Ela não sabia o que era linha de montagem nem ouvira falar em Tempos Modernos. Não sabia nada disso. Largou o trabalho de faxineira e foi trabalhar na fábrica. Parafusava noventa e seis tampos de fogão por dia.

Com o tempo, veio o cansaço, então um tédio mortal que a deixava abatida e, depois, a lesão de esforço repetitivo. Como ela era uma pessoa bem simples, cada problema era um novo problema. Ela não diria assim, mas havia um sentimento estranho de que tinham se apossado de seu corpo.

Decidiu largar a fábrica e, cautelosa, se inscreveu no supletivo, à noite. Depois de quinze mil tampos de fogão, concluiu o supletivo, pediu as contas e foi procurar coisas melhores.

Ganhou um emprego com o olhar, a voz e o sorriso que, sabem eles, sempre passa pelo telefone. Call center para ela era um sonho. Computadores – quem diria? – e telefone, uma conquista. Foi treinada, digeriu o roteiro e logo começou em novas assinaturas, para uma operadora de TV a cabo. Pegou o jeito da coisa. Passaram uns seis meses e o trabalho, sempre igual o tempo todo, começou a esmagá-la. Pensou que havia algo de errado consigo. Afinal, trabalhava sentada, falando. Ela não estava apetrechada para analisar essas coisas assim, mas o que a matava não era mais o horror do corpo em esforço repetitivo. Era o corpo confinado e, agora, sua mente em processo repetitivo. Era mais grave. Só se sentia bem no banheiro, quatro vezes por dia.

Assim mesmo, ela progrediu e logo a promoveram para encerramento de assinaturas. Sua premiação era pelo insucesso das solicitações. No princípio estranhou, mas acomodou. Sabia enrolar o cliente até o ponto de ele desistir. Já havia feito isso com homens. No fundo de seu peito, sentia que algo estava errado. Ela não diria assim, mas por ali havia violência moral. Agora seu corpo, sua mente e seus valores eram violados. Coisa que Chaplin não poderia imaginar. Encabrestrada, era conduzida por onde não se deve ir. Certo dia, já pelas tampas, acolheu prontamente todos os pedidos de encerramento de assinatura. Em poucas horas estava na calçada. Despedida.

Com sentimentos confusos, voltou para casa preocupada. Precisava trabalhar, aceitaria qualquer coisa. Em poucos dias começou na padaria. Entrava às cinco. Assustada com o frio, com o escuro e com o cobiçoso olhar do padeiro, preparou a primeira massa na madrugada. Em poucas semanas, dedicada e caprichosa, já estava em confeitaria. Gostou, se interessou e aprendeu. Não demorou muito e aceitava encomendas de bolo, em casa. Largou a padaria, foi formando freguesia e aos poucos enveredando pelos bolos temáticos. Um campo de futebol, então um coração, depois um violão e assim foi. Eram suas esculturas com forma, sabor, cor, textura, aroma, crocância, umidade e brilho. Abrigavam intenção. Davam prazer ao paladar, ao olhar e ao olfato. Alimentavam sonhos. Atendiam desejos. Cada dia um diferente. Tudo criado em sua mente, feito por suas mãos, no seu tempo, com afeição. Isso tudo a fez uma pessoa una. Mais bela.

Talvez não tenha sido exatamente esse o entendimento de Claudete, mas foi como o Dr. Oscar interpretou tudo que ouviu enquanto a esperava terminar o bolo que encomendara. Percebeu ainda em Claudete um perfume de patchuli, que se misturava com a baunilha do bolo. Viu traços de farinha na fresta da blusa de Claudete. Viu a delicadeza das mãos, o movimento dos braços, o decote discreto, o carinho com o detalhe, o rosto sereno e aquela devoção dos entregues.

Chegou em casa e beijou D. Letícia, que achou o bolo lindo. Chegaram os filhos, abriram um vinho, conversaram, almoçaram e foram para os parabéns.

Quem olhasse de fora diria que comeram todos o mesmo bolo.

*Marcos Rodrigues é engenheiro civil , professor titular da Escola Politécnica da USP e dedica-se também à literatura.


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