Cláudio Manuel da Costa, o homem de dois mundos

A historiadora e professora da Universidade de São Paulo (USP) Laura de Mello e Souza aceitou a tarefa de fazer para a Coleção Perfil (perfis de personalidades brasileiras) da Companhia das Letras, a biografia do poeta dos versos sobre Vila Rica e inconfidente Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), que supostamente se matou dentro de uma sela na Casa de Contos, conhecida também como a Casa dos Contratos, na antiga Vila Rica (a autora defende essa tese, apesar de não ter como comprová-la). O corpo foi encontrado na manhã de 4 de junho de 1789. O Movimento da Inconfidência Mineira havia sido delatado verbalmente por Joaquim Silvério dos Reis, um dos inconfidentes, em 15 de março de 1789.

O poeta mineiro, que entrou para a história como um homem atormentado, muito em função de sua obra, e não de sua vida, foi um homem divido entre dois mundos: o da metrópole, Portugal, e o da colônia, Brasil. Cláudio Manuel da Costa, que viveu com uma negra escrava e gerou cinco filhos seus, era um homem do seu tempo, como atesta o livro: “Um homem muito inserido nos mecanismos de ascensão social do seu tempo”.

Muitos fatos sobre a Inconfidência Mineira foram distorcidos ao longo do tempo e os seus protagonistas tiveram de receber determinados rótulos, sendo o do Tiradentes, o de mártir. Interessante observar que, apesar de Cláudio Manuel da Costa e outros inconfidentes (veja entrevista abaixo) terem entregado o levante para as autoridades, a fama de traidor ficou para Joaquim Silvério dos Reis. “Como é um episódio muito mexido pela construção da identidade nacional, do país independente, acabou sendo muito tributário de um determinado viés. Tem um determinado viés para ver a Inconfidência Mineira, e nele o traidor-mor é Joaquim Silvério dos Reis. Em relação ao Cláudio Manuel, ele é visto com certa ternura, por causa do seu suicídio”, esclarece a historiadora.

Brasileiros – Por que, quando se fala de Cláudio Manuel da Costa, o colocam como um homem atormentado?
Laura de Mello e Souza –
Acho que essa questão é muito presente, sobretudo o atormentado se refere ao poeta. A poesia permite que a gente faça essa constatação. O poeta, nessa época, não tinha liberdade de expressão, que se vai ter no século XIX. Então, ele tem de seguir determinados cânones. Analisando agora a vida do Cláudio Manuel da Costa, o que me parece interessante pensar é a divisão dele enquanto um habitante da periferia do império português. Isso aparece muito nele antes do Movimento Emancipatório, mesmo que a gente considere a Inconfidência Mineira um movimento emancipatório, que não é a minha tendência. Acho que ali tem um pouco de emancipação, mas não é a questão central daquele levante. Cláudio Manuel traz um germe da divisão do homem luso-brasileiro do final do século XVIII. “Quem sou eu?”. Acho que esta questão é a principal de Cláudio Manuel da Costa. Ele se considera de fato um português, mas não era considerado como o tal, nem do ponto de vista político e nem do ponto de vista literário.

Brasileiros – Você defende a tese de que ele se matou na cadeia, o que ainda hoje sucinta muitas dúvidas. Quais foram as evidências para que você chegar a essa conclusão?
L.M.S. –
Acho que ele cometeu o suicídio, dentro do que li e pesquisei. Não tem sentido ele ter se matado. Agora, outros vão escrever defendendo a tese do assassinato, que a mim me desagrada, porque é uma teoria conspiratória e acho que toda teoria conspiratória é muito frágil.

Brasileiros – Apesar de ele ter traído seus companheiros inconfidentes, Cláudio Manuel da Costa não ficou para a história como um delator como Joaquim Silvério dos Reis…
L.M.S. –
O delator não. Teve vários delatores, mas toda delação caiu sobre Joaquim Silvério dos Reis, o que é um caso curioso. Claro que Silvério dos Reis foi o pior dos delatores. Mas tanto Inácio de Correia Pamplona quanto Basílio de Brito Malheiro fizeram delações extensas e importantes como Silvério dos Reis. Como é um episódio muito mexido pela construção da identidade nacional, do País independente, acabou sendo muito tributário de um determinado viés. Tem um determinado viés para ver a Inconfidência Mineira, e nele o traidor-mor é Joaquim Silvério dos Reis. Em relação ao Cláudio Manuel, ele é visto com certa ternura, por causa do seu suicídio.

Brasileiros – A Inconfidência Mineira foi um levante, digamos assim, de cunho conservador, porque não defendia, entre outras coisas, a abolição da escravidão, que foi defendida por outros levantes no Nordeste. Em relação à Inconfidência Mineira você vê nitidamente um movimento de uma classe abastada que não queria perder privilégios. Podemos, de fato, afirmar isso?
L.M.S. –
A gente não tem condições de saber, porque a gente só tem os documentos oficiais. Em princípio, sim. Por outro lado, não. Ou seja, a Inconfidência Mineira é um levante de homens ricos e a maior parte deles não queria mexer na escravidão. Mas dois inconfidentes queriam nitidamente acabar com a escravidão no Brasil, o padre de Carlos Correia de Toledo e José de Alvarenga Peixoto. Se a gente acreditar nos Autos da Devassa (como ficou conhecido o processo da justiça que julgou dos inconfidentes). Nenhum levante dessa época falava em abolir a escravidão, só o levante da Bahia de 1798. Não devemos nos esquecer de que estamos no século XVIII. Depois disso, no século XIX, estamos em outro contexto, que é o da desagregação dos impérios coloniais. Soube outra perspectiva a Inconfidência Mineira tem muito de radicalidade sim. Se se contesta o estatuto colonial, como ficou contestado, podemos dizer que ele foi radical. Só um parêntese, o Cláudio Manuel da Costa não contestava o estatuto colonial, mas depois de um certo tempo começou a desconfiar. No contexto em que existiam metrópoles e colônias, ainda, que exista o vínculo colonial, cogitar de suprimir esse vínculo não é um movimento conservador, é radical. Foi o que os Estados Unidos fizeram; eles aboliram o vínculo colonial, mas não aboliram a escravidão.

Brasileiros – Até agora não se tinha uma biografia a altura do Cláudio Manuel da Costa. A sua veio para suprir essa lacuna?
L.M.S. –
Quero que fique bem claro que a biografia também não é a altura do Cláudio Manuel da Costa (risos). Essa é a única passagem que ficou um pouco ambígua no texto da Sylvia Colombo (jornalista da Folha de São. Paulo, que escreveu uma matéria para a Ilustrada sobre o livro) , que por sinal muito me honrou. Não acho que minha biografia seja a altura. O que me deixa perplexa é que nunca se tenha enfrentado o tema. Um poeta dessa dimensão não tinha uma biografia e possivelmente nunca vai ter. A minha é uma biografia enviesada, onde eu falo do Cláudio Manuel em seu tempo. Existem documentos originais que nunca foram trabalhados, mas não são sobre o Cláudio Manuel diretamente. Tive acesso ao inventário do pai de Cláudio Manuel, por exemplo, e ali a gente fica sabendo todo o patrimônio do pai, quando ele morreu, e o que Cláudio herdou. Fica mais do que claro que ele veio de Portugal (onde cursou faculdade) para poder ajudar a sua mãe que estava sozinha com filhos menores para criar, só que ela não dava conta de tudo aquilo.


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