Como um cavalo salvou a vida de um preso político

Houve um tempo no Brasil em que um cavalo tinha mais amparo da legislação que um ser humano. Era assim em 2 de março de 1937, seis meses antes de Getúlio Vargas instaurar o Estado Novo – que implantaria uma ditadura sem disfarces. Naquela data, o inesquecível advogado Heráclito Sobral Pinto entrou com um pedido de habeas-corpus no Tribunal de Segurança Nacional. Baseava seus argumentos em um artigo do Decreto de Proteção e Defesa dos Animais. O objetivo era salvar do flagelo não um cavalo, mas um homem: o preso político alemão Harry Berger, mantido em condições subumanas. A lei em prol dos animais havia sido assinada menos de três anos antes pelo próprio Vargas.

Essa história foi o tema da tese de doutorado, defendida, em 2005, na Universidad Del Museo Social Argentino, em Buenos Aires, pelo advogado paulista Olavo Aparecido Arruda D’Câmara, de 60 anos. Ele a ouviu, pela primeira vez, em 1987, da boca do próprio líder comunista Luís Carlos Prestes, então com 89 anos. Não era um fato obscuro. No entanto, Olavo aprofundou as pesquisas. Com a autorização do Superior Tribunal Militar, teve acesso aos 22 volumes do processo. “Estavam muito bem preservados”, diz. No momento, Olavo escreve um livro sobre essa história aterradora, mas reveladora de uma época e, em especial, da sabedoria de Sobral Pinto.
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Em 1935, o Partido Comunista havia deflagrado uma mal-ajambrada tentativa de golpe de Estado, logo reprimida pelo governo federal. Entre as maiores vítimas dos insurretos estavam Berger e sua mulher, Elise. Acusados de planejar o golpe, eles passaram pelas piores torturas, praticadas não só por agentes brasileiros, mas também da Gestapo. Na frente do marido, Elise foi estuprada por dezenas de soldados, antes de ser deportada para a Europa, em 1936, onde morreria em um campo de concentração, quatro anos mais tarde. Berger permaneceu no inferno tropical, à mercê das surras, da infâmia dos choques elétricos e da falta de comida. Sua decisão de não entregar nenhum companheiro à polícia, chefiada pelo perverso Filinto Muller, só aumentava a barbárie.

Naquele início de 1937, Berger não era nem sombra do homenzarrão de 1,90 m. Encarcerado em uma cela sem luz, improvisada em um socavão de escada do prédio da Polícia Federal, no Rio de Janeiro, não conseguia ficar em pé naquele diminuto espaço, com pé-direito de 60 cm. Mal movia as articulações. Dormia sobre pedras. Estava sem banho há um ano, sem cortar os cabelos e a barba. O antropólogo Darcy Ribeiro definiria: “Berger enlouquecera, era um monstro, a criatura de Filinto”.

Experiente militante de esquerda, ex-deputado na Alemanha, Berger desembarcara em março de 1935, passando-se por norte-americano. Seu nome verdadeiro era Arthur Ewert. Vinha enviado pelo Comitê Executivo da Internacional Comunista, com a incumbência de planejar, com Luís Carlos Prestes e outros líderes internacionais, a Revolução Brasileira. Ao contrário de Prestes, era um teórico bem fundamentado, que passara anos estudando nas bibliotecas americanas, antes de missões na Europa, na China e na Argentina. Berger – já então, reservadamente, um crítico da política de Stalin – examinou com lupa o momento histórico brasileiro e fez o diagnóstico: a população estava desmobilizada e, portanto, não havia condições para uma insurreição. Bem sabia que não se faz revolução sem as massas.

Sua proposta, sensata, era estimular a criação “de uma vasta frente popular – operários, camponeses, pequenos burgueses e burgueses que são contra o imperialismo”. A revolução, a seus olhos, ficaria para uma segunda etapa, a ser definida. Prestes, no entanto, confiava nas lideranças do Partido Comunista dentro do Exército. Acreditava na possibilidade de deflagrar o golpe, simultaneamente, em todo o País. Programava-se para isso. Agentes infiltrados, porém, forjaram um telegrama falso e a situação fugiu-lhe ao controle.

Ao anoitecer de 23 de novembro de 1935, dois sargentos, dois cabos e dois soldados precipitaram-se e sublevaram o 21o Batalhão de Caçadores, em Natal (RN), instalando o Comitê Popular Revolucionário. Um sapateiro, José Praxedes de Andrade, foi “nomeado” ministro do Abastecimento; um funcionário dos correios, José Macedo, recebeu a indicação para ocupar o das Finanças.

O episódio potiguar fez com que irrompessem movimentos semelhantes em Recife (PE) e no Rio de Janeiro, sempre sem o respaldo popular. Nenhum sindicato ousou uma mísera greve de apoio. Em menos de uma semana, todos os focos de resistência foram debelados. Era o fim da Intentona Comunista – nome que passou para a história, embora os comunistas, em geral, abominassem a palavra “intentona”.

Getúlio vai ao Congresso
“Preso o mentor de Luís Carlos Prestes”, anunciava a manchete do Diário Carioca, em sua edição de 7 de janeiro de 1936. Referia-se a Berger, “um judeu polaco-alemão naturalizado americano que era o orientador da revolução ‘nacional’ chefiada por Luís Carlos Prestes”. O mesmo jornal cobrou em editorial de primeira página: “Devemos punir os criminosos na proporção dos riscos que corremos”. Na edição de 8 de janeiro de 1936, completaria: “Prestes era um simples instrumento nas mãos do estrangeiro Berger”.

Começava o longo calvário de Harry Berger. Em maio de 1936, Getúlio foi ao Congresso Nacional garantir que não haveria revanchismo contra os comunistas. Declarou que “apesar da insólita brutalidade dos atentados praticados contra a unidade nacional” seu governo não impunha “castigos aos presidiários” e nem estava se servindo do momento “para aniquilar os vencidos”. Enquanto isso, Berger era torturado. Um ano depois, foi condenado pelo Tribunal de Segurança Nacional a 13 anos e quatro meses de prisão.

A Ordem dos Advogados do Brasil sabia das torturas. Para assistir Berger – e o próprio Luís Carlos Prestes -, a seção fluminense da OAB indicou um mineiro que vinha se destacando nos tribunais como defensor intransigente dos direitos humanos. No futuro, ficaria ainda mais conhecido ao advogar, sem cobrar honorários, para os perseguidos do regime militar instaurado em 1964.

Heráclito Fontoura Sobral Pinto nasceu em Barbacena, em 1893. Na escola, ganhou o apelido de Peru, por ficar com o rosto ruborizado quando as discussões com os colegas se tornavam acaloradas. Cristão fervoroso, de ir à missa todos os dias, era adversário do comunismo, mas um humanista convicto. Resolveu aceitar o desafio e justificou a atitude: “Quaisquer que sejam as minhas divergências com o comunismo materialista – e elas são profundas -, não me esquecerei nesta investidura que o Conselho da Ordem me impôs, que simbolizo, em face da coletividade brasileira exaltada e alarmada, a defesa”.

Ao tomar conhecimento do processo e das condições a que estava submetido Harry Berger, Sobral notou que faltavam no arcabouço jurídico brasileiro, àquela altura, artigos em que basear sua petição. Encontrou a brecha na decisão do juiz paranaense Antonio Leopoldo dos Santos, que condenara João Mansur Karan a 17 dias de prisão e mais à multa “por ter morto a pancadas um cavalo de sua propriedade”. Na ausência de um código mais adequado onde sustentar a causa, Sobral Pinto debruçou-se sobre o Decreto de Proteção e Defesa dos Animais. Dele, extraiu os argumentos do habeas-corpus, que redigiu e impetrou no Tribunal de Segurança Nacional.

Engenho de raciocínio
Logo nas linhas iniciais da ação, reforçou o primeiro artigo do Decreto número 24.645: “Todos os animais existentes no País são tutelados do Estado”. Em seguida, passou à definição de maus-tratos da mesma lei federal: “Manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhe impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz”. Nada muito diferente, enfim, do cotidiano de Berger na cela da Polícia Especial de Filinto. A lógica era simples: se o Estado reconhece até os direitos dos animais, por que não haveria de dispensar o mesmo tratamento a um ser humano?

Relembrando a pena de prisão e multa aplicadas ao cidadão que concorrera para a morte de um cavalo, Sobral Pinto solicitou ao juiz Raul Machado, do TSN, que proporcionasse condições adequadas ao prisioneiro comunista: “Num País que se rege por uma tal legislação, que os magistrados timbram em aplicar, para, deste modo, resguardarem os próprios animais irracionais dos maus-tratos até de seus donos, não é possível que Harry Berger permaneça, como até agora, meses e meses a fio, com a anuência do Tribunal de Segurança Nacional, dentro de um socavão de escada.”

Com seu característico engenho de raciocínio, Sobral Pinto fez ver ao julgador que o tratamento dispensado ao prisioneiro beirava o revanchismo, negado oficialmente por Vargas. “Ora, senhor juiz, o Tribunal de Segurança Nacional, mais do que qualquer outra instituição do País, deve honrar a palavra do excelentíssimo senhor presidente da República, que, em circunstâncias tão solenes – como já acentuado -, assegurou, reiteradamente, a toda a nação, que nenhum preso político seria tratado com desumanidade.”

Assim, concluiu Sobral Pinto, se o TSN desejasse punir, com eficiência, àqueles que em novembro de 1935 usaram de violência contra os legítimos órgãos da soberania nacional, seria necessário afastar, firme e categoricamente, da sua ação punitiva todo e qualquer gesto de violência. “Só à custa deste preço é que as suas sentenças se valorizarão no seio da consciência cristã do povo brasileiro. Só assim, elas poderão ser acatadas como obra de justiça serena.”

Olavo D’Câmara lembra em sua monografia – a base para o livro que vem escrevendo – que muita água ainda rolou: “Após imensa batalha jurídica e a grande repercussão iniciada pelo habeas-corpus redigido pelo doutor Sobral Pinto, na imprensa e nas rodas de conversa, a justiça finalmente garantiu condições mais dignas a Berger”.

Na biografia de Harry Berger, lançada em 1987, o historiador paraibano José Joffily Bezerra de Mello não menciona o episódio. Relata que o prisioneiro foi transferido para o Manicômio Judiciário em junho de 1942, após um laudo médico apontar insanidade mental, resultado das torturas.

O agente comunista voltou a viver em liberdade com a anistia concedida aos presos políticos, em maio de 1945. Retornou para a Alemanha a bordo do navio soviético Alexander Krybdorgen, em junho de 1947. Morreu em julho de 1959, em um manicômio da cidade de Eberswalde. Tinha 68 anos.

TUDO COMEÇOU EM UMA CONVERSA COM PRESTES

Foi no I Congresso Brasileiro de Socialismo, em 1987, em Brasília, que o advogado Olavo Aparecido Arruda D’Câmara ouviu, rapidamente, de Luís Carlos Prestes (com quem aparece na foto ao lado), a história do recurso jurídico utilizado para tirar do flagelo o teórico e ativista marxista Harry Berger. “De vez em quando, lembrava-me do caso e um dia pretendia estudá-lo, mas, na correria do dia a dia, não dava sequência às pesquisas”, conta. Até que, estimulado pelo professor Ricardo Rabinovich, aprofundou-se na requisição de habeas-corpusapresentada no tribunal pelo advogado Heráclito Sobral Pinto,
em 1937.

Contatos com a historiadora e professora universitária Anita Leocádia Prestes, filha de Luís Carlos Prestes, fizeram parte das pesquisas. Por fim, o estudo resultou em monografia e tese de doutorado, defendida na Universidad Del Museo Social Argentino, em Buenos Aires. O advogado explica a razão da escolha do país vizinho: “O departamento de História do Direito da universidade é excelente”.

Nascido numa família da elite rural, em uma fazenda de 50 mil pés de café em Pirajuí (SP), D’Câmara, 60 anos, desde cedo simpatizou com movimentos e partidos de esquerda. Formado não só em Direito, mas também em História e Pedagogia, instalou seu escritório de advocacia em Mogi das Cruzes. Filiou-se ao MDB, na década de 1970. “Alijaram-me do comando regional do partido porque fui considerado muito radical”, lembra. Buscou abrigo no PT, que ajudou a fundar. Divergências internas levaram-no ao PDT e, finalmente, ao PC do B, onde encerrou a militância política. D’Câmara vive de seu trabalho como advogado. Ainda nos anos 1970, vendeu sua parte da fazenda de infância, que havia sido dividida entre os familiares.

 


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