Clorofila nas veias

Certo dia, Ferdinando Tilli recebeu uma carta emocionada de uma moradora de Campinas, em São Paulo. Em letras singelas, a dona-de-casa dizia ser aquele o dia mais feliz de sua vida, pois pela primeira vez ganhara um lindo buquê de rosas do marido. E o responsável por proporcionar-lhe aquela felicidade toda era Ferdinando. Em dias de vendas fracas, o proprietário da Campineira, a única floricultura da cidade, chegava a distribuir cerca de 300 dúzias de rosas “encalhadas” para as pessoas que passavam em frente à loja. O marido da autora da carta, por sorte, havia andado por lá. “Ele preferia isso a ver as rosas murcharem e irem para o lixo”, lembra Bevenuto Tilli, 82 anos, filho do generoso florista. Essa simplicidade e a relação incondicional com a natureza permearam toda a existência deste descendente de italianos nascido em Valinhos, interior de São Paulo, que começou a vida vendendo rosas e depois transformou-se em proprietário de uma das mais conhecidas floriculturas do interior de São Paulo até os dias de hoje. Ferdinando morreu há mais de 20 anos, mas sua paixão e dedicação pela flora brasileira foram deixadas como herança para seu filho Bevenuto, ou Nuto, sua neta Renata e seu bisneto Rafael.

O amor da família pela natureza é algo que impressiona. “Somos da terra, somos lavradores”, diz Renata, que praticamente nasceu dentro de um viveiro de plantas e hoje é uma conceituada paisagista do País. Situação semelhante é a do seu único filho Rafael, hoje com 19 anos. Ela assegura que nunca influenciou diretamente a escolha profissional dele. No entanto, ela lembra que a diversão da família era brincar de adivinhação durante as viagens de carro. Rafa, quando garoto, passava todo o tempo tentando acertar o nome de plantas, flores e árvores espalhadas pela vegetação à beira da estrada. Não deu outra. Rafael prestou vestibular para engenharia agrônoma, mas decidiu trancar o curso para poder morar com o avô em Campinas. “O que ele tem para ensinar, não encontro em nenhuma escola”, diz. “Eu tenho orgulho dessa tradição da nossa família. A nossa fortuna, que é o saber, será perpetuada agora pelo meu filho. Tenho um amigo que diz que na nossa veia não corre sangue, corre clorofila”, diverte-se Renata.
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Além de trabalhar com aquilo que ama, Renata conseguiu o que muitos sonham: morar em plena São Paulo num local que mais parece um sítio. O terreno, localizado na zona sul da capital, possui mais de quatro mil metros quadrados e duas casas. A maior delas, um sobrado amplo, com varanda e lareira, foi transformada em escritório. A casa menor, ao lado, ela escolheu para ser o seu refúgio. “Não sou uma pessoa urbana. Não poderia morar em São Paulo se não fosse assim. Aqui recebo amigos, faço fogueiras… Preciso bem pouco para morar e ser feliz”, diz. Com duas mangueiras, um bambuzal e várias outras espécies de árvores, plantas e flores cobrindo o seu quintal, é lá que Renata também atende os clientes. E foi nesse oásis que ela recebeu Brasileiros e o fotógrafo Valdir Cruz, amigo da família, especialmente convidado para clicar o encontro de três gerações da família Tilli.

As histórias e lembranças contadas são muitas, mas o que se nota em todos os gestos e diálogos é a admiração mútua entre eles. Os olhos de Renata brilham ao comentar sobre o vigor e a vontade de trabalhar de seu pai – para a entrevista, ele veio de Campinas guiando seu próprio carro e, encerrada a sessão de fotos, iria aproveitar para visitar um cliente. “Meu pai sempre fez questão de ensinar tudo o que sabe, por isso a natureza é tão generosa com ele. Não tem diploma, mas o saber dele está ligado à vivência, como um caboclo que se relaciona com a terra”, desmancha-se Renata. Realmente, seu Nuto tem uma disposição e vitalidade de dar inveja. “Aprendi a viver assim com o meu pai”, diz ele emocionado.

Parece que os Tilli estavam predestinados ao sucesso. Desde os 12 anos, quando começou a trabalhar com seu pai, seu Nuto já mostrava afinidade com as flores. Com o passar dos anos e apoiado na experiência acadêmica do amigo e agrônomo Hermes Moreira de Souza (ex-chefe da seção de flores do Instituto de Agronomia de Campinas), seu Nuto expandiu os negócios de seu pai. “Tudo o que sei devo a esse meu amigo”, recorda. Ao perceber que na época não havia comércio de plantas nativas, ele buscou orientação, adquiriu uma chácara em Jaguariúna e passou a cultivar lá o que viria ser o forte da família: plantas e árvores nativas e exóticas. É de seu Nuto a técnica de transplantar árvores adultas, de até 40 anos, como as palmeiras de mais de 15 metros que foram retiradas durante as obras do shopping
Cidade Jardim, na capital paulista, e depois replantadas. Seu Nuto especializou-se também em outra área: o tiro ao alvo. Na sua juventude, foi campeão brasileiro na categoria e durante suas viagens ao exterior, para as competições, aproveitava para trazer novas mudas que fossem adaptáveis ao nosso clima.

A Floricultura Campineira cresceu. Hoje são cerca de 60 funcionários e três chácaras na região para o cultivo de plantas. Tudo administrada com afinco por seu Nuto e com a ajuda em tempo integral do neto Rafael. “Acompanho o meu avô desde a plantação até a visitação de obras. Sou quase um capanga dele”, diverte-se o jovem. Eles continuam produzindo desde sementes até árvores de 20 metros. Já Renata decidiu trilhar seu próprio caminho, não sem antes sugar – no ótimo sentido – tudo o que seu pai tinha a lhe ensinar. Apesar de não trabalharem juntos, ela faz questão de seguir os passos de seu mestre, principalmente no que diz respeito à simplicidade. Por isso, o forte do seu trabalho é a mata nativa brasileira. Ela despreza os modismos inerentes à sua área. “Na natureza não existe design. Minha luta é fazer tudo o mais natural possível. Para mim não existe tendência, cada planta tem o seu lugar”, afirma. E continua: “Não precisamos ter uma Miami aqui, temos de resgatar o que somos”. Entre as plantas que mais a fascinam estão o bambu e o capim. “Admiro a leveza e a flexibilidade. Eles dançam com o vento, têm vida própria.” Assim como a família Tilli.


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