“Eu não sou assunto, o autor nunca é assunto. Notícia é sua obra, ela pode ser discutida, interpretada, contestada. Não tenho nada a dizer fora dos meus livros. O autor não vale o personagem. O conto é sempre melhor do que o contista.” Assim um renitente Dalton Trevisan, então com 47 anos, bradava nas páginas do “Suplemento Literário” do jornal O Estado de S. Paulo, em uma das únicas entrevistas – que se tem notícia na imprensa brasileira – concedidas pelo “Vampiro”.
Arredio e pouco afeito a jornalistas, Dalton Trevisan (que está lançando um novo livro, Violetas e Pavões, pela Editora Record) aceitou conversar – “entrevista eu não dou”, dizia – com o amigo Mussa José Assis, então chefe da sucursal do Estadão em Curitiba. Mussa havia sido encarregado de uma missão pra lá de complicada: uma entrevista, um conto inédito e uma foto de Dalton para a reestreia do “Caderno”.
O jornalista corou ao ouvir a ordem do chefe, mas, como era conhecido de Dalton, resolveu tentar a sorte. “O conto eu escrevo, mas entrevista eu não dou”, dizia o escritor ao amigo da “Boca Maldita”, famoso ponto de encontro na Rua XV de Novembro, centro da cidade. No calçadão mais famoso de Curitiba, Dalton costumava dar o ar da graça, sempre depois das 11 da noite, como um legítimo vampiro, com uma turma que incluía o cineasta e poeta Silvio Bach, o próprio Mussa e Aramis Millarch, outro bamba do jornalismo local. Em um desses encontros, Mussa convenceu o Vampiro a travar uma “conversa informal”, marcada para acontecer no escritório de Dalton, anexo à fábrica de vidros da família Trevisan, na Rua Emiliano Perneta (por coincidência, um poeta).
“Por conta de nossa amizade, ele topou conversar, mas apenas conversar, sem que eu pudesse anotar, porque não queria dar entrevista. Começamos a bater papo e aos poucos ele foi falando de sua vida, sua juventude no Colégio Estadual do Paraná e seu sonho de ser atleta, corredor dos 110 m com barreiras”, relembra Mussa, quase 40 anos depois.
Veterano do jornalismo paranaense, já estava comandando a sucursal do mítico Última Hora, em Curitiba, quando mal havia chegado à maioridade. Um ano depois foi a São Paulo para assumir a secretaria de redação do jornal de Samuel Wainer. De volta a Curitiba, Mussa fez história no jornal O Estado do Paraná, onde chegou a chefe de redação. Ficou no periódico, entre idas e vindas, por 47 anos.
Jornalista que leva os preceitos éticos ao pé da letra, Mussa abriu o jogo com Dalton antes de enviar a matéria para O Estado de S. Paulo. “Quando terminei de escrever a reportagem, disse ao Dalton: o Estadão vai publicar uma matéria sobre você. Daquela nossa conversa, eu escrevi um texto.” Após a indignação inicial, Dalton, fã do “Suplemento Literário”, autorizou a publicação, mas com uma condição: queria ler o texto antes. O Vampiro teve acesso à matéria original.
Dalton fez algumas poucas anotações, corrigiu uma data aqui, outra ali e devolveu a matéria a Mussa. O texto saiu sem as correções feitas pelo escritor, o que não chegou a ser um drama para ele. Em 27 de agosto de 1972, um domingo, chegava às bancas o Estadão com o seu reformulado “Suplemento Literário”. A capa estampava a matéria sobre Dalton com o título “Quando o contista é melhor do que o conto”. A chamada brincava com as afirmativas de Dalton de que o escritor não tinha importância perante sua obra. Na página seguinte, o conto “Firififi” dava aos leitores do jornal um aperitivo da literatura inventiva do escritor.
Até 1972, quase nada se sabia a respeito de Dalton Trevisan, então um contista que se recusava a integrar o jet set dos escritores. A crítica literária só sabia dele o que estava escrito em seus cinco livros publicados até então: Novelas Nada Exemplares (1959), Cemitério de Elefantes (1964), O Vampiro de Curitiba (1965), Guerra Conjugal (1969) e O Rei da Terra (1972). Além disso, sabia-se também que ele havia editado, nos anos 1940, a revista Joaquim, que, entre outros nomes, publicou trabalhos de Carlos Drummond de Andrade, Otto Maria Carpeaux, Di Cavalcanti e Poty Lazzarotto, este último amigo e ilustrador mais constante dos livros de Dalton.
O sonho de ser corredor dos 110 m com barreiras, a Faculdade de Direito que cursou na Universidade Federal do Paraná, a curta carreira como advogado, o casamento com dona Yole, as duas filhas e sua origem abastada só vieram à tona com a reportagem de Mussa. Foto, não se tinha nenhuma. E, como vampiro não tem sombra, poucos sabiam como era a silhueta de Dalton. Mas na edição do “Suplemento Literário”, lá estava uma foto do Vampiro, de óculos de armação preta e um cabelo meio arrepiado. Mas como? Além de dar entrevista, Dalton posava para fotografias? Ele não tinha ojeriza a fotos e a jornalistas?
“Rubem Braga estava em Curitiba e eu ia ter de entrevistá-lo”, conta Mussa. “Durante a conversa, ele me disse que gostaria muito de conhecer o Dalton Trevisan. Então liguei para ele. Os dois se encontraram no antigo Hotel Iguaçu, onde o Rubem Braga estava hospedado. Durante o encontro, o fotógrafo Flávio Ogassawara, enquanto tirava fotos de Rubem Braga, também clicou o Dalton, sem que ele percebesse, é claro. A fotografia foi usada por toda a imprensa, já que é uma das poucas, se não a única, que se tem do Dalton Trevisan mais novo e de frente. Ele olhou a foto e ficou puto. Nem tanto pelo retrato, mas porque atrás dele tinha uma planta.” Além da entrevista para o Estadão, outra aparição do Vampiro está registrada na revista Status, de 1979, em que o escritor fala sobre o acidente que quase o matou em 1945, após a explosão da chaminé de um forno na fábrica de cerâmica da família. “Olhei pela primeira vez a morte dentro dos olhos e, mais do que o sofrimento físico, doeu a revelação de que era mortal. Nesse dia nasceu o escritor.”
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A maçonaria trevisânica
Os amigos que falam sobre a rotina e as manias do escritor são limados de sua vida. Não foram poucos os que entraram para a lista negra de Dalton por falar demais. Alguns viraram inimigos e foram retratados, de modo pouco lisonjeiro, em seus contos. No livro Dinorá – Novos Mistérios, de 1995, o escritor surpreendeu ao transformar em ficção alguns episódios de sua vida, principalmente aqueles que o desagradaram. No conto “Santíssima e Patusca”, o alvo é uma professora que se apropria da correspondência íntima do autor para formular uma tese acadêmica; já em “Ao Telefone”, o editor de um jornal, interessado em comprar um conto do Vampiro, é ridicularizado com muito humor e ironia. Mas, como não poderia deixar de ser, Dalton desconstrói os fatos, muda nomes e embaralha os acontecimentos.
Mussa, pelo que se sabe, livrou-se do purgatório literário de Dalton Trevisan. Depois da matéria do Estadão, ainda manteve contato próximo com o escritor entre 1974 e 1975, período em que o jornal O Estado do Paraná publicou, sempre aos domingos, contos do Vampiro.
Com tamanha patrulha perante a figura do contista, seu círculo de amigos só poderia ser restrito – até porque, muitos, como os escritores Manoel Carlos Karam e Jamil Snege, já morreram. Do seleto grupo, fazem parte o livreiro Aramis Chain, o ator e diretor de teatro João Luiz Fiani, o escritor e jornalista Fábio Campana e o jornaleiro oficial de Dalton Trevisan, de identidade desconhecida. Todos se recusam a falar sobre o contista – autor de um único romance, A Polaquinha.
O jornalista Dimitri do Valle, que trabalha para a Folha de S. Paulo em Curitiba, tentou conversar com alguns deles em 2008. Seguindo à risca o código trevisânico, ninguém quis falar muito, mesmo assim Dimitri conseguiu colher algumas informações inéditas e trouxe à tona o vegetarianismo do Vampiro e sua adesão à internet.
Já o fotógrafo Marcelo Rudini, companheiro de reportagem de Dimitri, armou campana em frente à livraria do Chain, onde Dalton costuma comprar livros e bater papo com o dono, Aramis, e saiu de lá com fotos inéditas do escritor que, tão logo percebeu a ação do fotógrafo, sumiu por entre um estacionamento com suas sacolas de livros e mexericas.
Há onze anos, em 1998, o escritor e músico Cadão Volpato usou tática semelhante. Encarregado de entrevistar Dalton para a revista Época, foi direto ao esconderijo do Vampiro, a casa da Rua Ubaldino do Amaral, no bairro Alto da Glória.
“Passei três dias em Curitiba”, recorda Cadão. “Atirava bilhetinhos na casa de esquina. Fiquei de tocaia até ele aparecer. De repente, vi o Dalton, usando chapéu de guri sair e descer por uma contramão. Só o fotógrafo, que me acompanhava, saiu atrás dele. Conseguiu fazer as fotos. Minha reportagem ia pelas bordas, relatando a passagem pela cidade. Aliás, Curitiba é puro Dalton Trevisan.”
Encontrando as mesmas dificuldades que todos aqueles que ousam investigar a vida do escritor, Cadão pouco ouviu sobre Dalton. “Entrevistei o crítico literário Wilson Martins, mas eles já não eram mais amigos. Falei com o Chain, mas ele não quis dar entrevista.”
Até mesmo na editora que publica os livros de Dalton, a Record, faz-se silêncio. Nada de informações sobre o escritor ou sobre quem se comunica com ele para tratar de detalhes editoriais.
Em 2007, Mussa José Assis se lembrou da entrevista que fizera com Dalton para o Estadão. Naquele ano, a matéria completava três décadas e meia. Por meio de um amigo em comum, o jornalista mandou um recado: “Dalton, a entrevista do ‘Suplemento Literário’ está fazendo 35 anos. Vamos repetir a dose?”.
Como era de se esperar, não obteve resposta. Mesmo assim, Mussa se orgulha da façanha e acredita que o escritor ainda guarda o recorte de jornal com a entrevista. A prova de sua suspeita é um press release que Dalton costumava distribuir a repórteres que tentavam entrevistá-lo. No texto, podia-se ler: “Nada tenho a dizer fora dos livros. Só a obra interessa, o autor não vale o personagem. O conto é sempre melhor que o contista”.
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