nosso espetáculo que no final subiram no palco e convocaram todos os nossos artistas para fazer audição no dia seguinte. Imagine o desespero”, conta Possolo, com uma ponta de malícia. O elenco, garante, preferiu ficar com o Roda Brasil.


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